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guerra das papeleiras
2006-03-14

Dois países cujas capitais estão separadas por 40 minutos de balsa, membros do mesmo bloco comercial e com governos de orientação política similar atravessam uma grave crise diplomática. Pontes internacionais estão fechadas, os governos trocam insultos pelos jornais e seus chefes de Estado não se falam.

A questão passa por ser ambiental, mas, como se verá, é antes de tudo política. Os pomos da discórdia são duas fábricas de celulose perto da cidade de Fray Bentos, no Uruguai. Os eucaliptais que as abastecerão têm sido implantados desde 1991 e a construção começou em 2003. A finlandesa Botnia (1 milhão de toneladas/ano a partir de 2007) e a espanhola Ence (500 mil a partir de 2008) devem fazer do Uruguai o terceiro produtor da América Latina, depois de Brasil (10 milhões) e Chile (3 milhões).

Esses projetos de 1,8 bilhão de dólares, 13% do PIB do Uruguai, são os maiores investimentos externos na história do país, como assinala a analista Cátia Akemi Morii, da consultoria Lafis. O país ainda se recobra do colapso de 1999-2002, quando sua economia, arrastada pela crise argentina, encolheu 17,5%. Sua taxa de investimento está em meros 12%. Ao contrário da Argentina, o Uruguai acatou o FMI e os credores externos e sua recuperação foi mais lenta. Só em 2005 a atividade econômica recuperou o patamar anterior à catástrofe.

A produção de celulose deve proporcionar um acréscimo de 3% no PIB, 25% nas exportações totais (3,4 bilhões de dólares em 2005, 77% das quais provenientes dos agronegócios) e dobrar as exportações industriais.

Mas, desde o ano passado, o governo e as organizações comunitárias da província argentina de Entre Ríos – principalmente de Gualeguaychú, cidade turística de 86 mil habitantes que vive também de pesca, agricultura e apicultura, 33 quilômetros abaixo da usina – multiplicam manifestações para reivindicar que as usinas sejam transferidas para outro lugar ou equipadas com o sistema TCF.

Esse sistema de branqueamento da celulose, totalmente isento de cloro, é caro e seu produto, considerado inferior, está restrito a nichos de mercado (5% do mercado global). As plantas uruguaias pretendem usar o sistema ECF, à base de dióxido de cloro e aceito pelas normas européias, apesar de os ambientalistas o julgarem menos do que ideal. É 70% menos poluente que o sistema à base de cloro gasoso, banido desde 2004 pela Convenção de Estocolmo, mas que ainda responde por 20% da produção mundial. No Brasil, está em vias de eliminação – a Riocell, última grande usina que o utilizava, trocou-o em 2002 pelo sistema ECF.

Com apoio federal, o governador de Entre Ríos – Jorge Busti, em seu terceiro mandato – respaldou os ambientalistas e o movimento popular, queixou-se ao Banco Mundial e pediu a suspensão dos empréstimos ao Uruguai, mas rejeitou a decisão do órgão quando este se mostrou favorável ao projeto. No mês passado, o governo Kirchner obteve do Congresso a autorização para levar o caso ao Tribunal Internacional de Haia.

Mas Tabaré Vázquez autorizou o projeto e diz não ter poderes legais para detê-lo. Seu país comprometeu-se a indenizar as transnacionais se seus investimentos forem inviabilizados. Certo ou errado, não pode voltar atrás e partiu para uma ofensiva diplomática junto aos EUA e ao Brasil, em busca de apoio.

Para Kirchner e Busti também seria difícil recuar de mãos vazias. O presidente argentino pediu uma trégua de 90 dias, durante os quais a construção seria paralisada e o projeto avaliado por especialistas, o que talvez resultasse em medidas ambientais suplementares. A Botnia deu sinais de aceitar se a solução for definitiva, mas o Uruguai exige, como condição prévia, a desobstrução das pontes, que o governo argentino diz não poder garantir.

Um manifesto de intelectuais preocupados com as relações entre os dois lados do rio, incluindo o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o Prêmio Nobel argentino Adolfo Pérez Esquivel, pediu aos dois presidentes “um gesto de grandeza” para resolver o impasse.

Ainda não tiveram resposta. O conflito continua a exibir a fragilidade do bloco sul-americano. Como pode um mercado comum não ter normas para o uso de rios binacionais e deixar seus membros recorrerem à OEA ou a Haia para mediar uma disputa interna? Mais que isso, como é possível lhe faltar, ainda hoje, um projeto conjunto de desenvolvimento dos recursos da Bacia do Prata, que dispense guerras fiscais e exigências de transnacionais européias?

Nas últimas semanas, duas das três pontes que ligam os países irmãos (Gualeguaychú-Fray Bentos e Colón-Paysandú) foram bloqueadas por manifestantes argentinos – 40 mil deles – para impedir o transporte de materiais para as usinas uruguaias. Um navio que saía do Chile com equipamentos a elas destinados foi retido por militantes locais do Greenpeace.

Ocorre que a Argentina tem 11 plantas de celulose, com capacidade total de 850 mil toneladas/ano. Quatro delas perto de Puerto Esperanza, no estado de Misiones – Alto Paraná, Papel Misionero, Celulosa Campana S.A. e Celulosa Puerto Piray, às margens do rio Paraná –, foram denunciadas pela Secretaria do Ambiente do vizinho Paraguai. A primeira utiliza o sistema ECF e tem a certificação ambiental ISO 14001, mas as demais usam cloro gasoso e não fazem tratamento adequado dos efluentes, o que também pode se dizer de outras plantas em Tucumán, Jujuy e Santa Fé (Celulosa Argentina) – e até de uma na própria Entre Ríos (a Iby, de 18 mil toneladas/ano).

Essas usinas são pequenas ante as uruguaias, mas o fato de jamais terem sido pressionadas por seu governo enfraquece a causa dos ambientalistas da Argentina, responsável pela maior parte da poluição do rio da Prata. Tanto quanto o passado de Busti: em 1988, tentou atrair uma planta de celulose canadense de 350 mil toneladas/ano para as margens do rio Uruguai. Em 1997, quis convencer o Exército a ceder 30 mil hectares para eucaliptais para uma possível usina da chilena Masisa. Tudo noticiado, na época, por jornais de sua província.

Se Busti atribuiu a posição inflexível de Montevidéu a “incentivos” que o seu governo e o Congresso teriam recebido das transnacionais, uruguaios respondem que argentinos se opõem às usinas apenas por não estarem do seu lado do rio. O poeta uruguaio Mario Benedetti divulgou que Busti quer se vingar de ter perdido o projeto ao exigir das transnacionais uma propina alta demais.

A acusação de oportunismo não pode, porém, ser estendida das autoridades argentinas aos populares e ambientalistas que acreditam em defender sua saúde, seu modo de vida e o ambiente fluvial. Também há uruguaios contra as usinas, como o ambientalista Calos Pérez Arrarte e o filósofo Miguel Ángel Cabrera.

Para eles, seu país sacrifica o ambiente por quase nada. Para atrair as usinas, o governo uruguaio subvenciona em até 50% o plantio de eucaliptais, fornece empréstimos a custo baixo e manutenção das estradas pelas quais os troncos serão transportados, além de uma zona franca isenta de impostos e alíquotas de importação. Mesmo pelos modestos padrões uruguaios, poucos empregos permanentes serão criados – 300 diretos e 8 mil indiretos, diz a Botnia. O impacto sobre o resto da economia uruguaia será pequeno: não haverá encadeamentos significativos com o setor industrial. Nem sequer com os serviços portuários, pois as usinas terão seus próprios terminais.

O projeto, de fato, soa pobre como estratégia de desenvolvimento e Montevidéu não tem uma avaliação independente de seu impacto ambiental, sobre o qual um grupo de 65 biólogos e bioquímicos uruguaios da Universidad de la República divulgou uma opinião bem menos otimista que a das transnacionais. E o governo uruguaio não está isento de hipocrisias. No início dos anos 90, a Frente Ampla de Tabaré, então na oposição, criticava os eucaliptais e propunha, em seu lugar, pequenas e médias unidades produtivas de alimentos. Ainda em 2003, boicotou a inauguração das obras da usina da Ence.

(Carta Capital, 10/03/2006)


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