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2006-03-20
Cinco argentinos e dois uruguaios estão no centro do conflito que ameaça acabar com o Mercosul, mas não parecem preocupados com o motivo: as duas fábricas de celulose que se elevam sobre o Rio Uruguai, no país de mesmo nome.

Um quase dorme. Outro quica uma bola de basquete e a atira em um cesto imaginário (acerta todas, pela comemoração). Quatro se revezam no computador que permite joguinhos na Internet. E o último se surpreende com a equipe de Zero Hora, que chega ao posto de fronteira e pede para atravessar do Uruguai para a Argentina.

- Deixo vocês passarem se me trouxerem um galão de gasolina. Dou o dinheiro - diz o fiscal uruguaio, a fim de obter alguma vantagem (o combustível sai pela metade do preço do lado de lá da ponte) em troca da permissão que concede aos três brasileiros.

Em condições normais, a alfândega integrada ao lado do rio é um raro local movimentado entre duas cidades aparentemente estagnadas no tempo - na uruguaia Fray Bentos e na argentina Gualeguaychú, crianças ainda vão à escola com guarda-pós brancos e grossos laços azuis atados no pescoço.

Bloqueio de pontes já dura mais de 40 dias
Mas as condições não são normais há mais de 40 dias. Argentinos temerosos de que as duas fábricas de celulose contaminem o rio que dividem com os uruguaios bloquearam o acesso à ponte internacional General San Martín, privando os fiscais da aduana do trabalho de fiscalizar. Foram imitados por moradores de Colón, vizinhos da uruguaia Paysandú, e agora só se atravessa de um país para o outro por uma ponte entre Concordia e Salto, mais ao Norte, ou de barco, pelo Rio da Prata.

Os ambientalistas parecem determinados a manter o protesto, mas já discutem a possibilidade de abrandá-lo de alguma forma, talvez liberando parcialmente o tráfego. Sua preocupação com a possível poluição do rio quase dobrou o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez. Ele chegou a concordar em pedir à finlandesa Botnia e à espanhola Ence que suspendessem as obras por 90 dias, para a realização de um estudo de impacto ambiental. Foi tão criticado e pressionado pelos que defendem o maior investimento externo já feito no país (US$ 1,8 bilhão), que voltou atrás. O Brasil, enquanto isso, observa o problema sem dar palpite.

Na manhã de sábado (18/03), sob chuva, os manifestantes ainda se revezavam em rodas de mate sob barracas improvisadas no asfalto, mandando voltar os veículos que viessem de um lado ou de outro.

A equipe de Zero Hora pôde seguir até Gualeguaychú, onde constatou a adesão da população à causa ambiental, em adesivos pretos com a frase em branco "No a las papeleras" estampando os vidros dos automóveis. Voltou ao Uruguai (com um galão de gasolina) para comprovar que em Fray Bentos é maciço o apoio às fábricas e que a integração do Mercosul não passa de um aglomerado de boas intenções que se desfaz sob a primeira tempestade. Como papel.

Argentinos contra argentinos
- Não estaria aqui se a contaminação respeitasse as fronteiras. Mas não se contamina a metade do ar nem a metade do rio - diz a argentina Silvia Echevarría, 44 anos, integrante do bloqueio entre Colón, na Argentina, e Paysandú, no Uruguai.

Quase nenhum veículo pode cruzar por ali, só os que levam passageiros com necessidades médicas, e às vezes nem esses. O casal argentino Walter e Paola ia para Salto, no Uruguai, com os três filhos pequenos no banco de trás. Dois haviam sido operados, dizia Paola (que não deu o sobrenome) aos manifestantes. Não adiantou.

- Se querem ir a Salto, vão pela Argentina mesmo e cruzem a fronteira lá por cima. É até mais perto - respondeu um ambientalista.

- Não é. São 50 quilômetros a mais, já fiz as contas. Com que direito vocês me impedem de passar? - protestou Paola, observada pela inerte polícia fronteiriça argentina.

- Vocês não entendem. Não podemos deixar ninguém passar. Essas indústrias de celulose vão nos matar.

- Então por que vocês não protestam contra as indústrias de celulose argentinas?

Faz sentido. Há mais de 10 fábricas de celulose na Argentina, muitas com um extenso histórico de poluição. A de Puerto Piray, por exemplo, despeja seus efluentes sem tratamento no Rio Paraná, na fronteira com o Paraguai, e utiliza cloro elementar (altamente poluidor) para branquear a celulose. Ninguém protesta por lá. Ou melhor, nenhum argentino, porque o governo paraguaio, com a atenção despertada pela briga entre os hermanos, já começa também a exigir estudos de impacto ambiental. É o sinal de que o conflito pode ganhar o Mercosul (ou pô-lo de vez a perder).

As fábricas uruguaias terão tratamento de efluentes e substituirão o cloro elementar por uma tecnologia mais limpa. Mas os argentinos têm um ponto de vista diferente.

Finlandeses no meio da polêmica
- Juntas, as fábricas de celulose argentinas não produzem nem metade do que uma só dessas duas uruguaias vai produzir. É um monstro - brada o advogado Oscar Vargas, 53 anos, no bloqueio de Gualeguaychú.

De fato, a finlandesa Botnia, que já ergueu 115 metros dos 120 de sua chaminé à beira do rio, produzirá mais de 1 milhão de toneladas de celulose por ano. Será a maior do mundo quando estiver pronta, no segundo semestre de 2007. E o impacto é inevitável. Pode até ser reduzido a níveis imperceptíveis, como a empresa assegura que será, mas vez que outra aquela chaminé que se enxerga do outro lado do rio lançará no ar uma fumaça com cheiro muito ruim de enxofre.

- E não vão pedir documentos a esse cheiro ruim para ele entrar na Argentina - ironiza Vargas.

- Será uma vez por ano somente, e em um raio máximo de 10 quilômetros. E é só o cheiro. A fumaça não faz mal à saúde - responde o engenheiro e porta-voz da Botnia, Bruno Vuan.

De tanto rebater as acusações, ele já tem respostas prontas e rápidas para tudo. A quem diz que a Botnia consumirá em um dia a água que os 23 mil habitantes de Fray Bentos consomem em nove, argumenta que devolverá ao Rio Uruguai 80% dessa água, devidamente tratada. A quem protesta contra os 120 mil hectares de eucalipto plantados em solo uruguaio, diz que ela é obrigada a preservar um hectare de mata nativa a cada dois cultivados (como a outra empresa, Ence, que apenas inicia a terraplenagem). E aos que diminuem a importância do investimento finlandês com o argumento de que serão gerados meros 300 postos de trabalho, garante que serão 8 mil empregos indiretos e US$ 200 milhões anuais injetados na economia uruguaia.

E o mais importante, diz: uruguaios e argentinos poderão continuar comendo os peixes do rio e se banhando nas águas turvas e mornas do Uruguai.

Uruguaios contra uruguaios - É claro que estou preocupada com a poluição, mas eles (as indústrias) estão tomando todas as precauções - diz Paula Leguiza, 24 anos, enquanto se banha nas águas turvas e mornas do Rio Uruguai, no balneário uruguaio de Las Cañas, na tarde de uma terça-feira.

Como a maioria dos uruguaios, essa jovem estudante de Psicologia está feliz com o investimento externo nessa região que nunca teve indústria nenhuma e agora vai ter duas, e uma delas a maior do mundo em seu setor. Tem certeza de que seguirá armando sua cadeira de praia alguns metros rio adentro sem colocar sua saúde em risco e atribui o "corte de las rutas", como os castelhanos chamam o bloqueio das estradas, à prepotência argentina.

- Querem se meter nos nossos assuntos porque acham que o Uruguai é uma província deles - afirma Santiago Viotti, um aposentado que passa o dia conversando com outros aposentados na praça central de Fray Bentos.

Mas, como acontece com os argentinos, nem todos os uruguaios transformaram o impasse em um assunto nacionalista. E há aqueles que se uniram aos argentinos em sua cruzada ambiental.

- Essas indústrias querem transformar nosso país em uma grande floresta de eucaliptos. Chamam isso de reflorestamento, mas se trata na verdade de uma monocultura, prejudicial ao ambiente - diz o jovem Daniel Mosco, de apenas 16 anos, com uma indignação militante e uma eloqüência que devem fazer dele um político, em breve.

Ele continua:

- E tem mais: essas indústrias dizem que vão branquear a celulose com uma tecnologia que não usa o cloro elementar, e isso já bastaria para assegurar a preservação ambiental. Pois não basta, porque a tecnologia aconselhada pelo Greenpeace é a que não usa cloro nenhum no branqueamento. Isso já existe, mas elas não vão usá-la.

Gaúchos no meio da polêmica
- As fábricas do Brasil, que é o maior produtor de celulose de eucalipto do mundo, utilizam a mesma tecnologia que vamos usar aqui. Ela está de acordo com exigências ambientais internacionais - diz o engenheiro da Botnia Bruno Vuan, como se fosse uma indireta ao jornalista brasileiro, durante visita aos 30% das instalações que já estão prontos.

Realmente, as brasileiras Aracruz e Votorantim Celulose e Papel (VCP) usam a tecnologia ECF (da sigla em inglês Livre de Cloro Elementar) em suas unidades no país. Em Guaíba, por exemplo, a Aracruz produz 430 mil toneladas anuais de celulose de eucalipto usando exatamente a mesma tecnologia.

Essa, por enquanto, é a única fábrica de celulose no Estado. Outras três, porém, já estão a caminho. Uma da própria Aracruz (possivelmente em Guaíba também), outra da VCP, no sul do Estado, e a terceira da sueco-finlandesa Stora Enso, que já comprou terras para plantar eucaliptos, mas ainda não confirma a instalação de uma fábrica em São Borja.

Em breve, os gaúchos podem se ver no meio de polêmica semelhante, já que São Borja é separada da Argentina pelas mesmas águas que causam tantas desavenças rio abaixo.

Por enquanto, o único gaúcho pego no meio da controvérsia era um motociclista ("e não motoqueiro, viu?") que pediu para não ser identificado ("Vai que estou fugindo da mulher") ao ser impedido de passar do Uruguai para a Argentina pelos manifestantes. Ele queria ir a Buenos Aires, mas teve de voltar ao Uruguai e seguir até a barca no Rio da Prata.

- Vou pegar a estrada. Essa guerra não é minha - conformou-se.
(ZH, 19/03/06)

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