Produção de mamona pode ter efeitos colaterais
2006-03-14
O presidente Lula e a imprensa não param de exaltar a lei que regulamenta a
utilização do biodiesel no Brasil. O governo acha que a produção desse tipo de
combustível vai ser uma revolução na geração de empregos. Isso porque,
teoricamente, processo envolve pequenos agricultores no plantio de espécies
oleaginosas para a produção. Também se diz que a disseminação do uso do biodiesel
trará benefícios ambientais, ao substituir a queima de derivados do petróleo,
muito mais poluidores.
Se os efeitos sociais da medida ainda são discutíveis, os ambientais já se
anunciam temerários.
“É preciso pensar que para produzir o óleo vegetal utilizado no biodiesel é
preciso haver plantações. Ou seja, temos de ter espaço. Se a área escolhida for
um ecossistema ameaçado, o meio ambiente será degradado de forma intensa”, alerta
o ambientalista Ibsen Gusmão Câmara. Ele entende do assunto, pois testemunhou os
efeitos perversos de um programa parecido que teve o seu auge na década de 80: o
Pró-Ácool. Em 1996, publicou o resultado de seus estudos no livro Os limites
originais do bioma Mata Atlântica na região Nordeste do Brasil, em parceria com
Adelmar Coimbra-Filho. Resumo da descoberta: a cana-de-açúcar acabou com o que
restava de florestas nativas na região.
“O processo foi o grande responsável pela destruição da Mata Atlântica. Em 1945,
quando sobrevoava o Nordeste brasileiro, ainda via diversos remanescentes da
floresta. Hoje, na região, temos apenas pequenos vestígios de mata, em locais de
declive que não possibilitaram a plantação na época”, comenta Ibsen.
Males da cana
Um trabalho da Embrapa Monitoramento por Satélite realizado no nordeste de São
Paulo mostra o custo ambiental da cultura do álcool da maneira como é conduzida
até hoje. “As queimadas são protagonistas da deterioração ambiental”, diz o
pesquisador Aldo Roberto Ometto, autor de tese de doutorado que avalia os
impactos da cana-de-açúcar no estado. “As pessoas acham que o pior problema é
aquele carvãozinho que suja as roupas. Mas o que mais prejudica, na verdade, são
aquelas partículas invisíveis facilmente inaladas. Elas podem chegar a até 50
quilômetros da plantação e causam sérios problemas de saúde, tanto para as
pessoas que trabalham na colheita quanto para a população ao redor”, explica.
Para os solos, a queimada ocasiona a perda de nutrientes. A palha da cana, que
poderia ser utilizada como adubo para a terra, é perdida. E os danos vão além.
Quando a planta é queimada, a sacarose de dentro da cana-de-açúcar sai,
cristaliza e vira um melado. Em contato com o chão, acaba ficando sujo. Por isso,
quando chega à usina, tem de ser lavado, num processo que consome grande
quantidade de água. Isso sem falar nos agrotóxicos. Segundo Ometto, a média de
herbicidas utilizada no cultivo da cana é muito mais alta do que em outras
culturas. “Enquanto a plantação de laranja consome 2,4 kg por hectare ao ano, a
de cana utiliza 5,5 kg”, compara.
O estudo realizado pela Embrapa avaliou uma área de 52 mil km², em 125 municípios
paulistas. Para desgosto dos pesquisadores, que vêem na cana uma cultura
sustentável se práticas mais modernas forem adotadas, apenas um produtor rural
de grande escala cultiva a cana-de-açúcar sem utilizar agrotóxicos. Outro cuidado
muitas vezes esquecido pelos agricultores diz respeito à utilização da vinhaça,
um dos derivados da cana. Os produtores aproveitam o resíduo para adubar o solo,
mas ignoram a possível existência de lençóis freáticos, que podem ser
contaminados pelo produto. “O plano de irrigação tem de respeitar as
características fisiológicas da área”, ressalta Ometto.
A ocupação dos solos do interior paulista pela cana-de-açúcar é impressionante.
Segundo o pesquisador da Embrapa, há cerca de 20 anos 23,5% de uma área de 37 mil
km² nas proximidades de Ribeirão Preto eram cobertos pela cultura. Hoje, mais de
50% das terras estão tomadas pela plantação. Como na utopia do biodiesel, a
próspera cultura geraria centenas de novos empregos. Mas os estudos da Embrapa
desmentem a esperança. Enquanto o cultivo de laranja gera 0,19 postos de trabalho
por hectare ao ano, com a cana esse número cai para 0,07. Se forem estimadas as
vagas diretas, indiretas e induzidas, a taxa é ainda mais discrepante.
Nos últimos anos a produção de álcool para combustível ganhou novo impulso,
devido ao crescente interesse de países estrangeiros na substituição da gasolina
pelo etanol e ao advento dos carros bicombustíveis (flex) no Brasil. A volta dos
plantios de cana-de-açúcar assusta. “Estamos nos preparando para a mesma
maluquice vista há 30 anos”, opina o economista Luiz Prado, ex-secretário do Meio
Ambiente do Espírito Santo.
Prejuízos sociais
Se não bastasse o ressurgimento do álcool, vêm aí os novos biocombustíveis, com
uma onda de plantações de mamona, milho, soja ou o grão que melhor se adapte aos
processos de mercado.
Além da ameaça real de desmatamento e agrotóxicos, as benesses sociais prometidas
pelo governo também se mostram duvidosas. O economista Luiz Prado lembra que,
mesmo para o pequeno produtor rural, os gastos com esse tipo de cultura podem ser
enormes. “A logística que o ciclo envolve custa muito dinheiro e não foi
computada. Imagina quanto um produtor de mamona, por exemplo, terá de se deslocar
até chegar a uma máquina de processamento da semente. Ele ainda precisará levar o
óleo ao local em que a Petrobras vai misturá-lo ao diesel. Mais de 50% do lucro é
gasto com transporte”, avalia.
Prado não se baseia apenas nos argumentos econômicos. No âmbito social, a
fabricação de biodiesel também não parece um negócio da China. “Os agricultores
ficarão nas mãos das grandes empresas de processamento de sementes. Haverá uma
concentração da renda e da propriedade rural. Além disso, o sistema de produção
pode contribuir para o êxodo de populações para as periferias urbanas”, ressalta.
A concorrência pelo uso da terra também incomoda o economista. Ele prevê que os
alimentos ficarão mais caros devido à expulsão das culturas para longe dos
maiores centros consumidores. Mais uma vez, o transporte seria vilão dos altos
preços.
Nem social nem ambiental, o biodiesel soa como promessa furada. Já vimos esse
filme.
(Aline Ribeiro, O Eco, 11/03/06)
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