Para representante do MMA, "sociedade consome biodiversidade de forma insustentável"
2006-03-21
Desafio de reunião da ONU sobre biodiversidade é levar tema ao dia-a-dia dos cidadãos, avalia Bráulio Dias, do Mininstério do Meio Ambiente.
Um dos desafios da COP 8 (Oitava Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica), que começa na segunda-feira, em Curitiba, é fazer com que o tema da biodiversidade seja levado ao dia-a-dia dos cidadãos. “Eles vêem a biodiversidade nos rios, nas aves, na Amazônia, mas não enxergam a sua relação pessoal com o tema”, comenta o gerente de Conservação da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Bráulio Dias. Isso é tanto mais importante porque, segundo ele, “é a sociedade que consome biodiversidade de forma insustentável, que estimula uma produção insustentável”.
Dias faz parte do Ministério que organiza a COP 8. Até 31 de março, são esperadas mais de 5 mil pessoas, vindas de 187 países, dentre delegações oficiais, organizações não-governamentais, empresas, agências internacionais, entidades acadêmicas e comunidades. É o maior evento ambiental no Brasil desde a Rio 92.
O gerente de Conservação da Biodiversidade avalia que, tanto no Brasil quanto no mundo, a Convenção teve avanços significativos desde sua criação, em 1992. No entanto, ainda há muito a ser feito. “É preciso reconhecer que continuamos a perder biodiversidade. Fizemos avanços importantes, mas não suficientes”, pondera.
Ele adianta que, durante a COP 8, o Ministério do Meio Ambiente pretende divulgar um plano nacional de ação para a implementação no Brasil de uma série de metas para a criação de áreas florestais protegidas. “É um avanço importante”, afirma. Outros documentos também deverão ser apresentados, como os resultados preliminares de um diagnóstico sobre o impacto de espécies invasoras no Brasil, encomendado pelo governo federal.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida à PrimaPagina.
A Convenção sobre Diversidade Biológica faz, em 2006, 14 anos. Até agora, o único de seus princípios que parece estar bem implementado é o da criação de áreas florestais protegidas. Os demais quesitos, principalmente o da repartição dos lucros obtidos com a biodiversidade, ainda estão sob negociação. Como é sr. avalia essa implementação até agora?
Bráulio Dias — Bom, eu acredito que houve avanços. Agora, estamos falando da implementação da Convenção no Brasil ou no mundo?
Em ambos.
Dias — Ok. Tivemos avanços tanto no Brasil quanto no mundo. Em geral, a Convenção negociou um protocolo, que está em vigor, sobre biossegurança [o Protocolo de Cartagena]. Isso é muito importante. Internamente, o Brasil estabeleceu uma legislação de biossegurança e criou um órgão colegiado sobre biossegurança. Isso continua sendo um assunto muito controverso, mas estamos trabalhando, estamos treinando gente, discutindo o assunto. Trabalhando para implementar essas questões sobre biossegurança, que não são fáceis.
E além do Protocolo de Biossegurança?
Dias — Bom, no tocante às áreas protegidas, a Convenção aprovou um programa de trabalho na COP 7. O Brasil criou a lei do SNUC, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Nos últimos anos, avançamos muito na expansão das áreas protegidas, criando novas unidades. E o Ministério do Meio Ambiente fez um pacto com a sociedade civil para a implementação desse programa de trabalho da Convenção — o Plano Nacional de Ação para a Implementação no Brasil do Programa de Trabalho de Áreas Protegidas da Convenção —, que está indo muito bem e deverá ser lançado durante a COP 8. É um avanço importante.
Outra área em que avançamos é a de espécies ameaçadas. Nós atualizamos a lista da fauna ameaçada de extinção no Brasil — fazia mais de uma década que não havia essa atualização. Outro setor que avançou muito, não só no Brasil, mas internacionalmente, foi a questão das espécies invasoras [que não são nativas de uma região, mas que se estabelecem lá e modificam as características do ecossistema]. Contratamos cinco estudos para fazer um primeiro diagnóstico nacional sobre espécies invasoras em ecossistemas terrestres, marinhos e de água doce, e suas interfaces com o setor agropecuário e de saúde. Ele será publicado neste ano, e aqui na COP mostraremos resultados iniciais.
Uma outra coisa bastante importante foi a identificação de áreas prioritárias para a biodiversidade no Brasil. Foi um processo longo de consulta, trabalhamos bioma por bioma. Ouvimos acadêmicos, o setor ambientalista e governos locais. Tudo isso foi consolidado no ano passado com um decreto presidencial e uma portaria da ministra Marina [Silva] que estabeleceu 900 áreas prioritárias para se trabalhar a biodiversidade. Não são áreas protegidas, são locais onde as políticas públicas devem se concentrar, para priorizar pesquisa, ações de conservação, ações de uso sustentável, de recuperação.
Por fim, nós aprovamos agora um projeto para promover a universalidade das questões de biodiversidade em diferentes setores do governo e do setor privado. É um projeto novo, que se inicia no segundo semestre deste ano. Envolve os Ministérios da Ciência e Tecnologia, da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário, da Saúde. São parcerias importantes para se tratar a biodiversidade de forma transversal, que é um dos mais importantes e mais difíceis objetivos da Convenção sobre Biodiversidade.
A sua avaliação, portanto, é positiva?
Dias — Veja bem, a avaliação é que estamos fazendo muitas coisas, avançamos bastante. Agora, ao mesmo tempo é preciso reconhecer que continuamos a perder biodiversidade. Ela está desaparecendo. Por conta de desmatamento, de queimadas, de poluição. Fizemos avanços importantes, mas não suficientes. E essa é uma realidade do mundo todo.
A Convenção sobre Diversidade Biológica não é tão conhecida do público em geral como, por exemplo, a Convenção sobre Mudanças Climáticas, que tem o Protocolo de Quioto, ou a Convenção para a Proteção da Camada de Ozônio, com o Protocolo de Montreal. O que falta a ela para ter o mesmo alcance?
Dias — A Convenção sobre Diversidade Biológica tem um tema muito abrangente. Esse é o maior desafio. A mudança climática é um fenômeno complexo, também, mas é mais focado. Há tantos gases que realmente contribuem para o efeito estufa, portanto, ela é uma convenção com uma implementação mais focada. A biodiversidade é toda a vida na terra. É metade do PIB brasileiro. Envolve agropecuária, pesca, floresta, ecoturismo. Então tem muitos mais aspectos e falta foco. Essa é a dificuldade.
Além disso, eu acredito que a maioria das pessoas, dos cidadãos, tem dificuldade de lidar, de se relacionar com o tema da biodiversidade. Eles vêem a biodiversidade nos rios, nas aves, na Amazônia, mas não enxergam a sua relação pessoal com o tema. Ou seja, o que o cidadão normal pode fazer quanto a isso no seu dia-a-dia. As pessoas não percebem que, enquanto consumidores, enquanto usuários, são tomadores de decisão sobre o que fazer com a terra, a floresta e os recursos hídricos. Nós todos fazemos parte dessa cadeia de causas e conseqüências. Não adianta achar que a responsabilidade é só do governo. É a sociedade que consome biodiversidade de forma insustentável. Que estimula uma produção insustentável. Quantos de nós, quando vamos comprar produtos de madeira, perguntamos qual é a origem daquela madeira?
Diversos aspectos da Convenção também estão sob jurisdição de outros órgãos internacionais. O comércio internacional de produtos da biodiversidade, por exemplo, também pode ser regulado pela OMC. Como resolver esse impasse?
Dias — Existem várias convenções no cenário internacional, e elas são independentes. O fato de um país aderir a uma instância não o exime de cumprir seus compromissos perante as outras das quais faz parte. Cada uma delas tem o seu foco. O comércio internacional não é o foco da Convenção sobre Diversidade Biológica, embora questões que ela aborda entrem nesse terreno. Há interfaces, por isso os países precisam assumir posições e ser coerentes com elas em todas as instâncias das quais participam.
Nesses órgãos e convenções internacionais relacionados ao meio ambiente, o Brasil sofre uma “crise de identidade”, pois ao mesmo tempo em que é uma nação de grande biodiversidade, é também um grande produtor agrícola. Esse impasse fez com que o governo brasileiro iniciasse a MOP 3 (Terceira Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que ocorreu também em Curitiba entre 13 e 17 de março), sem uma posição oficial fechada. Há risco de isso acontecer agora durante a COP 8? Há pontos em que a posição brasileira ainda é alvo de controvérsias internas?
Dias — Não. A agenda da COP 8, embora seja mais extensa, não tem tanta controvérsia quanto a do Protocolo de Cartagena. O ponto mais polêmico agora será a negociação de um regime internacional de acesso aos recursos genéticos da biodiversidade e de repartição de benefícios, mas quanto a isso há muita concordância nacional. É claro que atingir isso é difícil. Os interesses de uma comunidade indígena não coincidem com os interesses de um empresário. Os interesses de um empresário não coincidem com o de um pesquisador. É preciso lidar com essa multitude de interesses e conciliá-los.
O Brasil está conseguindo fazer isso?
Dias — Está. É difícil, existe uma curva de aprendizado pela qual nós ainda estamos passando, mas é a mesma coisa que acontece em todos os países. Esse é o grande desafio para todos.
O sr. estava falando há pouco sobre os interesses das comunidades. E a principal ferramenta da Convenção sobre Diversidade Biológica, a grande novidade que ela trouxe quando foi apresentada em 1992, é a criação de um sistema de repartição dos lucros obtidos com a biodiversidade entre os países possuidores de recursos e os países que utilizam esses recursos. Como garantir que essa divisão não seja algo feito apenas entre Estados, mas que atinja também as pequenas comunidades, que são, de fato, de onde sai a maior parte dos recursos naturais?
Dias — Isso é possível. Precisa ter regras internacionais, por isso estamos lutando pela negociação desse regime, mas cada país precisa ter também a sua legislação nacional. O Brasil já tem a sua legislação, que prevê que esse recurso chegue até as comunidades, mas é provisória, é uma medida provisória. Precisamos ainda que o Congresso Nacional se pronuncie e aprove uma lei sobre o assunto.
Então isso depende de cada país? A Convenção estabelece que essa compensação deve ir para o Estado de origem do recurso natural, e esse Estado deve ter meios para que isso chegue às comunidades.
Dias — A Convenção reconhece a soberania de cada país em relação aos próprios recursos. Cabe a cada país estabelecer suas regras internas. Obviamente que a Convenção oferece diretrizes gerais para orientar esse processo. Mas poucos países já fizeram essa legislação nacional, porque é um processo muito complexo. O Brasil fez. Nós temos, bem ou mal, uma legislação.
(PrimaPagina, 20/03/06)