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2006-03-15
Nas próximas semanas, os brasileiros serão inundados por uma milionária campanha publicitária sobre a conquista da auto-suficiência nacional de petróleo. Com o mote O Brasil cresce pelas mãos da Petrobras , R$ 37 milhões em anúncios vão homenagear a façanha da empresa de garantir, a partir do fim de abril, uma produção de óleo equivalente ao consumo nacional. É previsível que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva use o feito como um dos símbolos de sua gestão. E que a oposição retruque afirmando que a auto-suficiência é resultado do esforço de diferentes governos, não apenas do atual. Mas a campanha publicitária e, principalmente, a discussão política podem esconder o ponto crucial dessa conquista. A Petrobras só alcançou tal recorde porque realizou um corajoso e continuado investimento tecnológico: no espaço de três décadas, capacitou-se para extrair petróleo em alto-mar.

Por um destino geológico, 85% das reservas de petróleo brasileiro estão no oceano - e não em terra firme, como nos países do Oriente Médio e na Venezuela, os maiores exportadores mundiais. Como se não bastasse estar no mar, a maior parte das reservas brasileiras se encontra bem abaixo dos 400 metros de profundidade, situação em que não é possível utilizar mergulhadores. Nos anos 70, quando se descobriu o potencial da Bacia de Campos, no litoral do Estado do Rio de Janeiro, não havia exploração em águas profundas em nenhum lugar do mundo e a tecnologia brasileira era incipiente. Críticos como o ex-ministro Roberto Campos atacavam o investimento no mar como irracionalismo da Petrossauro , o apelido que inventou para a Petrobras. "Foi um risco enorme. Antes da crise do petróleo, o preço do barril no mercado internacional era de US$ 2 e, para produzir em alto-mar, gastaríamos US$ 10, sem contar impostos e royalties", diz o gerente-executivo de exploração e produção da Petrobras, Francisco Nepomuceno. "Só deu certo porque pensamos em longo prazo".

"Quando começamos, não havia estrutura naval para operação em alto-mar. Só o peso dos equipamentos para tirar o petróleo faria a plataforma afundar", diz Kazuioshi Minami, coordenador de projetos em águas profundas da Petrobras. "Hoje, já há plataformas em Campos que arrancam óleo a 1.886 metros, e a Petrobras espera dominar até 2007 a tecnologia de extração a 3.000 metros", diz Carlos Tadeu Fraga, gerente-executivo do Centro de Pesquisas da empresa. O que leva a Petrobras a um novo problema: a partir de 2.000 metros de profundidade predomina um tipo de petróleo pesado e viscoso. Sob a temperatura de 4 graus Celsius, comum no fundo do mar, esse óleo entope a tubulação. A estatal já está testando o uso de tubos de aço, mais resistentes, e plataformas que se movimentem menos ao sabor das ondas.

A Petrobras só venceu o desafio da auto-suficiência por um misto de circunstâncias favoráveis e enorme criatividade. A decisão de ir ao mar ganhou impulso em 1974, dois anos depois da primeira megacrise internacional provocada pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e quando a Presidência da República era ocupada por um ex-presidente da estatal, Ernesto Geisel. Mas a vontade do general não bastava. Para conseguir atingir a profundidade necessária, a Petrobras foi obrigada a desenvolver robôs com garras, ferramentas e câmeras de TV para controlar o fluxo do óleo dos poços até a plataforma. Nem no Mar do Norte (entre o Reino Unido e os países nórdicos), na época o principal pólo de produção marítima, era necessário ir tão fundo. Além disso, os técnicos brasileiros tiveram de desenvolver dutos submarinos de petróleo que tivessem, ao mesmo tempo, flexibilidade para se conectar com uma plataforma que balançasse com as ondas e resistência para suportar a pressão interna do poço e a pressão externa da água. A solução nesse caso foi usar resina sintética preenchida com armaduras metálicas.

Pode ser um pouco difícil para o cidadão comum, que vê o preço da gasolina e o do álcool subir nos postos de abastecimento, comemorar essa vitória da Petrobras com o mesmo afã do governo. Mas, se não fosse por ela, o país estaria sofrendo com muito mais severidade o exorbitante encarecimento do petróleo no mercado mundial. Em apenas três anos, o preço do barril dobrou, chegando a US$ 60.

Essa conjuntura favoreceu muito a Petrobras. Os números de seu último balanço contábil são de dar inveja a qualquer gigante industrial: faturamento de R$ 136,6 bilhões, um crescimento de 23% sobre 2004, produção de 1,68 milhão de barris por dia, 13% a mais que no ano anterior, e lucro líquido de R$ 23,7 bilhões, o maior da história entre todas as empresas abertas da América Latina. Foi com satisfação incontida que o presidente da empresa, José Sérgio Gabrielli, anunciou os dados. Professor de pós-graduação de Economia da Universidade Federal da Bahia, petista de carteirinha, Gabrielli chegou a diretor da Petrobras no governo Lula sob desconfiança do mercado. Historicamente a estatal sempre sofreu pressões do governo, de congelamentos de preços da gasolina para controlar a inflação nos governos Figueiredo e Sarney até a intervenção de Fernando Henrique Cardoso, obrigando a empresa a torrar US$ 2,5 bilhões num programa de usinas termelétricas de resultados duvidosos. Sob Lula, a primeira decisão da companhia foi criar um índice mínimo de uso de peças nacionais na construção das plataformas, cumprindo uma promessa eleitoral.

"Não há dúvida de que a Petrobras alcançou um padrão mundial de excelência", diz Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura. "Mas parte do mérito da auto-suficiência está no programa do álcool anidro como combustível e no fato de o país ter crescido menos do que deveria desde o ano 2000. "Apesar da enorme conquista, a estatal brasileira deve permanecer como a 14a petrolífera do mundo, já que os ganhos foram generalizados no setor. A British Petroleum, por exemplo, teve lucro 30% maior que em 2004. A Shell, 37%. A atual fase do mercado internacional de petróleo parece confirmar um famoso aforismo do bilionário americano John Paul Getty (1892-1976): O melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada. O segundo melhor é essa mesma empresa mal administrada . Resta saber em qual dos dois casos está a Petrobras.


Entrevista com José Sérgio Gabrielli

ÉPOCA - Se o país será auto-suficiente, por que o preço na bomba de gasolina teima em não cair?

José Sérgio Gabrielli - O preço não vai cair. Mas o país ganha capacidade de ajustar o preço no mercado interno ao internacional no ritmo que for melhor. O barril do petróleo passou dos US$ 60 e o que aconteceu aqui? Não houve problema, não é verdade?

ÉPOCA - A auto-suficiência não dependerá de quanto o Brasil crescerá daqui para a frente?

Gabrielli - Hoje, nossa previsão é de um crescimento médio do PIB brasileiro de 4% ao ano até 2010. Isso significa que a demanda de derivados do Brasil vai crescer em torno de 2,6% ao ano, enquanto nossa produção cresce acima de 7% ao ano. Há folga para um crescimento maior.

ÉPOCA - A obrigação de ter plataformas com índice mínimo de nacionalização, exigência do governo Lula, foi um bom negócio para a Petrobras?

Gabrielli - Isso tem um sentido econômico importante, mas, como nosso volume de investimentos é muito grande, estamos chegando ao limite da capacidade em vários setores da indústria brasileira. Para viabilizar nosso volume de investimento, será preciso haver uma fase transitória, em que as importações terão de suprir alguma parte. Então, nesta transição teremos sistemas combinados e operações de leasing de plataformas, porque hoje os estaleiros brasileiros estão plenamente ocupados.


A vida na ilha de aço
Na plataforma P-43, na Bacia de Campos, Rio de Janeiro, a maior produtora de óleo do país, o dia de trabalho tem 12 horas, a semana tem 14 dias e o fim de semana 21 dias. A 156 quilômetros da costa, o esquema de confinamento de 220 pessoas em dois turnos exige dedicação intensiva e um equilíbrio emocional extremo. "Já vi gente chegar aqui atraída pela folga e logo pedir para desembarcar. Tem de ter estrutura para agüentar", diz o gerente da P-43, Rivadávia de Freitas, que chega a fazer 18 horas de trabalho. Apenas oito dos petroleiros são mulheres. "Nem todas querem se sujar de graxa. Sujo tanto a mão que já desisti de pintar as unhas. Mas não conseguiria ficar num escritório", afirma a técnica Ilvana Coelho, de 23 anos. Quando trabalha, deixa o filho de 4 anos com o pai ou a avó. "A pior coisa de trabalhar em alto-mar é quando o alarme de segurança toca de madrugada, mesmo que seja simulação", diz. A preocupação é constante. São 3 mil sensores de fogo e gás espalhados pela plataforma. Salas de cinema, música, sauna, academia e biblioteca aliviam a solidão. Uma técnica em enfermagem cuida da saúde a bordo e também faz as vezes de psicóloga. Cada quarto tem quatro camas e televisão com canal a cabo. O menu é caprichado: são seis refeições diárias, com sucos, frutas e três opções de sobremesa. Partidas de futebol após o expediente são comuns. Há churrascos à beira da piscina, com videokê, acompanhados de cerveja sem álcool. Bebida alcoólica, só em Natal e Ano-Novo. E cada um só tem direito a uma latinha.
(Época, 13/03/06)

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