O ato de vandalismo na unidade de pesquisa da Aracruz em Barra do
Ribeiro/RS está desviando a atenção para o principal problema ambiental
trazido pelas empresas de celulose ao Estado. "Se plantarem mais árvores que
o ideal, será relativamente fácil remediar o passivo. Mas até hoje não se
apresentou uma solução para remediar o passivo das dioxinas que se acumulam
ano a ano no Lago Guaíba", declara um ambientalista gaúcho que prefere
manter o anonimato por conta da polêmica gerada sobre a questão desde a
semana passada.
Dioxinas são substâncias tóxicas pouco pesquisadas no Brasil, mas
constantemente presentes no cotidiano das pessoas. Assim como outros
compostos organoclorados (que tem cloro e carbono em sua composição), elas
têm a capacidade de imitar características de hormônios, causando problemas
de infertilidade masculina, diversos tipos de câncer e até mesmo gerando
alterações morfológicas em animais, plantas ou fetos de seres humanos.
Mesmo sendo conhecida como subproduto das indústrias de celulose, resíduos
de dioxina são encontrados em perfumes, cosméticos, roupas, alimentos e em
tudo o que é feito com PVC (Polivinil Cloreto), por exemplo. O engenheiro
agrônomo Luiz Jacques Saldanha, responsável pelo site
Nosso Futuro Roubado, explica que "em todos os produtos
com cloro, temperatura e matéria orgânica sempre há a formação de dioxina
não-intencional".
Saldanha afirma que a indústria coloca a responsabilidade da contaminação
por dioxina na população, como se ela tivesse a consciência de ter comprado
algo com resíduos tóxicos. "Precisamos trazer para o consumidor esta visão
objetiva, de que ao adquirir qualquer produto no supermercado envolto em
PVC, tubos, persianas, esquadrias, portas pantográficas, forros, estamos
distribuindo dioxina por todo o planeta", salienta ele. Segundo o agrônomo, a
primeira campanha a ser feita é pelo não-uso de materiais artificiais na
nossa alimentação e nas nossas vestimentas, pois assim diminui-se o risco de
contaminação por várias substâncias.
Por imitarem o comportamento de hormônios femininos, as moléculas de dioxina
penetram na placenta de mulheres grávidas, interferindo no metabolismo do
feto em formação. “Os fetos machos estão ficando feminilizados,
desmasculinizados, não produzindo hormônios masculinos suficientes.
Observa-se infertilidade maior entre os jovens nascidos a partir da década
de 70 e também maior incidência de câncer de mama em mulheres jovens, por
causa dos compostos organoclorados”, comenta Jacques Saldanha.
Pesquisas estagnadas
Os ambientalistas vêm lutando há anos para que as indústrias de celulose
modifiquem seu processo de branqueamento, que utiliza cloro e
conseqüentemente tem como subproduto a dioxina. A maioria das empresas
alterou o processo nos últimos anos, passando a usar dióxido de cloro,
peróxido de hidrogênio e oxigênio – procedimento conhecido como ECF
(Elemental Clohrine-Free) – em vez de cloro ativo livre. Assim, a emissão de
dioxinas diminuiu, mas não cessou. A química Ewelin Canizares, técnica da
FEPAM que estuda dioxinas desde 1997, atesta que “a própria indústria de
papel e celulose investiu em pesquisas para saber onde a dioxina se formava,
e mudou o processo de branqueamento”. A Fepam verifica as indústrias gaúchas
solicitando àquelas que julga necessário a realização de exames
laboratoriais para comprovar a presença de dioxina. Como a análise é de
altíssimo custo, o órgão estadual não tem condições de fazê-lo, apenas
controla o auto-monitoramento.
Conforme Kathia Vasconcellos Monteiro, do Núcleo Amigos da Terra/Brasil
(NAT/Brasil), as pesquisas para descobrir novos métodos de branqueamento
estão estagnadas há uma década. Segundo ela, os ambientalistas de todo o
mundo vêm lutando há anos para que o processo TCF (denominação em inglês
para "totalmente livre de cloro") seja adotado pelas indústrias, pois desta
maneira não haveria produção de dioxina. Mesmo não sendo as principais
emissoras de dioxinas, as empresas de celulose podem ser mais rigorosamente
fiscalizadas do que as fontes domésticas e o Arroio Dilúvio, destino de boa parte dos esgotos de Porto Alegre. A elas também é
atribuída maior responsabilidade, já que poderiam usar o processo livre de
cloro.
Existem duas indústrias de celulose no Rio Grande do Sul: a Cambará S.A. não
utiliza cloro no seu processo de branqueamento, portanto não produz
dioxinas. A Aracruz Celulose utiliza o processo ECF, e, mesmo tendo um
tratamento de efluentes eficiente, sempre há a produção não-intencional de
dioxinas. A empresa alega, porém, que sem o uso de cloro o papel fica menos
alvo e não encontra espaço no mercado. Para Kathia Monteiro, pode-se criar
espaço para a comercialização do papel não-clorado, mostrando aos
consumidores que a diferença na alvura não modifica a qualidade. Saldanha
complementa, assegurando que em países como a Alemanha todo o papel é
não-clorado e aprende-se desde criança o que são as dioxinas.
Cone Sul
Do outro lado da fronteira, a construção de duas mega-fábricas de papel às margens
do rio Uruguai (veja
texto anterior) está causando uma crise diplomática entre Uruguai e Argentina. O centro da questão é justamente a
poluição causada pelas "papeleiras". Acredita-se que o problema entre os países vizinhos seja uma espécie de preliminar do que ocorrerá no Rio
Grande do Sul.
Jacques Saldanha enfatiza a necessidade de que o cloro não faça mais parte
do processo de branqueamento do papel, pois mesmo pequenos volumes de
emissões continuam sendo muito tóxicas. “A natureza não tem condições de
metabolizá-la porque é uma molécula artificial, não pode ser degradada. Não
existe quantidade que possa ser ingerida, não é uma questão de maiores ou
menores doses”, diz. Para o NAT/Brasil, apesar da emissão de poluentes pela
indústria de celulose ser controlada e estar dentro dos níveis permitidos
pela Fepam, ela não pode ser desconsiderada, pois é cumulativa.
O único laboratório credenciado para realizar exames de dioxina no Brasil é
o Analytical Solutions, em sua unidade do Rio de Janeiro. O principal método
para a identificação de dioxinas é a cromatografia gasosa — técnica para
separação e análise de misturas de substâncias voláteis. Como as dioxinas
são tóxicas mesmo em pequenas quantidades, o exame precisa ser de alta
precisão, pois permite enxergar mesmo essas minúsculas partes (no caso da
dioxina, são medidas em partes por quatrilhão – um trilhão de vezes menor do
que o miligrama). Se não for assim, uma análise pode indicar que o local não
está contaminado, quando de fato ele está. Amostras de solo, sedimentos,
água, resíduo sólido, efluentes, ração animal, frango, leite, pescado e de
ar são extraídas por meio de solventes. Elas são submetidas a diversas
etapas para eliminar outros compostos orgânicos que poderiam gerar
resultados falsos.
Gabriela Kernick Carvalhaes, diretora científica do Analytical Solutions,
declara que estudos consolidados internacionalmente definiram que a análise
deve buscar a presença de dezessete das duzentas e dez formas de dioxinas e
furanos existentes, e então comparar o encontrado com as legislações
vigentes. “Um erro comum é definir a ausência total de dioxinas para a
aprovação de um dado ambiente ou alimento, como já aconteceu no passado.
Hoje, dada à alta sensibilidade da análise, existem várias normas definindo
os limites máximos permitidos”, explica.
A química das dioxinas
As dioxinas, consideradas o mais tóxico dos poluentes produzidos pelo
homem, possuem carbono, hidrogênio e cloro em suas moléculas e podem surgir
através de diferentes processos naturais ou industriais. Existem 210
compostos de dioxinas e furanos, sendo que o número e a posição dos íons de cloro determinam as suas propriedades físico-químicas e o seu grau de
toxicidade.
Carvalhaes explica que estes poluentes se formam principalmente através da
presença de compostos organoclorados em temperaturas elevadas – entre 150°C
e 800°C – e também com a queima de resíduos sólidos com grande concentração
de matéria orgânica. “Além da formação por processos térmicos, outras
reações químicas podem favorecer a formação de dioxinas, como a metalurgia,
siderurgia, curtumes, fabricação de papel e celulose ou processos
eletrolíticos”, enfatiza.
A dioxina é um cristal incolor com pouca volatilidade e afinidade com a
água, portanto tende a ir para o solo quando despejada em rios e lagos. É
persistente e cumulativa, ou seja, não se degrada com o tempo, dificultando
sua retirada da natureza. Oferece perigo aos homens, pois é lipofílica —
adere a gorduras do sangue ou do leite materno — e acumula-se no corpo. Sua
alta toxicidade causa várias doenças nos seres humanos: erupções na pele
chamadas de “cloracne”, câncer no fígado, no nariz, no aparelho respiratório
e na língua. Além dessas, ainda enfraquece o sistema imunológico, ocasiona
problemas cognitivos e de desenvolvimento psicomotor e também dificuldades
de reprodução.
Por Natália Ledur Alles