Procuradores ampliam ação na área ambiental
2006-03-28
No segundo semestre de 2004, o governo do Estado de São Paulo parecia a um passo de iniciar as obras do trecho Sul do Rodoanel, uma estrada projetada para desafogar o trânsito da capital e acelerar o fluxo de mercadorias no caminho até o porto de Santos. Uma procuradora federal foi à Justiça para deter o processo, preocupada com o impacto ambiental que a obra poderá ter. A estrada obteve sua primeira licença há um mês, mas ainda falta muito para as obras começarem.
Em Minas Gerais, a construção de duas hidrelétricas de um consórcio liderado pela Companhia Vale do Rio Doce na região de Uberlândia sofreu um atraso superior a um ano. Procuradores lançaram dúvidas sobre a qualidade dos estudos apresentados pelo consórcio para avaliar o impacto das usinas e convenceram um juiz a suspender as licenças concedidas ao empreendimento. A decisão foi derrubada por outro juiz vários meses mais tarde.
No Pará, a Cargill acaba de ser condenada a apresentar estudos mais detalhados sobre os problemas criados por um terminal de armazenagem de soja que ela construiu à beira do rio Tapajós, em Santarém, há mais de dois anos. O procurador que cuida do caso recentemente propôs uma trégua à empresa. Sugeriu que, além de fazer os estudos, ela ajude a financiar uma universidade e realize outros investimentos.
A atuação do Ministério Público na área ambiental tem criado incômodo e embaraço para políticos e empresários no país inteiro. Os procuradores têm levado um número crescente de questões ambientais aos tribunais, ganharam a simpatia de muitos juízes e pretendem interferir cada vez mais no desenho de grandes projetos de infra-estrutura.
Essa situação preocupa muito as empresas, porque tem provocado custos imprevistos e complicado bastante a execução dos seus projetos. "Existe uma tendência do Ministério Público de levar até mesmo problemas de âmbito local para a esfera federal e eles sempre acham pretextos para justificar sua atuação", afirma o diretor de transmissão e energia do grupo Rede, José Eduardo Costanzo, que distribui eletricidade em cinco Estados.
Os procuradores acreditam que estão apenas cumprindo seu papel de zelar pela aplicação das leis e proteger a natureza nos lugares em que ela é mais frágil. "Não estou aqui para impedir o desenvolvimento do Brasil, mas para fazer cumprir a lei", diz o procurador Renato de Rezende Gomes, que trabalha em Santarém. "Muitos projetos são feitos sem nenhum cuidado e alguém precisa se preocupar com isso."
Foi por causa da persistência do Ministério Público que o governo paulista passou a dar atenção a duas comunidades indígenas afetadas pelo Rodoanel e aos resquícios de Mata Atlântica que as obras da estrada põem em risco. O terminal da Cargill no Pará, que atraiu grandes plantações de soja para uma região vulnerável da Amazônia, foi construído sem um estudo mais aprofundado sobre efeitos colaterais como esse.
Num caso que ficou célebre, a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do grupo Votorantim, passou cinco anos tentando persuadir órgãos ambientais de São Paulo e do Paraná a aprovar a hidrelétrica de Tijuco Alto, que deseja construir na divisa entre os dois Estados. Os procuradores entraram em ação e anos depois o grupo aceitou apresentar estudos mais completos, reconhecendo falhas no projeto original.
Empreendimentos que criam riscos significativos para o meio ambiente só podem ser tocados para frente depois que estudos detalhados são discutidos com a sociedade e aprovados pelas autoridades. É o que a lei diz, mas a exigência é burlada com freqüência. "A maioria dos estudos entregues pelas empresas é muito ruim", diz Marco Antonio Fujihara, diretor de sustentabilidade da PricewaterhouseCoopers.
Os descuidos das empresas dão munição para o Ministério Público, mas há outras explicações para o fato de tantos projetos irem parar nos tribunais. Os procuradores têm sido hábeis em explorar as ambigüidades da legislação ambiental a seu favor, transferindo para a esfera federal empreendimentos cuja discussão poderia permanecer restrita aos órgãos ambientais estaduais.
É o que acontece quando há comunidades indígenas por perto. A legislação diz que é atribuição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) o licenciamento de projetos no interior de terras indígenas, mas o Ministério Público tem usado isso para levar à esfera federal empreendimentos que, mesmo localizados longe dos índios, podem afetá-los de alguma forma.
Em São Paulo, as pequenas aldeias que ficam na área de influência do Rodoanel estão a vários quilômetros de distância do local por onde a estrada deverá passar. Mas os procuradores do caso argumentaram que a estrada poderá atrapalhar a vida dos índios depois que ficar pronta, com o avanço da cidade grande sobre seu território. O Ibama acabou aceitando entrar no caso.
Em Minas Gerais, um procurador quis obrigar o Ibama a entrar no licenciamento de uma usina da Vale do Rio Doce em Aimorés alegando que ela prejudicaria índios que vivem perto de outra usina no mesmo rio, entre outras razões. A iniciativa não prosperou. Na origem da briga com a Cargill no Pará, havia a suspeita de que ela construíra seu terminal sobre um cemitério indígena. Nunca se provou sua existência.
Por trás da atuação dos procuradores também há muita desconfiança em relação aos órgãos ambientais estaduais. "Eles são mais frágeis diante de pressões políticas e têm pouca independência para contrariar interesses das empresas e dos governadores", diz Antônio Herman Benjamin, um promotor paulista que se afastou da carreira para trabalhar numa organização não-governamental, a Planeta Verde.
Muitas empresas atribuem à agitação dos procuradores boa parte da morosidade no andamento dos processos de licenciamento ambiental. Executivos de duas multinacionais com dificuldades nessa área disseram ao Valor que identificaram como uma das principais causas de seus problemas o medo que os técnicos dos órgãos ambientais têm de ser processados pelo Ministério Público por algum deslize.
Críticos no meio empresarial duvidam da capacidade dos procuradores de exercer de forma eficiente um papel tão abrangente na área ambiental. "Eles não estão bem aparelhados para analisar tantos casos ao mesmo tempo", avalia o diretor de planejamento da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), Giancarlo Gerli.
A Procuradoria-Geral da República mantém em Brasília uma equipe de apenas 27 especialistas para ajudar a analisar empreendimentos do país inteiro, incluindo biólogos, engenheiros e outros técnicos. A atividade do Ministério Público deixa esses funcionários sobrecarregados e às vezes os procuradores têm que esperar meses por um parecer.
Uma saída que muitos defendem é pressionar empresas e órgãos ambientais a fazer acordos sem esperar a palavra final de um juiz. "Tudo que depende do Judiciário demora demais e às vezes é melhor resolver o problema assim", diz a procuradora Ana Cristina Bandeira Lins, que fez isso no caso do trecho Sul do Rodoanel ao assinar um acordo com o Ibama e o governo de São Paulo.
Conhecidos como termos de ajustamento de conduta, esses acordos permitem evitar o prolongamento das disputas judiciais ao comprometer os empreendedores com investimentos que amenizem o impacto ambiental de seus projetos. Mas nem sempre os acordos são seguidos à risca, e o Ministério Público tem grandes dificuldades para fiscalizar seu cumprimento.
Um grupo de trabalho criado na área ambiental da Procuradoria-Geral da República para discutir a participação do Ministério Público em grandes empreendimentos acha que a solução é agir cada vez mais cedo. "Não adianta chegar quando a obra já está pronta e o dano ambiental, consumado", diz a procuradora Maria Luiza Grabner, integrante do grupo. "Precisamos evitar que as coisas cheguem nesse ponto."
Recentemente, o grupo editou um pequeno manual para orientar a atuação do Ministério Público nessa área. Ele recomenda que os procuradores acompanhem os processos de licenciamento ambiental de grandes obras desde o início, exijam das empresas estudos minuciosos, ajudem a mobilizar a população das áreas afetadas pelos empreendimentos e se aliem com ONGs para pressionar os órgãos ambientais.
Pode ser uma maneira de evitar que projetos muito complexos acabem paralisados por ações judiciais, mas não é um caminho livre de riscos. "O Ministério Público exerce um papel importante nessa área, mas tem cometido abusos", diz o secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, José Goldemberg. "É o que ocorre muitas vezes quando ele tenta tomar o lugar do Estado como licenciador dos projetos."
(Valor Online, 27/03/06)