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2006-03-27
A privatização de áreas de floresta por algumas organizações não-governamentais, sob o argumento da conservação ambiental, e expulsam comunidades locais foi alvo de denúncia em evento paralelo do Fórum Global da Sociedade Civil, organizado pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (Fboms) durante a 8ª Conferência das Partes da Convenção de Diversidade Biológica. Um desses casos se refere à Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, no litoral do norte do Paraná, onde se localizam três reservas naturais propriedades da ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem (SPVS).

De acordo com Jonas Aparecido Souza, morador de Antonina, cidade que está dentro da área da APA de Guaraqueçaba de 313 mil hectares, a ONG brasileira SPVS (www.spvs.org.br) comprou grandes extensões do litoral paraense, ricas em recursos naturais e vegetação nativa, transformando-as em reservas que passaram a ser propriedades particulares da ONG.

“A área abriga o terceiro mais importante complexo lagunar-estuarino do mundo, um rico berçário para inúmeras espécies animais e vegetais. Constituída por montanhas, planícies litorâneas, enseadas baías, rios, ilhas e diferentes formações vegetais como mangues, restingas e florestas”, descreve o informe publicitário da SPVS.

“São milhares de hectares nas mãos de uma única ONG. Ela está criando um latifúndio ambiental com interesse na biodiversidade do lugar”, denuncia Souza. Na APA de Guaraqueçaba foram declaradas três reservas como propriedades da SPVS: Reserva Natural Serra do Itaqui (2000), Reserva Natural do Cachoeira e Reserva Natural Morro da Mina (ambas de 2002). Elas somam ao todo, 19 mil hectares. Além da SPVS, há cerca de outras 60 ONGs com atividades semelhantes.

Nos últimos dez anos, atividades como a da SPVS começaram a aparecer na região, e, segundo Souza, se intensificaram a partir de 1999. Sueli Ota, diretora-técnica da ONG, explica que o projeto tem duração de 40 anos e está em seu sexto ano de aplicação. Ota afirma que as atuais reservas eram antigos pastos de búfalo, que devastaram a mata nativa e hoje foram abandonados pelos grandes proprietários dessas pastagens. Ela argumenta que a intenção da SPVS é recuperar essas áreas, tendo como objetivo a absorção de gás carbônico da atmosfera pelo plantio de árvores.

Contudo, Maria Rita Reis, assessora jurídica da ONG Terra de Direito, questiona essas informações, explicando que, apesar de haver pastagens de búfalo nas propriedades da ONG, essa não é a maioria das terras adquiridas pela SPVS. “A SPVS não comprou áreas desmatadas, elas são conservadas, super protegidas. Ela não tem interesse em áreas devastadas. Tem até fontes naturais de água lá”. Além disso, Reis explica que a absorção de gás carbônico, na verdade, refere-se à compra de créditos de carbono por empresas poluentes.

A compra das reservas foi possível por meio da parceria com a ONG conservacionista norte-americana The Nature Conservancy (TNC), que foi responsável por captação de recursos internacionais de empresas de energia (American Eletric Power), automobilística (General Motors – GM) e petróleo (ChevronTexaco).

Elizabeth Bravo, coordenadora da Rede América Latina Livre de Transgênicos (Rallt), explica que ONGs, como a TNC, promovem parcerias com empresas que destroem o meio ambiente, como estratégia para continuar a exploração. Ela ainda menciona que não é raro o consentimento do próprio governo. “O objetivo não é só preservação, mas também são negócios”, diz.

COMUNIDADES
A aquisição dessas terras não esbarra apenas na questão de apropriação de recursos naturais. De acordo com Jonas Aparecido Souza, a região abrigava inúmeras comunidades locais que estavam assentadas ali há anos, como o caso da sua família que vive em Antonina. “Há 80 anos, a região foi ocupada por populações. São comunidades de posseiros e que vivem de extrativismo e agricultura de subsistência”, conta Maria Rita Reis.

Quando a região passou a ser reserva, a área foi fechada e muitas comunidades foram obrigadas a deixar o lugar onde moravam e o acesso à região passou a ser proibida e controlada. “A ONG está fechando espaços e isso tem sido motivo de conflito. A reserva isolou famílias e reduziu os espaços delas. As comunidades estão sofrendo um processo de exclusão”, declara Souza. “A questão é: qual o direito dessas ONGs de entrar nessas áreas e proibir a entrada e o acesso da população?”, coloca Reis.

Essas famílias já haviam sofrido problemas fundiários, quando os criadores de búfalos chegaram e tomaram a posse de terra nas últimas décadas. “Eles estão sendo empurrados cada vez mais para áreas de difícil acesso”, diz Reis, referindo-se à nova expulsão das comunidades de suas terras pela ONG.

Sueli Ota diz que, na área da APA de Guaraqueçaba, quase não há populações e que, coincidentemente, a concentração maior se ao redor da APA. “Tem um ou outro, que normalmente são empregados dessas fazendas de búfalo, mas não dá para dizer que é comunidade. As pessoas vivem muito dispersas nessa região. Elas vivem no fim do mundo”, diz. Reis afirma que há na região comunidades com até 200 pessoas e que muitas delas ainda resistem, vivendo na área de preservação, enquanto outras foram expulsas para os arredores da APA. “Muitos estão acampados, desenvolveram assentamentos”, conta.

A diretora técnica da SPVS diz que as comunidades locais têm uma tradição predatória de extrativismo, por isso prejudicam o meio ambiente da região. “Eles têm essa cultura extrativista e é muito difícil mudar”. Para ela, é importante a ONG investir na educação ambiental dessas comunidades e, para isso, a SPVS tem programas de desenvolvimento sustentável e educação, além de projetos para o ecoturismo. Ela menciona o projeto da agricultura da banana orgânica – que considera bem-sucedido e contou com financiamento de 150 mil dólares - e da melipolicultura, que envolvem respectivamente 140 e 50 pessoas. Segundo Ota, a ONG também contratou 70 pessoas funcionários da comunidade. A região, no entanto, tem uma população de mais de 12 mil pessoas.

“É um absurdo. Eu jamais apoiaria uma reserva onde havia comunidades locais”, afirma André Muggiati, do Greenpeace. “Se não há população envolvida, eu não tenho nada contra, embora eu acho que é dever do Estado criar essas áreas. É obrigação do governo conservar”.

Maria Rita Reis, assessoria jurídica da ONG Terra de Direitos, afirma que as comunidades locais sobreviviam com os próprios recursos naturais da região, principalmente a pesca, e tinham uma relação de harmonia, e não predatória, com o meio ambiente. Para ela, a conservação dos recursos e da vegetação nativa foi possível justamente pelo cuidado e trato que as comunidades tiveram em relação à proteção ambiental durante todos esses anos. “Não há nem estradas, o lugar é super preservado. A agricultura era voltada só para eles. Não vendiam quase nada, era tudo para a sobrevivência da comunidade”. Souza confirma: “Por causa das comunidades locais, essa é uma das áreas mais conservadas”.

“A comunidades sofrem com repressão ambiental”, acrescenta Souza. Como as suas atividades tradicionais são hoje proibidas pela demarcação das reservas, ele conta que a região é monitorada e a ação de controle também é feito por órgãos governamentais: “Há seguranças privados que fazem monitoração 24 horas por dia e impedem as comunidades de extraírem os recursos. E também tem aparato do Estado e dos órgãos [públicos]. As pessoas são presas ou autuadas.”

Além disso ele declara que ONGs como a SPVS tem assento nos conselhos dos órgãos ambientais responsáveis pela manutenção das reservas, o que permite que elas impeçam a discussão e as reivindicações das comunidades dentro desses conselhos.

Reis afirma que ONGs como a SPVS são responsáveis pelo financiamento do conselho do litoral e por isso contam com o apoio do governo.

“Há problemas de extração ilegal dentro das reservas. Temos funcionários lá, os ‘guarda-parques’, mas eles só têm função de orientar e educar, quando alguém é pego extraindo recursos das reservas. É uma ação educativa, eles não usam armas. Mas também temos proteção dos meios oficiais, como o batalhão da polícia florestal e técnicos das instituições do governo. Quando alguém é pego, tem que fazer o boletim de ocorrência e chega a ter prisão”, afirma Ota.

A fim de tentar permanecer nas suas terras, as comunidades locais aderiram ao Movimentos dos Sem-Terras (MST) numa política de resistência e tentativa de estímulo às discussões entre a população. Contudo, Souza afirma que isso não tem evitado o êxodo populacional da região, pois não há alternativas de sobrevivência, como as tradicionais agricultura e pesca de subsistências. Ele lembra que a cidade de Guaraqueçaba tinha uma população de 23 mil habitantes, hoje são 9 mil.

“As comunidades ficaram sem meios e condições de sobrevivência. Seria preciso propor diferentes alternativas a elas. Mas nada foi feito. Os recursos dessas ONGs não chegam às comunidades. As entidades ficam com o recurso, fazem propaganda de que estão fazendo trabalho social, mais isso não acontece”, diz Souza. Ele explica que as comunidades que sempre sobreviveram do extrativismo, hoje tem que viver de maneira ilegal pescando ou extraindo palmito. Reis lembra que a situação da cidade de Antonina é complicada: “Lá só tem o porto e a agricultura de subsistência”, diz.
(Natália Suzuki, Carta Maior, 24/03/06)
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