Gripe mortal e planetária
2006-03-06
Faltam 18 meses. Na França, uma vacinação em massa de aves já teve início,
atingindo 12 mil patos. Na Bélgica, a comercialização de frangos está sob severa
restrição e as aves de criação doméstica têm de ser confinadas nas casas de seus
donos – nenhuma delas pode ser alimentada em locais públicos. Na Itália, um
verdadeiro exército de policiais controla as fronteiras e o consumo de carne de
aves já despencou 70%. Na Alemanha, a comercialização de toda e qualquer espécie
de ave já está proibida e até a realização da Copa do Mundo está ameaçada –
autoridades sanitárias da ONU e da própria União Européia cogitam de cancelá-la.
Na Grã-Bretanha, os criadores de aves têm de registrá-las numa central montada
especialmente para essa finalidade – e quem não o fizer vai preso. No Brasil, o
ministro da Saúde, Saraiva Felipe, alerta: “Tentar impedir a chegada da gripe
aviária ao nosso país é bobagem.” A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) estabeleceu até data: ela chega ao Brasil em setembro próximo.
Tudo isso, caro leitor, é real. E, nos seus sinais, há características típicas de uma pandemia – espécie de epidemia global, sem fronteiras e generalizada, que,
além de matar, poderá levar, no extremo, o planeta ao caos socioeconômico. O
mundo já passou por uma pandemia de gripe em 1918, a tragicamente famosa gripe
espanhola, que ceifou entre 20 milhões e 40 milhões de vidas. Essa pandemia de
agora pode ser ainda mais catastrófica. Os analistas estimam em 50 milhões o
número de mortos, o equivalente ao total de vítimas fatais da Segunda Guerra
Mundial. O mundo não estava preparado para enfrentá-la no início do século XX e
não está preparado para enfrentá-la neste início do século XXI. “A pandemia de
uma gripe virá e a medicina moderna não sabe como combatê-la. Virá em poucos
meses. Isso é certeza”, disse a ISTOÉ Michael Ostherholm, diretor do Centro de
Pesquisas sobre Doenças Infecciosas dos EUA e professor da Escola de Medicina da
Universidade de Minnesota. Soma-se à sua voz a do secretário geral da ONU, Kofi
Annan: “Quando ocorrer a primeira transmissão homem para homem, teremos apenas
algumas semanas para evitar a sua disseminação. Milhares de pessoas morrerão, os
sistemas de saúde ficarão sobrecarregados, famílias serão dizimadas, transportes
e comércio serão interrompidos, o progresso econômico e social regredirá. É a
isso que se chama pandemia.” No quadro limite, faltarão leitos nos hospitais,
faltarão enfermeiras, faltarão medicamentos, faltarão respiradores mecânicos nas
UTIs, faltarão urnas funerárias.
O Brasil, como o resto do mundo, não tem a princípio qualquer estrutura para
enfrentar uma onda pandêmica. O governo federal comprou 90 milhões de doses de
Tamiflu, até agora o único medicamento disponível contra o vírus da gripe aviária,
mas que nem sempre atua com eficácia. A quantidade comprada dá para socorrer
somente 5% da população brasileira. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária
proibiu a importação de produtos derivados de aves procedentes de países com
casos confirmados de infecção pelo vírus da gripe aviária. Proibiu também o
ingresso, o tráfego e a comercialização de carcaças inteiras, cortes, produtos
industrializados, ovos e penas de qualquer região do mundo já infectada. E exigiu
o monitoramento de sobras de alimentos servidos a bordo de aviões que venham
dessas regiões. Mas tudo isso ainda é pouco. Nada justifica, por exemplo, que o
governo federal não tenha montado uma equipe permanente de estudo e pesquisa
reunindo os melhores especialistas do País. Pouco antes do Carnaval, o governador
de Santa Catarina, Luiz Henrique, interpelou pessoalmente o ministro da
Agricultura, Roberto Rodrigues: “Quando é que vocês vão tratar a ameaça dessa
pandemia como uma questão de segurança nacional? Precisamos ser mais ágeis ou
seremos vítimas de uma catástrofe social sem precedentes.” Santa Catarina é sede
das maiores agroindústrias brasileiras, responsáveis por 60% do mercado interno e
70% das exportações.
A morte tem nome e tamanho: chama-se H5N1, popularizada como vírus da gripe
aviária, e seu diâmetro é oito mil vezes menor que o diâmetro de um fio de cabelo.
Ela teve o seu primeiro foco em Hong Kong, em 1997, com a morte de um garoto. De
2003 para cá, outros focos foram surgindo, primeiro na Ásia, depois na África,
até chegar à Europa. E também o continente americano já está sob suspeita com a
morte de 21 aves no Caribe. Entre os seres humanos, até a quinta-feira 2, o vírus
sepultara 94 pessoas de um total de 174 infectadas – cerca de 55% num período de
tempo de aproximadamente três anos. Já se perdeu a conta de quantas toneladas de
galinhas, patos selvagens, cisnes, gansos e outras aves foram incineradas nos
últimos três anos.
Quem é o inimigo
A coisa piorou quando se confirmou no último fim de semana o primeiro caso de
infecção de um mamífero na Europa: um gato foi encontrado morto na ilha de Ruegen,
ao norte da Alemanha, e em seu corpo foi identificada uma das formas mais
agressivas de H5N1. “O risco agora é muito alto para todo o mundo. Um mamífero
morto na Europa pelo vírus aviário, eis a notícia que tanto temíamos”, diz o
diretor-geral da Organização Mundial de Saúde Animal, Bernard Vallat. Na escala
de riscos das autoridades sanitárias da ONU, que numa graduação de um a seis mede
a iminência de uma pandemia, o alerta passou para o nível três – o grau limite
antes da contaminação geral.
Transmitido ao homem através de aves contaminadas, o H5N1 é apenas um dos vírus
de gripe que compõem o amplo e diversificado leque do vírus Influenza – assim
chamado porque se acreditava, na época do fundador da medicina, Hipócrates
(nasceu na Grécia em 460 a.C), que a gripe era uma “influência dos espíritos”. As
letras H (hemaglutinina) e N (neuraminidase) correspondem às duas proteínas que o
vírus traz em sua superfície e pelas quais ele invade as células de seus
hospedeiros e atua dentro delas, liberando o seu material genético (RNA).
Tanto as aves quanto os homens se infectam, principalmente se entrarem em contato
com fezes e secreções contaminadas, pastos, estercos, rações e bebedouros que
estejam infectados, ou se comerem ave doente. Detalhe: numa ave infectada, o
vírus aviário morre em até três horas se ela for cozida a 56 graus centígrados,
morre em até meia hora se for cozida a 60 graus, mas dura até um mês na ave
congelada – ou seja, podem-se comer aves se tais cautelas forem tomadas (o ideal
é fervê-las, ou seja, submetê-las a 100 graus centígrados). Outros cuidados:
lavar as mãos com sabonete freqüentemente, tomar a vacina contra a gripe comum,
evitar aglomerações. Mas, instaurada uma pandemia, essas providências serão
paliativas. “Ocorrendo uma mutação genética no vírus, se dará a transmissão de
ser humano para ser humano, o que poderá detonar uma pandemia”, diz o virologista
Celso Granato, professor de infectologia da Universidade Federal de São Paulo.
Assim, se ocorrerem tais mutações (e é altíssimo o risco porque diversos vírus
Influenza mudam geneticamente), aí o vírus aviário será transmitido também pelo
ar, da mesma forma que se transmite o vírus da gripe comum. A diferença é que o
H5N1 é infinitamente mais lesivo ao organismo humano, atingindo rapidamente
diversos órgãos, como pulmões, rins, estômago e intestino.
Para barrar o avanço do vírus aviário, o fato é que cuidados individuais e
caseiros são importantes, mas, diante da tragédia, pouco significarão. Não
estamos preparados para guerrear contra uma pandemia que está chegando. Os EUA,
por exemplo, têm apenas 105 mil respiradores mecânicos. No Brasil, pode-se trocar
o “apenas” pela expressão “insignificante”, já que o SUS possui 20.481 desses
aparelhos. Para se proteger, os EUA têm estocados dez milhões de doses do
medicamento Tamiflu, até agora o único capaz de agir, ou pelo menos tentar agir,
contra a gripe aviária. Ele atua sobre a tal da proteína N, impedindo que o vírus
parta em direção à célula vizinha. Nada se sabe, porém, se ele será eficaz no
caso de uma pandemia, mesmo porque, na pandemia, o vírus já sofreu mutações. Os
dez milhões de doses americanas são insuficientes para atender todo o grupo de
risco daquele país (funcionários de granjas e profissionais de saúde), e com isso
o próprio governo dos EUA concorda. Mas há quem diga que em seu território um
rigoroso trabalho de desenvolvimento e armazenamento de novos remédios se dá sob
sigilo de Estado e até cavernas estariam virando laboratórios em nome da
segurança de seus cidadãos. O que os americanos podem estar planejando
restringe-se a eles e ao seu país. A questão é: o Brasil, como vai se mover
diante de tal ameaça pandêmica?
(IstoÉ, 06/03/06)