Amapá pára a pesquisa com cobaias
2006-03-10
O Ministério da Saúde acaba de determinar a interrupção da pesquisa sobre malária que vinha sendo realizada no Amapá com a utilização das chamadas "cobaias" humanas, que receberam pagamento em troca da aceitação de serem picadas pelo mosquito transmissor da doença. A notícia foi apresentada pelo representante da Pasta, Moisés Goldbaum, durante audiência pública sobre o tema promovida nesta quarta-feira (8) pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), do Senado.
Segundo Goldbaum, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, foi publicada nesta semana a homologação, pelo ministério, de decisão contrária à pesquisa - coordenada pela Universidade da Flórida - tomada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). Com isso, adiantou, será paralisada a análise de dados de campo já colhidos no Amapá. E os próprios resultados da pesquisa poderão não ser publicados.
- Tudo leva a crer que foram cometidas infrações de ordem ética, como o pagamento pela participação na pesquisa e a exposição da comunidade local ao risco de contrair a doença - disse Goldbaum.
Na abertura da audiência, o presidente da comissão, senador Cristovam Buarque (PDT-DF), observou que o colegiado não adotava uma postura "obscurantista" e nem pretendia criar uma fobia contra a ciência. Mas alertou para a necessidade de compatibilização das pesquisas feitas na região com o respeito às populações locais. O senador Paulo Paim (PT-RS), por sua vez, ressaltou o fato de terem sido utilizadas na pesquisa pessoas negras de uma comunidade remanescente de quilombolas.
O tema passou a ser investigado pela comissão depois de denúncia feita pelo promotor público Haroldo Franco, do estado do Amapá. Titular das áreas de defesa do consumidor, cidadania, meio ambiente e patrimônio público da comarca de Santana (AP), ele relatou durante a audiência ter ficado chocado ao tomar conhecimento de cláusula do termo de consentimento assinado pelos participantes, segundo o qual estes admitiriam fornecer com o próprio sangue alimento para os insetos coletados.
- O alarme que soou foi o da dignidade humana. Não vi nenhum benefício da pesquisa para a comunidade, mas sim manipulação da pobreza - afirmou Franco. Um vídeo apresentado durante a audiência, gravado em visita ao local do presidente da comissão, mostrou relatos de habitantes locais sobre o recebimento de R$ 12 por dia para a coleta de mosquitos e de R$ 10 para a alimentação dos insetos. Líder da comunidade de São Raimundo do Pirativa (AP), onde foi realizada a pesquisa, o agente de saúde Sidnei Siqueira disse que dois filhos seus contraíram malária depois que ele chegou em casa picado pelos mosquitos transmissores da doença.
- Eu me senti como um rato de laboratório - relatou. O diretor de Políticas e Programas Temáticos do Ministério de Ciência e Tecnologia, Isaac Roitman, lembrou que as pesquisas científicas podem envolver a participação de seres humanos. Mas considerou "inaceitável" o fato de não terem sido tomados os devidos cuidados com a preservação da saúde das pessoas envolvidas, em uma região onde a malária é considerada uma doença endêmica.
A divulgação do uso de "cobaias" nesse caso foi descrita como "ponta do iceberg" pelo presidente do Conselho Regional de Medicina do Amapá, Dardeg Aleixo. A seu ver, diversas outras pesquisas vêm sendo feitas de forma clandestina na região. Por sua vez, o subchefe da Divisão de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores, Alan Coelho, elogiou o "papel patriótico" desempenhado, na divulgação do caso, pelo Ministério Público e pelo Senado Federal.
Último a falar, o coordenador da pesquisa, biólogo Alan Kardec, admitiu haver cometido um erro ao pagar a participação de habitantes locais, embora a prática - de acordo com seu relato - já viesse sendo promovida no início da pesquisa pela Universidade de São Paulo (USP). Ele disse que passou a viver à base de medicamentos, desde que foram publicadas as primeiras noticias sobre o assunto, e lamentou que as informações divulgadas o tratem "como se fosse um torturador ou um nazista". A seu ver, a pesquisa contribuirá para o combate à malária no país.
(Diário do Amapá, 09/03/06)