Prefeitura promete fazer cinturão verde em Angra dos Reis
2006-03-14
O prefeito de Angra dos Reis, Fernando Jordão (PMDB), promete combater a ocupação irregular na Ilha Grande. Ele suspendeu recentemente os alvarás de construção na ilha e, agora, anuncia a criação de um cinturão verde nas áreas ainda preservadas. A primeira cerca será construída ainda no primeiro semestre na área mais populosa, a Vila do Abraão:
- Sei que cabe a mim dar uma resposta a isso. Inicialmente, o cinturão verde vai delimitar a área construída na vila e, depois, nas outras comunidades com mata ameaçada na ilha. Outra ação, mais enérgica, será a demolição: já fizemos dez e vamos fazer muitas outras. A Operação Angra Legal (de ordem urbana) não foi montada só para o carnaval, vai atuar até o fim da minha gestão.
Segundo a prefeitura, há neste momento 48 obras embargadas por irregularidades. Apesar da iniciativa, há uma sobreposição de poderes entre a prefeitura e os órgãos que administram unidades no local. A APA de Tamoios, a Reserva Biológica da Praia do Sul e o Parque Marinho de Aventureiro estão sob a responsabilidade da Feema. O Parque Estadual da Ilha Grande é administrado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF).
O presidente do IEF, Maurício Lobo, admite que o problema de conflito de poder existe, mas diz não ser o principal na ilha. Para ele, a maior necessidade da região atualmente é a conclusão do plano de manejo do Parque Estadual da Ilha Grande. O documento, segundo o IEF, deve ficar pronto em no máximo quatro meses.
O IEF promete investir R$ 250 mil no parque este ano. Hoje trabalham ali seis guardiões terceirizados e três servidores. O órgão não dispõe sequer de uma lancha para a fiscalização:
- Temos que fazer parcerias com a prefeitura de Angra e a Polícia Militar. Não podemos mesmo ficar sem uma embarcação - disse Lobo.
O diretor da Feema, João Eustáquio, diz que o órgão identificou 65 pontos críticos de agressão ao meio ambiente nas comunidades de Abraão, Praia do Abraãozinho, Passa Terra, Dois Rios, Parnaioca, Praia Grande de Palmas e Enseada de Lopes Mendes. Já foram feitas 44 vistorias nesses locais.
Para Alexandre Guilherme, presidente do Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig), se não houver uma interferência mais firme do estado, o modelo de Angra dos Reis - com áreas favelizadas no Centro e resorts nas encostas - será repetido na ilha. Ele conta que em 2004 o BNDES ofereceu verba para um projeto de recuperação ambiental do local:
- A base era o saneamento, com verba garantida para água, lixo e esgoto, mas tinha também a previsão de ordenamento territorial, de geo-referenciamento, da criação de infra-estrutura turística e, fundamentalmente, da participação do morador. Eles queriam para a ilha um modelo de turismo de classe média, mas o projeto não atende ao modelo dos grandes empreendimentos de Angra, altamente concentrador de renda.
A Enseada do Abraão é a vila mais populosa da ilha, com cerca de 2.100 moradores fixos. É protegida pela legislação da APA de Tamoios, que restringe a ocupação em algumas zonas e pela legislação ambiental. Um estudo para a Uerj da geógrafa e advogada Ana Lúcia Castro de Oliveira revela que todas as áreas de preservação permanentes (APPs) da vila - como costões, enseadas, margens de rio e praias onde nada pode ser construído - sofrem com invasões.
Segundo o levantamento da geógrafa, feito através do cruzamento de dados com imagens de satélite, 10% do total da Enseada de Abraão têm ocupações dentro de APPs. Nos mangues da vila, o índice chega a 40%; nas margens de rio, a 13%; e nas praias da enseada, a 13,5%.
Ana Lúcia diz que não faltam leis para proteger o uso do solo local:
- Falta a aplicação da lei. O que ocorre é que há muitos atores sociais conflitantes: "pousadeiros" querem muitos turistas, turistas querem a ilha preservada e, entre os nativos, há várias posições.
Ilha Grande já sofre processo de favelização
A Ilha Grande passou de "caldeirão do diabo" a paraíso quando o presídio local foi desativado. Doze anos depois, a vocação daquela enorme mancha de Mata Atlântica cercada de águas cristalinas por todos os lados está ameaçada pela cobiça do homem. Um levantamento da prefeitura de Angra dos Reis revela que 64% da ocupação da ilha são ilegais - das 1.225 residências, 792 estão irregulares. O descontrole deu início ao processo de favelização, admitido pelo próprio poder público municipal e constatado por pesquisadores da Uerj.
Os sinais de degradação e violação da ordem urbana estão espalhados por toda a costa. A partir de hoje O GLOBO mostra, numa série de reportagens, as línguas negras e outras conseqüências da falta de saneamento, o problema para permanecer em praias praticamente privatizadas e o caos provocado pela superlotação da ilha em feriados.
Todo o território da Ilha Grande é preservado pela Área de Proteção Ambiental (APA) estadual de Tamoios. Numa parte dela, há a sobreposição com o Parque Estadual da Ilha Grande e, noutra, com a Reserva Biológica estadual da Praia do Sul. As construções só são permitidas em algumas zonas da APA, mas, antes de chegar à ilha, o visitante enxerga um mar de ocupações irregulares em encostas, terrenos acima de 40 metros, costões rochosos e praias, todas áreas protegidas.
A geógrafa e advogada Ana Lúcia Castro de Oliveira, autora de uma dissertação de mestrado do Grupo de Estudos Ambientais da Uerj sobre a ocupação irregular da Enseada de Abraão, constatou em campo o processo de favelização da ilha. Ela usou como parâmetro a definição do IBGE para aglomerados subnormais: conjunto constituído por mais de 50 unidades em propriedade alheia (pública ou particular) dispostas de forma desordenada e densa e carentes de serviços públicos essenciais, que tenham sido implantadas sem posse de terra ou título de propriedade.
- Constatei uma aglomeração maior que a determinada pelo IBGE, proveniente de ocupação irregular, de baixa renda e sem infra-estrutura básica na vertente sudeste da Enseada de Abraão. O caminho é da favelização, apesar de ainda não dar para chamar de favela - diz Ana Lúcia.
Ocupação imita favelas de Angra
Durante o trabalho, ela percebeu a tendência, em Abraão, da ocupação de áreas cada vez mais altas, muito acima do limite de 40 metros previstos na legislação:
- Apesar de eu não ter quantificado o aumento, ele é muito nítido. Como a especulação está muito grande na faixa litorânea, existe um movimento de ocupação sem controle das áreas mais elevadas.
A prefeitura de Angra, de olho no seu distrito mais preservado, reconhece o problema. O presidente da TurisAngra, Manuel Francisco de Oliveira, compara os telhados da ilha com os do continente:
- Se você observar os telhados amontoados das encostas favelizadas de Angra e os da Ilha Grande, percebe que têm a mesma formação. Se não fizermos nada, a tendência é realmente a favelização - diz ele.
No levantamento, 13 praias da ilha aparecem com ocupações irregulares - o maior número de ilegalidades está na maior vila, a de Abraão, com 320 das 620 casas existentes fora da lei. Em algumas comunidades de caiçaras, todos os imóveis estão sem documentação. Mas, nesses casos, o município vai se esforçar para regularizar a situação.
- Cerca de 30% das casas irregulares são de caiçaras. Vamos tentar regularizá-las e dar assistência do município. Por outro lado, há uns 15% de casas de veraneio ilegais. Nesse caso, seremos mais severos - avisa Manuel Francisco.
Demandas sobre ocupação irregular na Ilha Grande não param de chegar ao escritório de Angra do Ministério Público estadual. A promotora Patrícia Gabai já abriu 20 procedimentos e inquéritos e promoveu duas ações civis públicas sobre o tema:
- Temos diversos procedimentos em áreas onde a construção é proibida. Há casas dentro de unidades como o parque estadual e até dentro da reserva biológica, onde em tese não é permitida nem a entrada do homem. As construções vão desde hotéis a ocupações de população carente.
Num sobrevôo na ilha, repórteres do GLOBO constataram absurdas ocupações irregulares em várias praias. Na comunidade existente em Provetá, por exemplo, há servidões construídas no costão de pedra, que levam a casas em áreas acima de 40 metros onde a Mata Atlântica foi derrubada. Em outra, também numa encosta proibida próxima ao mar, o dono pintou um "vende-se" em letras garrafais, visíveis de longe.
O presidente da Associação de Moradores de Provetá, Manoel Gonçalves Filho, explica o dilemma dos pescadores, que muitas vezes constróem fora da lei por falta de opção:
- Tem pescador que constrói em área proibida e sabe até que corre risco, mas não tem para onde ir. O que ele vai fazer? Muitos vendem a casa e vão para a cidade, onde acham que há mais dinheiro. Aí, voltam desiludidos e constróem outra casa em local proibido. Por aí vai a devastação. Por isso, aqui na associação, insistimos que ninguém venda nada.
Na ilha, alguns moradores enxergam a degradação. Arnaldo Ricardo Paes, o guia de turismo mais conhecido da ilha, dá a sua versão para tantos problemas:
- Todo mundo quer a sua fatia. O caiçara, que antes vivia da pesca e da roça, não se preparou para o turismo e está construindo casas de pau-a-pique. Mas esses ainda preservam mais que os donos de grandes imóveis, cujo esgoto muitas vezes vai parar nos córregos. O que salva é que 90% da ilha ainda são de áreas verdes.
Mas há quem não enxergue a degradação. Aos olhos do ex-preso Júlio Lopes, de 75 anos, que saiu do presídio em condicional pouco antes de sua desativação, agora a Ilha Grande está muito melhor:
- O povo não sabe o que é o inferno da cadeia. A gente fazia as necessidades no mar, aqui quase não tinha banheiro. Quanto mais povoada a ilha, mais dinheiro chega.
(O Globo, 13/03/06)