Cresce ocupação irregular no entorno de usina hidrelétrica
2006-03-10
A pouco mais de 100 quilômetros da capital federal — sede de vários órgãos
públicos responsáveis por não deixar problemas como esse acontecer — cresce a
ocupação irregular do entorno do lago da usina hidrelétrica de Corumbá IV, com
sede em Luziânia (GO).
De acordo com relatos de fazendeiros da região, da noite para o dia surgem casas
em lotes entre 150 e 800 metros quadrados, próximos ao reservatório. Alguns em
futuros condomínios fechados. Pela lei, lotes rurais têm que ter no mínimo 20 mil
metros quadrados (2 hectares). Nessas áreas, consideradas de preservação
permanente por margearem o lago, tratores rasgam a terra e colocam abaixo porções
de mata para fazer avançar os loteamentos.
Como uma batata quente, as denúncias passam de mão em mão entre as autoridades.
Procurado pela reportagem de O Eco, o Ibama informou que “por enquanto não tem
nada a dizer”, mas recomendou que o fato fosse notificado ao Ministério Público
“o quanto antes”. Quem bate no Ministério Público Federal em Brasília ouve que as
irregularidades devem ser encaminhadas à Procuradoria da República em Goiás. Esta
última não recebeu qualquer reclamação até o momento.
Contratos inválidos
A situação acontece em um momento de indefinição quanto à situação fundiária do
entorno do lago artificial. Durante a construção da barragem e enchimento do lago,
iniciado em 2002, o consórcio Corumbá Concessões firmou contratos com pelo menos
34 fazendeiros e chacareiros para que pudessem usar uma faixa desapropriada de
cem metros nas margens do reservatório, desde que se comprometessem a proteger a
vegetação.
Mas esses acordos foram considerados irregulares. A suspensão dos contratos era
uma das condições necessárias para o início do funcionamento da usina, conforme
Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre a Corumbá Concessões, Ministério
Público Federal e Ibama. Com isso, a empresa cancelou os acordos pela via
judicial. A gritaria dos fazendeiros começou nos últimos dias, quando foram
informados sobre a mudança nas regras do jogo.
A decisão se baseou no Código Florestal, que protege integralmente Áreas de
Preservação Permanente (APPs) como entorno de nascentes, córregos, rios e
reservatórios naturais ou artificiais. Desta forma, seria ilegal ceder APPs
desapropriadas com o compromisso de que fossem preservadas pelos antigos donos
“por 35 anos”, como previam os contratos, uma vez que as áreas já são protegidas
por lei.
Os acordos serviram inicialmente como “agente facilitador” das desapropriações.
Agora que foram derrubados, a Corumbá Concessões deverá abrir novamente o bolso e
engrossar o valor das indenizações.
APPs liberadas
As regras de uso do “litoral” ao longo do reservatório também devem ser atingidas
pela polêmica resolução aprovada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama),
liberando várias formas de utilização das APPs. Quando for publicada no Diário
Oficial da União, nos próximos 30 dias, a resolução permitirá a abertura de
acessos e trilhas e a construção de pequenos ancoradouros e rampas para barcos em
APPs, atividades consideradas de baixo impacto.
A brecha pode significar a salvação da lavoura para empresários que desejam
investir em turismo às margens do lago. Já para os fazendeiros, significa mais
dor de cabeça. Desde o enchimento do lago, Ricardo Almeida já trocou quatro vezes
o cadeado e a corrente do portão da sua Fazenda São Judas Tadeu, em Alexânia,
insistentemente cortados por invasores. Para ele, o fim do contrato firmado com a
Corumbá Concessões é uma ameaça à região. “Pelo contrato, eu ajudaria a preservar
essa área. Agora não tenho mais responsabilidade”, diz o advogado. A fazenda tem
sete quilômetros de margem à beira do reservatório.
A Corumbá Concessões, responsável pela usina e pela faixa de 100 metros no
entorno do lago, afirma não ter conhecimento das ocupações irregulares. Por meio
de sua assessoria de imprensa, garante que toda a margem do reservatório será
reflorestada com espécies nativas e “doada” ao Ibama. A empresa também informou
que foi elaborado um Plano de Ocupação do Solo para o entorno do lago. A proposta
está sendo analisada pelo Ibama.
Valorização
O cancelamento dos contratos não é suficiente para o Ministério Público Federal.
No dia 14 de fevereiro, a Procuradoria Regional da República da 1ª Região entrou
com recurso pedindo a suspensão das operações da usina. Alega que o Ibama
concedeu licença de operação à hidrelétrica sem que uma série de requisitos
ambientais fosse atendida.
A polêmica usina foi inaugurada, com toda a pompa, no dia 4 de fevereiro. A
cerimônia reuniu os governadores Joaquim Roriz, do Distrito Federal, e Marconi
Perillo, de Goiás, além do ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau. Capaz de
gerar 127 megawatts, calcula-se que poderá suprir com energia uma cidade de 250
mil habitantes.
A corrida desordenada à região se deve à valorização da terra e à aposta na
formação de um pólo turístico a partir do uso do reservatório, o que foi
estimulado pelos governos do Distrito Federal, sócio no empreendimento de R$ 600
milhões, e de Goiás. “Esse lago é cinco vezes maior do que o Lago Paranoá,
portanto terá condições de trazer um grande desenvolvimento do turismo para a
região. Aqui, nós teremos resorts e complexos turísticos”, declarou o governador
Marconi Perillo ao jornal Tribuna do Brasil.
Em Abadiânia, o prefeito Itamar Vieira Gomes (PTB) acredita em um salto turístico
já em 2006. Um empreendimento com cerca de 700 residências, marinas e até um
aeroporto está previsto para ser construído às margens do lago.
Corumbá IV levou asfalto e estimulou a compra e venda de terras na região. Nos
classificados de jornais goianos e na estrada de acesso à usina, em Luziânia,
anúncios oferecem chácaras, sítios e fazendas que tiveram seu valor multiplicado
em muitas vezes com o empreendimento. Algumas terras saltaram de R$ 6 mil a R$ 8
mil o alqueire (5,8 hectares) para até R$ 150 mil.
O crescimento do turismo e da pesca sem controle já deixa suas marcas: latas de
cerveja, garrafas, absorventes femininos, fraldas e toda sorte de lixo se
acumulam em alguns pontos às margens do lago. Os donos do Hotel Fazenda Raizama,
a 14 quilômetros do centro de Alexânia, chegaram a bloquear a estrada em frente à
sua propriedade para evitar o acesso de turistas ao lago.
Ocupação semelhante ocorreu às margens do Lago Paranoá, em Brasília. O problema
até hoje não foi resolvido, e mansões de luxo se espalham ao longo da APP. Mas
como Área de Preservação Permanente agora é algo muito relativo, pode ser que em
Corumbá IV se repitam livremente os mesmos erros cometidos na capital federal.
(Aldem Bourscheit, O Eco, 09/03/06)
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