Brasil é estrela em encontro sobre água no México
2006-03-17
Começou na quinta-feira (16/03), na Cidade do México, o 4º Fórum Mundial da
Água. O Brasil é uma das estrelas do encontro, graças à sua política de gestão
dos recursos hídricos por bacia hidrográfica. Ela ainda está engatinhando? Pois
é, imagine como vão as coisas no resto do mundo...
Embora nos últimos anos a importância da água e de sua preservação tenha
assumido ares de unanimidade nos discursos políticos, na prática os indicadores
sociais e ambientais não demonstram grandes avanços.
Um quadro dramático da situação foi revelado pela Avaliação Global das Águas
Internacionais (GIWA, na sigla em inglês), produzida por 1.500 cientistas e
publicada em fevereiro pelo PNUMA (Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas),
em colaboração com o GEF (Global Environment Facility), o fundo dos países
ricos que financia projetos ambientais nas principais áreas de preocupação da
comunidade internacional (biodiversidade, clima, florestas e água, entre outros).
O relatório informa que a poluição química tem causado impactos de moderados a
severos em metade das regiões com bacias hidrográficas transfronteiriças. A
agricultura responde por quase 70% de toda a água captada de rios, represas e
lagos. A superexploração está levando muitas das regiões a sofrer estiagens.
Outros fatores de degradação dos recursos hídricos são o desmatamento, a
drenagem de terras úmidas para expandir as áreas agrícolas e práticas
inapropriadas de uso do solo. O trabalho também investigou o estado das águas
marítimas e concluiu que a pesca excessiva tornou-se um problema generalizado.
Ela aparece como um aspecto de degradação hídrica presente em mais regiões do
que qualquer outra questão estudada pelo GIWA.
Os efeitos de todos esses maus-tratos aos recursos hídricos se reflete na saúde
da população. As Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDG, na sigla em inglês),
traçadas pela ONU em 1990, estão longe de ser cumpridas. Na época, 49% da
população mundial era atendida pela rede de saneamento. A meta era elevar esse
percentual para 75% até 2015. No entanto, em 2002 a cobertura tinha subido para
apenas 58%. O resultado explica o pessimismo de David Redhouse, coordenador de
políticas da Water Aid, ong sediada em Londres. “Se nenhum avanço for obtido até
2015, teremos perdido esta meta por meio bilhão de pessoas”, afirma.
Os números mostram que aumentou o financiamento internacional de projetos
relacionados à água e saneamento básico. Mas Redhouse lembra que é preciso
descontar o fator Iraque. Entre 2002 e 2004, o país conflagrado pela guerra
atraiu 86% dos novos investimentos britânicos, por exemplo. “Além disso, a verba
para projetos de água e saneamento não cresce tão rápido quanto os outros tipos
de ajuda internacional aos países pobres”, diz o especialista. E cita a União
Européia, que reduziu sua ajuda para água e saneamento de 5,4% em 2000, para
4,1% em 2004.
Ele parte para o Fórum com essa desconfiança prévia das boas intenções desse
tipo de encontro. “Tem havido muitas declarações internacionais. O que queremos
ver agora é cada país — e seus parceiros em projetos de desenvolvimento —
tomando a ação necessária”, diz.
Novidades no Brasil
No Brasil, as estatísticas também não são nada animadoras. Perto de um quarto
da população não contava com acesso à rede de abastecimento de água em 2000, de
acordo com o Atlas de Saneamento do IBGE de 2004. Muito mais trágico é o quadro
do saneamento. Apenas 60% da população brasileira tinha acesso à rede coletora
de esgoto em 2000. E do esgoto coletado, somente 20% era tratado.
“O problema da gestão dos recursos hídricos é o saneamento, que ainda não tem um
marco legal. O nível de investimento que se faz no setor é mínimo. O grande
desafio é termos um investimento público no mínimo dez vezes maior do que o
atual”, diz Benedito Braga, diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e
vice-presidente do Conselho Mundial da Água.
Mas Braga ressalta as conquistas do país na área. “Tivemos um grande avanço na
organização de um sistema de recursos hídricos descentralizado e com a
participação popular. Montamos um gerenciamento que envolve governo federal,
estaduais, a sociedade civil e os usuários de água. Poucos países tiveram
avanços nessa temática nos últimos três anos”, diz ele. Basicamente, Brasil e
África do Sul.
No mundo desenvolvido, a exceção ficou por conta da União Européia, que adotou a
chamada Diretiva 4, uma tentativa de organizar a gestão de recursos hídricos
por bacia hidrográfica. “Esse modelo foi muito bem-sucedido na França, que em
30 anos conseguiu recuperar a qualidade da água dos seus rios utilizando
instrumentos econômicos, especificamente a cobrança pelo uso da água”, explica
Braga. Foi o modelo francês que inspirou Brasil e África do Sul na implementação
de novas regras para o setor.
Processo lento
A Política Nacional de Recursos Hídricos, instaurada pela Lei das Águas (lei
9.433), de 1997, possibilitou a criação dos comitês de bacia e a cobrança pelo
uso da água. O primeiro comitê a cobrar pelo uso da água foi o Ceivap, do
Paraíba do Sul, em março de 2003. Em janeiro passado, o comitê do Piracicaba,
em São Paulo, começou a distribuir seus primeiros boletos de cobrança.
“A implantação de mecanismos de cobrança pelo uso da água está extremamente
lenta”, reclama o professor José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de
Ecologia (IIE) e ex-presidente do CNPq. Benedito Braga concorda, mas não vê
nisso um problema. “É um caminho mais demorado, sem dúvida alguma, mas tem
vantagens, porque quando você envolve o usuário e a sociedade civil, a chance de
que a decisão vá ser cumprida é muito maior”, acredita Braga, citando a
adimplência de 98% da bacia do Piracicaba. Os próximos comitês a implantar a
cobrança serão, segundo ele, o do Rio Doce (MG e ES) e o do rio São Francisco.
O mecanismo é bem-vindo, mas não é o bastante. O dinheiro é pouco e a degradação
ambiental, galopante. “Não há uma política para o aproveitamento sustentável e
seguro tanto das águas das chuvas como das subterrâneas. A mesma água usada para
matar a sede é a que jorra nos vasos sanitários e chuveiros. O fenômeno das
mudanças climáticas tende a agravar ainda mais a situação, à medida que os
cursos hídricos e represas passam a ser castigados mais freqüentemente por
estiagens”, alerta Tundisi. Ele espera que o Brasil avance em várias frentes. “O
aproveitamento da água da chuva deve ser estimulado. O re-uso da água em
indústrias, condomínios e pequenos municípios deve ser incentivado. O re-uso da
água de esgoto tratada deve ser incentivado, sob condições limitadas. É
recomendado, por exemplo, para irrigação de certas áreas, resfriamento térmico,
agricultura e hidroponia”, explica. Ele também defende a diminuição do consumo,
que deve ser incentivada em propostas diferentes, de acordo com a região.
Outro estímulo à preservação seria instituir créditos para os “produtores de
água”, ou seja, os moradores ou fazendeiros que vivem ou trabalham nas áreas de
nascentes de rios. De acordo com a idéia, para cada metro cúbico de água de boa
qualidade que “produzissem”, receberiam um determinado incentivo, como a redução
de impostos ou o pagamento de royalties.
Transposição e Amazônia>br>
O maior projeto hídrico do país causa polêmica entre especialistas. Transpor o
rio São Francisco, em si, não é o problema. Tundisi acredita até que o projeto
poderia resolver questões de usos múltiplos da água na região e diminuir a
escassez. Isso, desde que houvesse, simultaneamente, “um processo rigoroso de
saneamento básico, com tratamento de esgotos de pequenos municípios, avaliação
de fontes não pontuais e seu controle”. E mais: “O projeto deve ser
complementado com várias outras medidas locais e regionais que podem ter sucesso
em conjunto com a transposição: barragens subterrâneas, controle da evaporação
dos açudes, reflorestamento e recuperação de mananciais”. Nada que tenha
aparecido, até agora, nos planos do governo.
O diretor da ANA se esquiva do assunto. “Não cabe à ANA discutir as
oportunidades de investimento do governo. Não tem competência legal para tanto
e portanto a análise que fizemos se restringiu a questões de disponibilidade
hídrica”, diz Benedito Braga. No entanto, em seu discurso aparece outra questão
preocupante: os investimentos previstos para a Amazônia. “Queremos planejar o
uso múltiplo das águas da Amazônia para o desenvolvimento do Brasil. A Amazônia
tem 50% do nosso potencial hidrelétrico. E existe tecnologia para trazer a
energia. Navegação também é importante na região”, afirma.
No México, menos temas
A atual edição do Fórum Mundial das Águas, que vai até o dia 22, promete focar
melhor suas discussões, diferentemente do que ocorreu em Kyoto, onde houve mais
de 350 sessões simultâneas. “Quando você tem um conjunto de ações tão amplo, no
fim você não tem ação nenhuma”, reconhece Braga, que coordenou parte dos
trabalhos em Kyoto. No México serão apenas cinco grandes temas: água para o
desenvolvimento social, financiamento, gestão integrada dos recursos hídricos,
alimentos e meio ambiente, e segurança hídrica (proteção contra inundações e
secas, por exemplo).
A expectativa é de que, desta vez, o mundo dê mostras mais claras de que
pretende cuidar melhor de suas águas. “Precisamos que os políticos, do Norte e
do Sul, mostrem comprometimento e liderança. Que produzam planos nacionais para
atingir as metas e garantam que todos (inclusive os financiadores) sigam esses
planos. Que destinem o dinheiro necessário especificamente para saneamento. E
que tornem públicas as informações sobre seus progressos, para as pessoas
saberem o que está acontecendo e pressionarem, se necessário, por uma
performance melhor”, diz David Redhouse, da Water Aid.
Afinal, ninguém tem dúvidas da importância da água para o futuro da humanidade.
Embora haja controvérsia nas previsões. “Não tenho dúvidas de que a água deverá
ser um dos recursos naturais mais importantes no século XXI e pelos próximos
séculos. Água será o insumo mais disputado do mundo para manter as economias em
funcionamento e para o desenvolvimento social do país”, acredita Tundisi. “Isso
é uma lenda. Existe toda uma história do conflito Israel-Palestina em torno da
água. É um conflito ideológico, em que a água desempenha um papel. A guerra é
tão cara que sai muito mais barato dessalinizar. O pessoal fala isso para
valorizar o setor, mas temos que ser honestos intelectualmente e não entrar
nessa conversa”, discorda Braga.
Seja como for, o Brasil é peça-chave quando se pensa em recursos hídricos. E
tem uma longa lição de casa a fazer para tratá-los como merecem, e como os
merecemos.
(José Alberto Gonçalves, O Eco, 15/03/06)
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