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2006-03-21
A 8.ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8), o mais importante evento da Organização das Nações Unidas sobre conservação e uso da biodiversidade, que começou ontem (20) em Curitiba coloca o Brasil numa situação delicada. Dentre os 188 países signatários, o País é o que carrega a maior responsabilidade - não apenas por ser o anfitrião, mas por deter a maior riqueza biológica do planeta.

Em contraponto às recentes vitórias sobre o desmatamento e à criação de unidades de conservação na Amazônia, o País chega à reunião ainda sem uma lei que regulamente, de maneira positiva, o acesso de seus pesquisadores à biodiversidade - a maior parte ainda desconhecida da ciência. Serão 11 dias de longos debates e negociações, com a participação esperada de cinco mil pessoas e pelo menos 100 ministros de Estado.

O tema mais importante na pauta brasileira é a negociação de um regime internacional de acesso aos recursos genéticos e repartição de benefícios por seu uso. A idéia é criar um arcabouço legal que regulamente a exploração comercial entre países e o patenteamento de produtos desenvolvidos a partir da biodiversidade, como forma de combater a biopirataria. Por exemplo, o uso de plantas e animais na confecção de medicamentos e cosméticos.

A negociação das regras opõe os países em desenvolvimento (detentores da riqueza biológica) e os países mais desenvolvidos (detentores das indústrias e da tecnologia). "É um debate com dois pontos de vista, o daqueles que têm e o daqueles que usam a biodiversidade", disse o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco. "Para o Brasil, trata-se de uma questão estratégica, pois precisamos de um regime nos dois sentidos."

O Brasil quer garantir que sua biodiversidade não será explorada por outros países sem as garantias de reconhecimento e repartição de benefícios - inclusive com as comunidades detentoras do conhecimento. "Antes, a biodiversidade era considerada patrimônio comum da humanidade. A convenção estabeleceu que os recursos são de soberania dos países, e não do mundo", explica a coordenadora geral de Políticas e Programas em Biodiversidade do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Ione Egler.

Uma das questões mais delicadas é a dos direitos das chamadas populações tradicionais, que podem ser indígenas, mas que incluem também povos de composição étnica mista, como os caboclos da Amazônia brasileira.

Boa parte do conhecimento "aplicado" sobre a biodiversidade, como o uso de determinada planta contra doenças, faz parte da sabedoria tradicional desses povos. Será que eles devem ser contemplados pela repartição de benefícios, ao lado do governo do país de onde a espécie é originária, ou mesmo no lugar dele? E se a tribo ou comunidade estiver espalhada por mais de um país, coisa que acontece o tempo todo com populações tradicionais?

Cabe a cada país estabelecer regras internas de acesso e repartição de benefícios da biodiversidade. Nesse aspecto, o Brasil, mais uma vez, chega à reunião com a lição de casa incompleta. O projeto de lei que deveria regulamentar o tema ainda nem foi encaminhado ao Congresso, por divergências entre ministérios. A COP 8 vai até o dia 31.

Painel quer trocar foco da vigilância contra gripe aviária
Um dia antes do início da COP-8, pesquisadores do mundo todo se reuniram em Curitiba para ressaltar o perigo que a epidemia de gripe aviária representa não só para a saúde humana mas também para a biodiversidade. Os cientistas também disseram que o medo de aves migratórias que a doença tem gerado no mundo tem pouco ou nenhum fundamento na realidade.

Um único slide da apresentação de Powerpoint de Juan Lubroth, da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), resumiu o consenso entre os especialistas. Debaixo de uma legenda que dizia "via de entrada de possível epidemia", havia uma animação mostrando um Boeing batendo suas asas como se fosse um pássaro, provocando risos nos participantes.

Para os pesquisadores, porém, a mensagem é bem séria: as principais culpadas pelo avanço do vírus da gripe aviária, o H5N1, são as atividades humanas, em especial as práticas pouco cuidadosas da produção de frango no mundo e o comércio ilegal ou pouco regulamentado de animais silvestres. Colocar a culpa nas aves migratórias é querer arrumar alguém para pagar o pato.

"Não sei por que esse medo das aves migratórias foi tão propagado. Talvez porque seja mais emocionante do que simplesmente dizer às pessoas "o problema são os frangos, seu tonto!”, afirmou à Folha William Karesh, diretor do programa veterinário de campo da WCS (Sociedade para a Conservação da Vida Selvagem, na sigla inglesa).

Origem doméstica
Karesh, que conduziu no ano passado estudos na Mongólia sobre a prevalência do H5N1 entre gansos selvagens, diz que essa versão do vírus provavelmente se originou entre aves domésticas e só então voltou para seus parentes selvagens. "São os métodos de produção industrial de frangos que permitiram que o vírus se tornasse altamente patogênico [capaz de causar versões mais graves da doença]. As atividades humanas e o nosso manejo dos frangos é que estão mantendo esse troço vivo", avalia Karesh.

Ao lado dos outros especialistas presentes, ele ressaltou que seria inútil ou até contraproducente ordenar a matança em massa de aves selvagens ou drenar os pântanos e áreas alagadas que lhes servem de abrigos.

"Teríamos o risco de uma dispersão ainda maior desses animais e, se estiverem contaminados, do vírus", concorda Bert Lenten, secretário-geral do Aewa (Acordo Eurasiano-Africano sobre Aves Aquáticas).

Aliás, a julgar por um estudo da bióloga britânica Diana Bell, da Universidade de East Anglia, aves e outros membros da fauna selvagem vão precisar de tanta proteção quanto os seres humanos conforme a epidemia progredir.

Espalhamento
Bell apresentou novos dados sobre a morte misteriosa de civetas, pequenos mamíferos carnívoros, num parque nacional do Vietnã. Os bichos foram infectados pelo H5N1, engrossando a lista de espécies de mamífero que podem morrer por causa do vírus.

No caso das aves, a situação ainda é mais alarmante: "Cerca de 45% das ordens [grandes grupos de espécies] de aves têm casos registrados de morte pela doença", diz ela. O H5N1, por isso, representa um risco para 54 espécies ameaçadas de ave, afirma.

Para Bell, é preciso intensificar a vigilância e os estudos sobre as espécies selvagens, tanto para protegê-las como para entender como sua contaminação pode acabar afetando humanos numa escala realmente perigosa.
(O Estado de S. Paulo, FSP 20/03/06)

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