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2006-04-03
Animais demarcam território, mas o homem exagerou ao criar o conceito de fronteira. Rateou o mundo e esperou que a natureza se adequasse à nova ordem. Não deu certo. O desenvolvimento das nações exauriu recursos e reduziu florestas, e tantos outros ecossistemas, a ilhas perdidas em meio à civilização. Agora, o homem repensa a sua estratégia de sobrevivência e nota que precisa conservar a diversidade biológica da Terra para se manter vivo. E uma das formas de preservar o que resta é exatamente desfazendo as fronteiras.

Segundo a World Conservation Union (IUCN), 112 países já criaram Áreas de Proteção Transfronteiriças (TBPA, em inglês). Ou grandes unidades de conservação formadas pela aglutinação de parques localizados nas bordas de nações vizinhas. Ao todo, existem 188 complexos desses espalhados pelo mundo. Vinte e sete deles são descritos no livro “Transboundary Conservation – A new vision for protected areas” escrito por seis pesquisadores e lançado semana passada pela Conservação Internacional em conjunto com outras instituições na COP-8, em Curitiba.

Fronteiras abertas
O Brasil participa de três áreas de proteção transfronteiriças. A mais antiga envolve o Parque Nacional do Iguaçu, que coexiste na Argentina com o nome de Iguazú, e é fruto de uma parceria para preservar as famosas cataratas da região. As outras duas são na Amazônia. Em Roraima, o Parque Nacional do Pico da Neblina e o Parque Nacional do Monte Roraima se fundem a unidades de conservação na Venezuela e na Guiana para protegerem uma das áreas mais remotas da América do Sul. Principalmente a fauna e flora endêmicas que se estabeleceram a 2 mil metros de altitude nos platôs e montes da região conhecidos com tepuis. Já na fronteira do Brasil com Guiana, Suriname e Guiana Francesa está sendo costurada uma rede de parques para salvar o que é considerada a parte mais intacta da Amazônia. Em uma área de quase 30 milhões de hectares de floresta — o equivalente a meia França — vivem apenas 20 mil pessoas. A maioria índios e populações ribeirinhas.

Como descreve o livro, em termos de biodiversidade esta região tropical é uma das três mais ricas da Terra. Ela cobre apenas 0,1% da América do Sul, mas possui uma concentração de espécies endêmicas pelo menos sete vezes maior do que qualquer outro lugar do continente. Tem mais aves do que Canadá e Estados Unidos juntos e abriga ecossistemas singulares. Além de servir de refúgio para grandes mamíferos, como a onça pintada e a ariranha — um animal da família das lontras que pode chegar a quase 2 metros de comprimento e está ameaçado de extinção.

A pouca presença humana e a dificuldade de acesso preservaram a floresta que une o Brasil às Guianas até a chegada de garimpeiros e madeireiros – que se instalaram na região a partir da década de 90. Numa tentativa de frear a degradação na região, o Brasil criou em 2000 o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, com quase 4 milhões de hectares. As Guianas tomaram atitudes parecidas, em menores proporções, durante os últimos anos. Mas não foi o suficiente. “Em termos de ameaça, os mesmos fatores que reduziram ou eliminaram florestas tropicais pelo mundo estão chegando agora na região das Guianas”, dizem os autores do livro. “Corte de madeira sem manejo, garimpo e projetos de hidrelétricas já impactaram de forma significativa algumas áreas e poderiam aumentar seus efeitos dramaticamente nos próximos anos”.

Organizações internacionais doaram cerca de 19 milhões de dólares para a consolidação das áreas de proteção transfronteiriças compartilhadas entre Brasil e Guianas, mas falta comprometimento por parte dos governos. Hoje, o Tumucumaque não tem nenhum fiscal e ainda espera pelo seu plano de manejo. Enquanto isso, índios que moram dentro da unidade de conservação são treinados para atuarem como guardas-parque. Alison Kleber, chefe-substituto do Tumucumaque, acusa o Suriname de permitir que “biopiratas” cruzem a fronteira atrás de cobras, sapos, pássaros e até insetos para vender no mercado ilegal.

O primeiro
Nem o primeiro parque transfronteiriço da Terra está livre dos perigos que o cercam e de pendências políticas. O Waterton-Glacier International Peace Park está localizado na fronteira dos Estados Unidos com o Canadá, na altura das Montanhas Rochosas, e nasceu da junção dos parques nacionais Waterton Lakes (canadense) e Glacier (americano) em 1932. Mas apesar da idade, até hoje a unidade luta por uma ampliação essencial em território canadense para garantir a sobrevivência das espécies que abriga, e corre o risco de se tornar uma ilha ecológica cercada por madeireiros, mineradoras e empreiteiros — que desejam construir estradas e condomínios na região.

Segundo uma avaliação feita pelo Serviço Nacional de Parques dos Estados Unidos, em 1980 o Glacier National Park já era a quarta unidade de conservação mais ameaçada do país e, de lá para cá, a situação não melhorou em nenhum dos dois lados da fronteira. Os parques também sofrem com as espécies invasoras e a pressão da exploração de petróleo e gás. A longo prazo, estão na mira do aquecimento global.

O Waterton-Glacier International Peace Park não é gigante, tem apenas 4.320 km² e é cercado por terras sujeitas a diferentes graus de proteção ou exploração dos respectivos governos. Ainda assim, consegue ser a área mais importante para a conservação de carnívoros nativos da América do Norte, possui vários micro-climas, paisagens estonteantes e, graças à mistura geofísica que se concentra dentro de seus limites, tem um alto nível de diversidade tanto de fauna quanto de flora. O parque também está na rota das aves migratórias. Pelo menos 272 espécies podem ser avistadas ali durante o ano. Entre as grandes atrações do parque estão seus ursos e lobos, que dependem do corredor ecológico formado entre os dois países para sobreviver.

Vantagens e desvantagens
Como dizem os defensores dos parques transfronteiriços, animais não têm passaporte. E normalmente as áreas de fronteiras são bem preservadas por serem militarizadas ou distantes de áreas urbanas. Um exemplo é o cinturão verde que surgiu na Europa em torno da antiga Cortina de Ferro, onde por quarenta anos foi proibido desenvolver qualquer atividade sócio-econômica e a natureza aproveitou para reocupar a área. Hoje, tenta-se conectar essas áreas verdes e formar um corredor ecológico para migração e dispersão das espécies.

A solução para disputas nas fronteiras é um dos argumentos fortes em favor da criação desses parques que extrapolam mapas políticos. Um exemplo recente na América do Sul foi a criação, em 1998, da Área de Proteção Transfronteiriça Cordillera Del Condor, que colocou fim a uma disputa territorial entre Equador e Peru que persistia desde o período da colonização espanhola. Muitos ambientalistas e diplomatas desejam ver o mesmo acontecer em casos como o do glaciar mais comprido do mundo, o Siachen, que fica na fronteira do Paquistão com a Índia e é disputado há mais de 30 anos pelos dois países.

Exatamente por estarem em áreas de fronteira, muitos desses ecossistemas às vezes também correm o risco de virar campos de guerra ou de refugiados. Como acontece com a floresta e os quatro parques que abrigam os últimos 706 gorilas de montanha, localizada na conflituosa borda de Ruanda, Uganda e República Democrática do Congo. “Durante mais de 10 anos de guerra na região, o Programa Internacional para a Conservação dos Gorilas (IGCP, sigla em inglês) trabalhou com todos que poderiam influenciar a sobrevivência dos gorilas e seu habitat”, relata o livro.

Mesmo entre países com boas relações diplomáticas, não é fácil implementar parques transfronteiriços, ou parques de paz, como também são chamados. É necessário se atingir consenso em dois ou mais governos, às vezes um lado recebe mais investimento do que outro, ou as unidades de conservação que compõem o todo têm classificações diferentes em cada país e, portanto, diferentes graus de proteção. Há ainda a questão da língua, que pode atrapalhar a cooperação entre as gerências. Na prática, em 82% das áreas protegidas a cooperação entre os países é mínima.

Mas, apesar dos obstáculos, um dos melhores exemplos de que áreas de proteção transfronteiriças são uma boa solução é o parque Great Limpopo, composto por unidades de conservação da África do Sul, de Moçambique e do Zimbábue. O pilar dessa parceria é o secular Kruger National Park, criado em 1898 por caçadores sul-africanos e que atrai quase que um milhão de visitantes por ano. O dinheiro gerado pela atividade turística é suficiente para cobrir 80% dos gastos de todos os parques nacionais da África do Sul, o que despertou interesse dos vizinhos. Hoje, os três países que até pouco tempo guerreavam entre si travam parcerias econômicas para alavancar o ecoturismo na fronteira e atrair novos investimentos para a região.

Além de proporcionar benefícios econômicos via turismo, os parques transfronteiriços permitem parcerias técnicas, divisão de bancos de dados in situ — compostos de espécies mantidas em seus habitats naturais — e maior capacidade de fiscalização. Como defendem os organizadores do livro, as áreas de proteção transfronteiriças têm enorme potencial de criar oportunidades para os países que concordam em ceder suas fronteiras para a melhor conservação da natureza.

O Peace Parks Foundation ajuda a promover e financiar programas de conservação transfronteiriça. Na Internet, uma rede reúne especialistas que trabalham especificamente com esse tipo de parque.

Em 1995, a Convenção de Diversidade Biológica determinou que a conservação dos ecossistemas fosse adotada como a principal linha de ação para garantir a vida na Terra. Hoje, cerca de 11,5% da superfície do planeta está protegida por 100 mil unidades de conservação espalhadas por 227 países e territórios. Mas não é o suficiente. Estudos mostram que para garantir a saúde dos ecossistemas é preciso conectá-los através de corredores verdes que permitam a troca genética necessária para evitar a morte por isolamento. Corredores esses que não podem se sujeitar aos limites impostos por fronteiras.
(Carolina Elia, O Eco, 29/03/06)
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