Gasoduto do Cone Sul, uma obra de R$ 50 bi e muita polêmica
2006-03-27
O projeto é ambicioso; a obra, faraônica; os recursos para concretizá-la, mais do que vultosos: US$ 23 bilhões, ou cinco vezes todo o orçamento destinado ao programa de combate à fome no ano passado. Ao câmbio atual, a obra - um megagasoduto de 9,7 mil quilômetros de extensão atravessando o Brasil para ligar o mercado produtor de gás da Venezuela ao consumidor, da Argentina - estaria orçada em quase R$ 50 bilhões.
Para o estudo de viabilidade técnica já foram destinados US$ 9,6 milhões pelos três governos e um dos idealizadores do projeto, o ex-vice-presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Darc Costa, garante que em julho serão apresentados aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Hugo Chávez (Venezuela) Néstor Kirchner (Argentina), o traçado definitivo e as alternativas para financiamento da obra. "A decisão política já foi tomada e é irreversível. Este é um projeto de Estado, não de governo", salientou Costa, em entrevista no escritório onde montou a DLC, empresa de consultoria.
O mapa do gasoduto ornamenta permanentemente sua mesa de trabalho e ocupa quase todo o espaço. Em agosto do ano passado, ele o apresentou pela primeira vez ao presidente venezuelano, de quem se tornou amigo e uma espécie de assessor informal. Desse primeiro encontro com Chávez, a decisão dos três presidentes foi meteórica, como descreve Darc:
"Uma semana depois, tomei um susto: em Assunção (Paraguai), ele disse este é o projeto que tenho de fazer. Tinha encampado a idéia. Em novembro, o Chávez me chamou outra vez. Expliquei longamente (o projeto) lá em Porto Ordaz (cidade industrial). Ele disse: gora um avião vai levar você para Caracas e para o Brasil. O Kirchner está chegando aqui. Deixa esse mapa para eu mostrar para ele. O Kirchner assinou o memorando de entendimentos dessa conversa. Em dezembro, eles foram a Montevidéu e falaram com o Lula: Olha, isso tem de passar aí, não posso passar em área sísmica (referindo-se à montanhosa região andina)".
Para não atravessar os Andes, a rede de dutos terá de se embrenhar pela selva amazônica, um dos muitos obstáculos que, segundo especialistas, torna duvidosa a execução da obra. "Há mais de dez anos, a Petrobrás está lutando para levar o gás de Urucu (jazida descoberta em 1986) para Manaus e não consegue construir um duto de 700 quilômetros. Como fazer então para passar por 5 mil quilômetros da Amazônia legal?", indaga Marco Aurélio Tavates, que foi diretor de gás da Repsol e hoje é consultor na empresa de assessoria empresarial GásEnergy.
Dizendo-se neutro em relação ao projeto, ele enumera outros grandes problemas na idéia: a Venezuela, em conflito com as petroleiras que operam no país devido às mudanças regulatórias que promoveu, teria de investir, no mínimo, US$ 15 bilhões para elevar sua produção de gás. "Como Chávez iria atrair estes investimentos? E mais: estaria a Venezuela disposta a vender o gás, com subsídio, a US$ 1,2 o milhão de BTU (medida britânica de energia) por cerca de 20 anos para financiar o seu projeto de integração sul-americana? E quando mudar o governo, estas novas regras seriam mantidas?", pergunta o técnico, lembrando que o mesmo produto pode ser vendido aos Estados Unidos por cerca US$ 5 o milhão de BTU.
"Eu costumo chamar este gasoduto de Transdelirante", alfineta Adriano Pires, sócio do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE) e ex-diretor de gás da Agência Nacional de Petróleo. Além de considerar inviáveis os custos econômico e ambiental da obra, ele lembra que, como está prevista a tarifa postal (cobrança da mesma tarifa em qualquer ponto da obra), o Brasil estaria subsidiando o consumo dos argentinos.
Ele argumenta que a função principal de um projeto de transporte de gás tem de levar em conta o mercado consumidor. Ou seja: é necessário que haja um mercado demandante de gás, basicamente industrial, ao longo do trajeto. Mas reconhece que uma rede desta extensão poderia incentivar realmente a construção de indústrias ao longo de seu itinerário.
Mas nem todas as vozes são discordantes da idéia, formalmente já encampada pelos três governos, alinhados na base política. Tanto que foi criada uma comissão de estudos com representantes dos três staffs para elaborar o estudo técnico do projeto, o tal que já recebeu recursos de quase US$ 10 milhões. "Quem diz que esse gasoduto é inviável só pode ser míope, ter uma visão de curto prazo e não saber fazer contas", declara o diretor da área de gás da Petrobrás, Ildo Sauer, ardente defensor do projeto.
Para ele, a interligação de Venezuela, Brasil e Argentina por meio do gasoduto do Cone Sul vai promover a integração energética da América Latina. E cita exemplos paralelos, como o da Rússia com a Europa e da atual construção de um gasoduto na América do Norte, envolvendo os Estados Unidos (Alasca) e o Canadá.
O mesmo exemplo é usado às avessas por Marco Tavares. "Basear um projeto de longo prazo em afinidades entre governantes é um grande risco geopolítico. Basta ver o que aconteceu entre a Rússia e a Ucrânia, quando o poder na Ucrânia mudou para uma corrente política não aliada a (Vladimir) Putin, ele simplesmente aumentou o preço do gás."
Pelo projeto, passariam pelo gasoduto 150 milhões de metros cúbicos de gás, na operação a plena capacidade. É mais do que triplo do volume transportado hoje pelo gasoduto Brasil-Bolívia, uma projeto que consumiu quase três décadas, desde a concepção até o fim da obra. Por toda a complexidade envolvida no "gasoduto da integração", o ex-diretor geral da ANP, Sebastião do Rego Barros, classifica o projeto com apenas uma palavra: "Irrealista".
"Trata-se de um projeto com custo altíssimo, que teria de atravessar regiões de grande sensibilidade ambiental, quando há alternativas menos caras, com obras menos faraônicas e mais bom senso, como o gás boliviano. Além disso, a entrada do gás venezuelano inviabilizaria grandes projetos brasileiros num momento em que foram descobertas jazidas de gás em Santos e no litoral do Rio e Espírito Santo. É uma decisão exclusivamente política. Eu estaria preocupado se houvesse alguma viabilidade no projeto. Mas, como não há nenhuma..."
Rego Barros comparou o gasoduto às megaobras do regime militar, que acabaram fadadas ao fracasso, como a Transamazônica e a Belém-Brasília. Darc Costa desdenha as críticas e a polêmica que projeto está causando no setor de energia. "O problema é nossa incapacidade geral de estruturar processos grandes. Itaipu (hidrelétrica) era considerada uma loucura. Mas tudo na vida é uma questão de custo-benefício."
Interesses políticos, a outra pedra no caminho
Questionamentos técnicos estão longe de ser a única pedra no caminho do gasoduto do Cone Sul. Caso consiga passar pelo duro teste de comprovar sua viabilidade, o projeto terá de agregar os interesses políticos mais diversos. O ex-vice-presidente do BNDES Darc Costa relata dois exemplos clássicos.
Número um: o senador maranhense José Sarney (PMDB-AP) propôs uma alteração no traçado, um "atalho", para que o duto passe pelo Amapá, seu reduto eleitoral. Número dois: a Argentina resiste a aceitar a passagem da rede pelo Uruguai, o caminho mais sensato até o seu território. Prefere outro "desvio", pelas províncias do norte da Argentina, o que acrescentaria alguns milhares de quilômetros à obra.
Costa parece indiferente às críticas e aos percalços que precisa enfrentar. Como relata, foi professor, na Escola Superior de Guerra, do atual chefe da casa de despachos de Hugo Chávez, general Martin de Mendoza, que apresentou os dois. Entusiasma-se ao falar do gasoduto, que classifica como "o principal instrumento de integração" da América do Sul.
"Se conseguirmos estruturar uma aliança Buenos Aires-Brasília-Caracas, o resto cai naturalmente. Nem a Colômbia resiste", diz, referindo-se à adesão que espera de outros países sul-americanos, como Bolívia e Uruguai. "Hoje este é um projeto político que está se institucionalizando tecnicamente. A discussão que está se tendo agora é no plano técnico, a decisão política já foi tomada", assegura.
Nos últimos meses, ele já perdeu a conta de suas andanças por Venezuela, Chile, Argentina e Uruguai. É ambicioso ao desenhar fórmulas de financiamento da obra. Pensa na emissão de bônus lastreados na utilização do gasoduto. "É facílimo convencer as empresas a investir", comenta. E cita o exemplo de Carajás, no Pará, por onde está prevista a passagem da rede. É a principal província produtora de minério da Companhia Vale do Rio Doce.
Darc sonha com a instalação de siderúrgicas no trajeto, que aproveitariam a proximidade com o minério, o gás e o porto para elevar a exportação de placas de aço, produto de maior valor do que a matéria-prima vendida pela Vale. "Se tivermos esse gás, tiramos a China do mercado mundial de aço. Ninguém vai conseguir competir conosco. E mais: esse projeto foge à tendência natural do continente de desenvolver o litoral porque, obrigatoriamente, passa pelo centro do continente" diz.
Ele sustenta que o megagasoduto será o vetor central de industrialização do Norte e do Nordeste, para onde pretende levar ramificações. Propõe também que o Brasil troque parte da dívida por ações de uma empresa transnacional que seria constituída para financiar o projeto, transferindo recursos do setor financeiro para o setor produtivo. Darc está convencido de que o projeto só não interessa aos aliados dos Estados Unidos, principal destino do gás venezuelano.
(O Estado de S. Paulo, 26/03/06)