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2006-04-03
Ao final das duas semanas em que delegados de 188 países se reuniram em Curitiba para a 8ª Conferência das Partes (COP-8) da Convenção sobre Diversidade Biolóica (CDB), os países signatários pouco conseguiram avançar em termos de consenso para políticas internacionais de proteção da biodiversidade do planeta. Seguindo uma tendência geral dos organismos multilaterais ligados (ou não) às Nações Unidas, o aspecto mercadológico suplantou o foco original da CDB, transformando o debate ambiental numa discussão rasteira sobre “commoditificação” de recursos ambientais.

Essa avaliação foi externada de forma similar pela maioria das ONGs que atuam na defesa da biodiversidade e das comunidades dependentes dos diversos ecossistemas hoje ameaçados. Segundo estas organizações, a falta de avanços sobre questões cruciais da COP-8, como acesso ao patrimônio genético e a repartição dos benefícios gerados por eles, reconhecimento dos direitos dos povos originários e populações tradicionais sobre seus conhecimentos, políticas internacionais de fomento à CDB a às áreas de conservação, e decisões políticas sobre mutações genéticas em sementes e árvores, entre outros, foi um reflexo direto da intervenção cada vez mais agressiva (e oficialmente permitida) de empresas transnacionais e de governos que defendem seus interesses econômicos nas negociações.

Nesse sentido, considera o Instituto Sociaoambiental (ISA), o que se evidenciou na COP-8 foi a grande farsa de uma negociação comercial transvestida de debate sobre o bem-estar da humanidade e do planeta. No manifesto "Tragicop - o teatro e a tragédia de uma farsa anunciada", lançado ao final da "Coptrix" (série de debates promovidos pela ONG no Fórum Global da Sociedade Civil), o ISA aponta a perversidade principalmente do discurso biocientífico e modernizador que permeou as negociações.

"As maravilhas derivadas da biodiversidade são para todos. Os remédios, cosméticos, tratamentos, curas milagrosas são para todos. Os benefícios gerados estão à serviço e são acessíveis a todos; todos aqueles que fazem parte da pequena parcela da humanidade que pode comprar tais maravilhas. A democracia do consumo garante a todos a possibilidade de receber os benefícios da modernidade, mediante pagamento de royalties, direitos de melhoristas, propriedade intelectual em geral. (...) Ainda tens a ilusão de que o uso sustentável a que se refere a CDB diz respeito ao uso para que ainda exista a biodiversidade no futuro? Definitivamente não, a conservação e a preocupação com a sustentabilidade do uso está intimamente relacionada a uma estratégia de sobrevivência das empresas e de seus lucros", diz o documento.

Para a pesquisadora uruguaia da ONG ETC Group, Silvia Ribeiro, o aspecto da exploração da biodiversidade pelas tecnologias genéticas, adotado pelas negociações da CDB, foi uma vitória das empresas de biotecnologia nesta COP. Ao incorporar o discurso do valor econômico da biodiversidade e seu patrimonio genético e da regulação da sua exploração, a CDB se tornou um instrumento da biopirataria, afirma. "Ao meu ver, mesmo o debate sobre repartição de benefícios do patrimônio genético e do conhecimento das populações tradicionais é uma forma de reafirmar a aceitação do patenteamento de seres vivos", diz Silvia.

Segundo Maria Rita Reis, da ONG Terra de Direitos, a migração dos interesses corporativos e empresariais para dentro da CDB, que a transformou em espaço de regulamentação do uso da biodiversidade, se deu muito em função da crescente estagnação das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC).

"Veja bem, temas como árvores transgênicas, as sementes Terminator, acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios (ABS em sua sigla em inglês), na verdade foram debatidos no aspecto da regulamentação do seu uso. A CDB virou um espaço de consenso destas negociações", afirma Maria Rita.

"A CDB está se comportando de forma a complementar ou, pior, a superar a OMC. O tema das árvores transgênicas, por exemplo, entrou na CDB porque, na OMC, teria despertado furor e seria um escândalo", complementa Silvia Ribeiro.

Para Martin Kaiser, assessor político do Greenpeace Internacional para o tema “florestas”, a COP-8 acabou se mostrando desastrosa muito em função das grandes expectativas que se tinha sobre a realização da Conferência da CDB no Brasil, um dos maiores países megadiversos do mundo. Nesse sentido, avalia Kaiser, após o naufrágio das tentativas de avanço nas principais pautas da COP-8 (ABS e financiamentos para a CDB através do Fundo mundial para o Meio Ambiente, cujo orçamento depende fortemente dos EUA – e ainda durante a COP, o presidente Bush enviou ao Congresso proposta de redução dos aportes ao Fundo), as perspectivas para a COP-9 não são boas. "Se ocorrer o mesmo que nessa COP-8, realizar a COP-9 não vai ser nada mais do que desperdício de dinheiro", afirma Kaiser.

SOCIEDADE CIVIL
Apesar de algumas vitórias dos movimentos sociais e ambientalistas, no cômputo geral a COP-8 não trouxe avanços à CDB. A reafirmação da moratória para as tecnologias genéticas de restrição de uso (GURTS, mais conhecidas pelas sementes estéreis Terminator), ou seja, a proibição de que hajam testes a campo e comercialização de variedades Terminator, foi uma vitória, mas não um avanço, avalia Silvia Ribeiro.

O único avanço, diz a pesquisadora, foi o impacto que as mobilizações das organizações sociais tiveram sobre a Conferência. "Em relação ao Terminator, no primeiro dia da COP as delegações nem sabiam direito do que se tratava nem o que estava em jogo. Isso só mudou com as seguidas manifestações da Via Campesina, com as atividades do Fórum Global da Sociedade Civil e a pressão constante dos nossos representantes e companheiros sobre as delegações oficiais. Nuca foi tão clara uma mudança de atitude dos negociadores governamentais como foi no debate sobre GURTS nesta COP", afirma Silvia, que também avaliou como positivo o maior espaço dado às ONGs e aos movimentos sociais no interior do evento oficial.

Por outro lado, foi estarrecedor a forma com que as delegações oficiais tiveram fortes representações das empresas, denuncia pesquisadora. "As empresas são muito diferentes do resto da sociedade civil. São diferentes das ONGs, dos indígenas, das comunidades tradicionais e dos movimentos sociais, poi defendem interesses muito particulares, a sua própria garantia de fazer dinheiro. Não como os outros setores, que lutam por direitos e interesses comuns a todos".

Sobre o futuro da CDB, tanto Silvia quanto Martin Kaiser, do Greenpeace, acreditam que o desvirtuamento da Convenção traz sérias ameaças, mas que a pressão da sociedade civil tem um papel fundamental na salvação deste mecanismo de debate sobre a biodiversidade.

"Teoricamente, a CDB tem todas as ferramentas para implementar mecanismos de proteção da biodiversidade, mas até agora não houve vontade política para implementar. É importante agora que a sociedade civil pressione os governos, com especial foco nos ministérios da economia e do comércio para que brequem a ganância do setor corporativo", avalia Kaiser.
(Agência Carta Maior, 30/03/06)

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