Tratados como crianças sem malícia pela Funai e por ONGs, os índios já tiram 24 milhões de reais de grandes empresas
2006-03-27
Uma das peculiaridades do homem branco ocidental cristão é sua
capacidade de culpar-se pelo sofrimento que seus antepassados impuseram
a outros povos. Dos gregos aos romanos, dos hunos aos teutônicos, dos
maias aos astecas, dos tupis aos ianomâmis, nenhuma civilização ágrafa
ou conhecedora do alfabeto deixou um único registro escrito – ou na
tradição oral – de lamento de suas conquistas obtidas com o uso da
violência. Essa consciência só passou a existir modernamente. Embora
pregada pelos cristãos há 2 000 anos, ela só veio com os confortos
materiais que o capitalismo trouxe a certas parcelas das populações. É
um luxo, assim como o secador de cabelos, a anestesia e os antibióticos.
Em alguns casos, essa culpa é tão intensa que provoca, entre os
vencedores, a idealização do caráter e dos hábitos dos vencidos. É o
caso do tratamento dado aos índios no Brasil. Depois de os escravizarem
e massacrarem por séculos, os colonizadores decidiram agora consagrá-los
como crianças despidas de malícia cuja única ambição é usufruir, em paz
e isoladamente, os recursos naturais de suas terras. Com o tempo, essa
utopia idílica ganhou feições de crença e institucionalizou-se. Hoje, é
consagrada pela política paternalista da Fundação Nacional do Índio
(Funai) e pela atuação de ONGs e missionários religiosos, mais
preocupados em aumentar as áreas das reservas indígenas do que em criar
condições para o desenvolvimento econômico e social de suas populações.
Nos últimos anos, a vida real encarregou-se de comprovar o equívoco
dessa concepção. Os indígenas brasileiros não são tão ingênuos assim nem
tão refratários ao progresso. Além de usarem vários artifícios para
fugir da tutela governamental, eles estão cada vez mais empenhados na
tarefa de ganhar dinheiro. Para isso, fazem qualquer negócio. Algumas
aldeias usam a própria capacidade de trabalho para prosperar, explorando
comercialmente suas terras, o que a lei restringe. É o caso dos parecis,
donos de 1,3 milhão de hectares em Mato Grosso. Sem apoio oficial, eles
fecharam uma parceria com produtores rurais da região para plantar soja
na reserva, o que deverá render-lhes 2 milhões de reais por ano. Outras
etnias vivem de royalties pagos por empresas, como a dos
waimiris-atroaris, na divisa do Amazonas com Roraima. Eles recebem um
pagamento mensal de 90 000 reais da Eletronorte, desde 1988, como
indenização pela inundação de 300 quilômetros quadrados da reserva para
a construção de uma barragem. Esses mesmos waimiris também cobram um
pedágio mensal de 50 000 reais da mineradora Paranapanema, que usa uma
estrada de 130 quilômetros dentro da reserva.
Um terceiro grupo de indígenas resolveu amealhar recursos de forma menos
benigna. Eles copiam o que há de pior entre os métodos do homem branco –
no caso, as táticas de invasão e achaque do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), grupo medieval do qual recebem apoio. No último
ano, esses métodos foram usados para destruir ferrovias, seqüestrar
funcionários de empresas e invadir fábricas. Em fevereiro, os guajajaras
interditaram um trecho da Ferrovia Carajás no Maranhão e seqüestraram
quatro trabalhadores da Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores
mineradoras do planeta, para pressionar o governo federal a aumentar
verbas para programas de saúde em suas aldeias. A empresa nada tinha a
ver com a história. Os xikrins, no Pará, usam o mesmo artifício quando
querem pressionar pelo aumento da mesada que a Vale lhes paga pelo fato
de a ferrovia passar em suas terras. No fim do ano passado, 280 deles
invadiram instalações da mineradora armados com bordunas. Além da
extorsão, os caciques da tribo são acusados de utilizar em benefício
próprio parte dos recursos recebidos, além de exigir da empresa carros e
até um avião. A Vale é de longe a maior vítima das tribos baderneiras. A
companhia calcula que deixou de exportar 1 milhão de toneladas de
minério de ferro nos primeiros meses do ano devido à bandalheira
indígena. O total perdido representa 0,4% da produção do ano passado.
Parece pouco, mas são alguns milhões de dólares perdidos pela economia
brasileira. De resto, os índios têm sido ingratos – ou ambiciosos ao
extremo. A Vale destinou cerca de 50 milhões de reais nos últimos anos
para atender uma população de 3.000 índios.
Algo similar ocorreu no Espírito Santo com a Aracruz, a maior fabricante
mundial de celulose de eucalipto (matéria-prima do papel). A empresa
disputa com tupiniquins e guaranis a posse de uma área de 180
quilômetros quadrados. Em 1998, a empresa fechou um acordo, com as
bênçãos da Funai e do Ministério Público Federal, segundo o qual poderia
utilizar parte das terras em troca de uma mesada às tribos. A idéia do
acordo era fantástica demais para ser verdade: com a ajuda da Embrapa, o
dinheiro seria usado para implementar técnicas de cultivo que
garantiriam a subsistência e a melhoria das condições de vida dos
índios. No fim do ano passado, depois de queimarem 23 milhões de reais,
os índios resolveram romper o trato e agora reivindicam a terra de
volta. Assim, como se não tivessem assinado acordo algum. Para
pressionar a empresa, 150 indígenas ocuparam por 32 horas a sede da
companhia armados de tacapes, arcos e flechas e com o apoio de
militantes do MST. A Funai, que na época apoiou o acordo, agora ficou do
lado dos índios. "Essa é uma atitude sábia, que demonstra o senso de
oportunidade deles", justifica Mércio Gomes, presidente da instituição.
Os índios – como se poderia dizer dos parlamentares nos dias de hoje –
são inimputáveis. Não podem ser punidos pelas leis dos "brancos" porque
não as compreendem, ainda que falem português, tenham antenas
parabólicas e dirijam carros. Estudiosos da questão indígena dizem que,
além desse anacronismo da legislação, a ineficiência da Funai também
explica em grande parte os conflitos. Criada há quatro décadas com a
missão de tutelar os índios, a Funai é incapaz de garantir a integridade
das reservas que estão sob sua jurisdição, as quais são constantemente
invadidas por sem-terra, madeireiros e garimpeiros. Para piorar a
situação, sob o argumento de que é preciso proteger a identidade
cultural dos índios, a Funai tenta impedir que eles desenvolvam
atividades econômicas dentro das reservas, preferindo sustentá-los com
cestas básicas e esmolas. "A Funai nos enxerga da mesma forma que os
colonizadores de 500 anos atrás. Ou seja: como seres retardados e
incapazes", desabafa Ailton Krenak, um dos muitos índios brasileiros com
curso superior e que atualmente é assessor especial do governo de Minas
Gerais. Essa ótica distorcida de alguns ativistas pode ser encontrada na
cidade de São Paulo. O novo trecho do Rodoanel, uma das mais importantes
obras viárias do país, passará perto das aldeias Krukutu e Barragem, no
extremo sul da cidade. Os próprios índios disseram que não estão contra
a estrada, que passará a mais de 8 quilômetros das tribos. Mas mesmo
assim ongueiros utilizaram uma suposta ameaça aos indígenas como
argumento para retardar as obras.
A política indígena brasileira é norteada pelo Estatuto do Índio, um
documento editado em 1973 pelos militares. É com base nessa lei – cuja
reformulação tramita no Congresso Nacional há mais de dez anos – que a
Funai dita as regras sobre a vida dos 500 000 índios existentes no país.
Como conseqüência dessa legislação anacrônica, tem-se o seguinte quadro:
índio não pode fazer negócio com branco, mas índio precisa de dinheiro.
Entretanto, como a Funai restringe atividades comerciais dentro das
reservas e não as fiscaliza direito, os indígenas fazem negócio com
madeireiro, traficante, garimpeiro e contrabandista. Ou buscam fontes
extras de renda para não morrer à míngua. No ano passado, apenas cinco
empresas – Vale do Rio Doce, Aracruz, Eletronorte, Itaipu e Paranapanema
– destinaram, juntas, 23,8 milhões de reais para dez etnias de cinco
estados, o equivalente a 63% do que a Funai aplicou no mesmo período em
projetos de assistência social em todas as 582 reservas indígenas
existentes no país.
Por essas e outras, a extinção da Funai é defendida por estudiosos do
tema e até por algumas lideranças indígenas, como o sateré-mawé
Jecinaldo Barbosa Cabral, chefe da Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a maior agremiação indígena do
país. "A Funai é um órgão arcaico, cuja existência não se justifica
mais", afirma. Uma proposta defendida tanto por especialistas como por
índios é que, em caso de sobrevivência, a Funai se limite a cuidar de
índios isolados. Diz o antropólogo Stephen Baines: "O Brasil não é como
o México ou a Bolívia, onde a população é de maioria indígena. Não se
justifica manter um órgão falido para cuidar de índios se eles podem ser
mais bem atendidos caso sejam vistos como qualquer outro cidadão
brasileiro". (Veja, 25/3)