Artigo: O Horto Florestal e os Terroristas
2006-03-16
Por Cristiano Kern Hickel *
O Horto Florestal Barba Negra, em Barra do Ribeiro, Rio
Grande do Sul, amanheceu sendo furiosamente destruído neste
8 de março. Terroristas da mais perigosa estirpe, ao que
parece. Daqueles sem escrúpulos. Gente que ao longo das
últimas décadas vem aniquilando o modo de vida de
comunidades locais pelo Brasil, quilombolas, Tupinikins,
Pataxós, Guaranis, pescadores e campesinas, sem o menor
remorso. Invadem terras, causando êxodo rural e a dispersão
de muitas comunidades. Rios degradados. O uso intensivo de
agrotóxicos contamina a água, o solo e as pessoas. Mentem
deslavadamente. Definitivamente, são perigosos.
Como se fosse pouco, ainda recebem gordos incentivos do
Governo, desde a época da ditadura militar (quando foram
favorecidos para ocupação de terras indígenas quilombolas).
Em dezembro de 2005, foi aprovado empréstimo de R$
297.209.000,00 pelo BNDES à Aracruz que, entre outros,
servirá para modernização da sua fábrica de celulose no Rio
Grande do Sul. O prazo de carência desses créditos do BNDES
é de 21 meses, só a partir daí começam os pagamentos do
empréstimo: os prazos das amortizações chegam a 84 meses.
Tudo isso a juros de até incríveis 2% ao ano!
O BNDES também emprestou US$ 318 milhões para a construção
da fábrica da Veracel (empresa da Aracruz Celulose e Stora
Enso, sueco-filandesa - são concorrentes mas ao mesmo tempo
sócias, alguém entende?), na Bahia.
Além do Governo Federal, o Governo do Rio Grande do Sul já
financiou mais de R$ 29 milhões, desde 2004, no agronegócio
"florestal". Com tantos aliados assim, fica fácil atingir o
lucro líquido de R$ 1,2 bilhão (como em 2005).
Vejamos, agora, o contraste com outras notícias dessa
semana: O endividamento e a descapitalização dos pequenos
produtores rurais provocarão, pelo menos, oito atos
públicos até o final do mês (março) no Rio Grande do Sul.
Um levantamento feito pela Federação dos Trabalhadores na
Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag) aponta que mais de
100 mil agricultores não terão condições de pagar os
financiamentos, o equivalente a 25% do segmento familiar no
Estado. Atualmente, as taxas de juros praticadas no
Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf) variam
até 8,75% ao ano.
Ainda falando em números, em 2001 a agricultura familiar
recebeu de investimentos públicos R$ 600 milhões para todo
país, enquanto a Aracruz recebeu das mãos do BNDES R$ 666
milhões para sua terceira fábrica.
Talvez não esteja explícito a importância da agricultura
familiar, propositalmente, afinal, não é do interesse do
modelo de desenvolvimento excludente que está por detrás
desta atividade.
Mesmo assim, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel
Rossetto, falou que a consciência democrática dos
brasileiros foi ferida, e que "...episódios deste tipo em
nada contribuem para um debate sério e conseqüente a
respeito do modelo de desenvolvimento rural que queremos
para o nosso país.".
O que é democracia, afinal? Esses movimentos sociais sempre
estiveram batendo na porta do Governo para conversar,
sempre tentaram buscar acordos com as empresas. O que será
que houve? Sejam ingênuos, mas não sejam marionetes.
O Governo do Estado do Rio Grande do Sul foi radical:
suspendeu toda e qualquer relação institucional com a Via
Campesina e com as instituições a ela vinculadas (como se
tivesse tido alguma decente).
A Aracruz Celulose, e todas outras do setor, vêm sofrendo
forte pressão popular, pelas razões descritas aqui e muitas
outras, há muito tempo. Por isso estava precisando de um
"descuido", como esse da Via Campesina, para desmantelar
seus oponentes frente à opinião pública. Apoiada no
sensacionalismo "a la reality show" da mídia, mais diversas
notas pagas de capa e meia página de jornal, ela coseguiu.
Pobre vítima.
Toda essa briga é pela produção de papel para exportação (e
não esqueçam que não é apenas a Aracruz nesse jogo),
principalmente para os EUA, que consomem 9 vezes mais papel
que os brasileiros. Então, perguntamos, porque não produzem
direto lá, mesmo? Será pela mão-de-obra barata? Isenção de
impostos e incentivos do Governo? Os passivos ambientais
que ficarão para as próximas gerações? Ou será que é porque
aqui o povo não se importa? Até pagamos por isso, não?
Este fato - que de isolado não tem nada - trouxe à tona,
também, uma questão interessante: os políticos desse país
nunca estiveram tão afinados, em esfera municipal, estadual
e federal, todos empenhados em construir um país para
inglês ver.
Será que chegaram à conclusão de que a solução é comer
papel?
* Cristiano Kern Hickel é membro do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais -
www.inga.org.br