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2006-03-13
O bom senso faria de Irecê, cidade do sertão baiano conhecida como "capital mundial da mamona", um dos primeiros lugares para montar fábricas do projeto biodiesel. A matéria-prima é o ganha-pão de mais de 30 mil famílias de pequenos agricultores que há quase seis décadas manejam o produto. Só que, para eles, a realidade da política fez com que os maiores especialistas de mamona do Brasil ficassem de fora do programa xodó do governo Lula.

A região de Irecê tem 22 municípios cuja economia é fincada no tripé feijão, milho e mamona. Planta-se primeiro o feijão. Se vingar, é garantia da reforma da casa ou da economia para comprar uma máquina. Depois vem o milho. Também se vingar, vira o cuscuz e ração dos animais. Já o mamoneiro, que vinga sempre, é a cultura de subsistência que faz o produtor se fixar no campo.

Em muitos cantos, mamona é erva-daninha. As sementes explodem no galho, voam pelo terreno baldio e viram outro pé. Quem se diverte é a molecada, que faz "guerras" com a pequena bola espinhuda. Em Irecê, a criançada sabe que o cultivo tem de ser levado a sério. Os grãos viram um óleo de usos múltiplos, torta de mamona e são moeda de troca.

A produção de Irecê é a maior do Brasil - a região tem condições ideais para o cultivo. Na safra 2004/2005, foram produzidas 600 mil toneladas. A área plantada foi de 200 mil hectares, mas já atingiu 250 mil hectares na década de 80. Esse volume representa 80% da mamona nacional. Nos anos 70, o País tinha a maior produção mundial. Hoje, está em terceiro lugar, atrás da Índia (com 50% do mercado) e China ( 30%).

Neste ano, contudo, houve uma queda brutal na área plantada, que ficou em 40 mil hectares. Lavouras foram erradicadas. Em novembro, agricultores revoltados queimaram o fruto em praça pública. Ato compreensível quando se descobre que o preço da saca de 60 quilos na época do plantio da safra passada superava os R$ 85 e na venda despencou para menos de R$ 20. A lei da oferta e da procura explica só em parte essa gangorra dos preços.

"Os produtores, pela força da propaganda do governo, voltaram ao hábito de plantar muita mamona", diz o prefeito Joacy Nunes Dourado (PMDB), de Irecê, que cultiva o produto e teve de estocar mais de 500 sacas. O Banco do Nordeste, órgão federal de fomento, enviou técnicos para estimular e promover o produto. A empresa estadual de apoio ao agricultor, EBDA, foi generosa no auxílio técnico. O presidente Lula virou garoto-propaganda. "Todo mundo achou que ia ganhar dinheiro", diz o prefeito, que, embora faça críticas, é defensor do programa federal.

O projeto do biodiesel não vingou na região de Irecê e nem mesmo uma fábrica de processamento (a de esmagamento, que transforma a baga em óleo) foi instalada. Nos últimos meses, só se ouviram notícias de unidades privadas de produção de biodiesel sendo montadas no Piauí, Ceará, Pernambuco e Rio Grande Norte. Os reis da mamona vão perdendo as esperanças.

"Moço, não sei se vai dar certo esse tal biodiesel. Mas seria a solução da gente aqui", diz Rosa Alves dos Santos, de 43 anos. Ela tem 16,5 tarefas, ou 7,2 hectares de terra. Vive com cinco filhos em Alto Bonito, na cidade de Presidente Dutra. Recebe o Bolsa-Família, mas o sustento vem da aposentadoria do marido, Fausto Ferreira dos Santos, de 70 anos, e da lavoura de milho, feijão, mandioca e mamona. Quando o dinheiro acaba, vai à venda com alguns sacos de grãos e troca por mercadoria. Para 1 quilo de arroz, são necessários 5 de mamona.

A mamona do platô de Irecê é comercializada numa cadeia predatória para os agricultores familiares. Um quilo do produto de dona Rosa vale R$ 0,40 na vendinha de Maria de Fátima Vieira. Uma saca de 60 quilos custa, então, R$ 24. Ao juntar muitas sacas, consegue vendê-las a atravessadores da Rua do Feijão, em Irecê, a R$ 28 cada. Estes revendem a fábricas como Bom Brasil, de Salvador, e A. Azevedo e Bioleo, de São Paulo, por preços que variam de R$ 37 a R$ 42. São as grandes empresas que ditam os preços, já que abastecem o mercado nacional ou exportam. A mamona é uma commodity.

Seus derivados são muito cobiçados. Servem para produzir lubrificantes de alta performance, xampus e batons, próteses mecânicas, óleo de rícino, vermífugo animal e até antrax, o pó tóxico. O biodiesel não é considerado um uso nobre. Até a palha seca é mais útil. Estima-se que um quilo nesse estado seja capaz de remover 750 gramas de carbono da atmosfera. Ou seja, a mamona interessaria também no comércio mundial de crédito de carbono (quando um país poluidor paga para outro manter áreas verdes intactas).

Essas informações podem ser obtidas numa visita a Irecê. Políticos, sindicalistas e produtores repetem os dados como um mantra, e não se conformam em terem ficado a quilômetros de distância do biodiesel. "O governo poderia ter acelerado o programa se tivesse trazido os meios para instalar uma unidade na região", diz Antonio Jorge Oliver, assessor da Prefeitura de Lapão, a primeira a construir com dinheiro do Ministério do Desenvolvimento Agrário uma fábrica de esmagamento do produto. Produzirá óleo, não biodiesel.

Sem mercado e sem apoio, produtores como Carmelina Maria Queiroz, de 74 anos, vivem reféns da chuva, dos atravessadores e da má vontade dos burocratas. Mãe de 16 filhos, construiu a casa simples de adobe graças à mamona. Sonhava em melhorar. Por isso, não se conforma quando lembra que o Banco do Brasil de Cafarnaum lhe negou um empréstimo para comprar um trator.

Em julho de 1998, o candidato Lula visitou Irecê, a maior cidade da região de mesmo nome, com 60 mil habitantes, e prometeu: "No meu governo não faltarão incentivos para o pequeno e médio produtor rural". Hoje, o produtor Arcelino Alves Neiva diz que Lula "deixou cair uma construção que só faltava dar um cimento no pé para assentar". Aos 76 anos, o veterano plantador de mamona faz as contas e sentencia que não vai ver, em vida, o programa de combustível alternativo chegar: "A mamona só prestava para ser biodiesel se ficasse na casa dos R$ 20. Mas isso não paga as despesas do agricultor".
(O Estado de S. Paulo, 12/03/06)

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