Edital traz privatização da água mineral à tona
2006-03-03
A abertura do edital para exploração de fontes de água mineral no sul de Minas Gerais, no dia 16 de fevereiro, traz à tona a discussão sobre a privatização e a internacionalização da água no país, em específico das águas minerais. No Brasil, o aproveitamento comercial das fontes de águas minerais requer autorizações sucessivas de pesquisa e de lavra. As pesquisas destinam-se a conhecer o valor econômico e terapêutico da fonte, enquanto a autorização de lavra envolve as atividades de captação, condução, distribuição e aproveitamento de águas. Embora esse modelo esteja estabelecido desde 1945, gera cada vez mais polêmica. De um lado, os defensores da exploração privada da água mineral apontam seus benefícios econômicos e ambientais. Já os críticos à privatização insistem na água como um bem público, dotado de importância política e social.
Carlos Alberto Lancia, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Água Mineral (Abinam), concorda com a exploração privada das fontes. Em sua opinião, trata-se de uma atividade que exige altos investimentos em instalação, distribuição, processos e tecnologias de qualidade, assim como na proteção dos aqüíferos e na preservação ambiental. “Cada fonte gera dezenas ou centenas de empregos diretos e indiretos e mantém inviolável um bem cada vez mais valioso no planeta, que é a água potável de qualidade, num cenário em que a poluição prevalece sobre todos os demais recursos hídricos. Tudo isso tem um preço e exige responsabilidades que somente a iniciativa privada tem condições de arcar. Vale observar que, no Brasil, 98% das fontes estão nas mãos de empresas familiares e somente duas ou três empresas atuam em âmbito nacional”, argumenta.
Com cerca de 700 fontes, o Brasil produziu 5,3 bilhões de litros de água mineral (o sexto maior produtor do mundo) e faturou aproximadamente R$ 650 milhões em 2004. O país ainda importa cerca de 500 mil litros por ano e exporta 385 mil litros. O setor gera cerca de 200 mil empregos. A média do consumo per capita nacional é de 31 litros, segundo a Abinam. Mundialmente, o mercado é dominado pelas gigantes Nestlé e Coca-Cola, seguidas pela Dannone e Pepsi, movimentando mais de US$ 40 bilhões por ano. Apenas as duas primeiras atuam no mercado brasileiro.
“Via de regra, a empresa multinacional, pelo seu poder de investimento e distribuição, é naturalmente danosa a empresas nacionais, sobretudo em países como o Brasil, onde a maioria das fontes são micro e pequenas empresas. O pior é que as multinacionais preferem investir em outra categoria de produto: a água tratada (de qualquer origem) e mineralizada artificialmente. Isso significa para o Brasil, de um lado, a desvalorização das estâncias hidrominerais - da sua economia e da sua cultura - e, de outro, o abandono das fontes e da proteção ambiental”, avalia Lancia.
Quem concede as autorizações de pesquisa e lavra de água mineral no Brasil é o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), vinculado ao Ministério de Minas e Energia (MME). O DNPM gerencia todas as questões relativas à água mineral no Brasil desde 1945, quando foi assinado o Código das Águas Minerais (Decreto-Lei nº7.841, de 20 de agosto), que caracteriza a água mineral como um recurso mineral, e não hídrico.
Lancia explica que, ao ser classificada como bem mineral, a água mineral se distingue de outros recursos hídricos não apenas pelas suas características físico-químicas, mas também pela proibição legal de não sofrer nenhum tratamento. Ou seja, a água mineral deve chegar ao mercado tal como foi “produzida” pela natureza. “Isso é extremamente valioso para o consumidor. A desvantagem é a carga de impostos que recai sobre a atividade, ao ser taxada na origem como mineral e no mercado como bebida”, diz.
Críticas - Na outra ponta, estão os que acreditam que a água mineral deva ser entendida como um bem público, de acesso livre à população. Para Roberto Malvezzi, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra, o gerenciamento das águas ficou relegado às leis de mercado sob o pretexto da escassez e da poluição. Segundo ele, "a lógica capitalista passa a aparecer como a melhor forma de gerenciar a água - quem tem dinheiro acessa, quem não tem fica fora". E completa: "antes, a água era de acesso livre à população. Qualquer um podia chegar com seu galão e levar a água para casa, ou banhar-se na fonte. À medida que se faz concessão de lavra, a água mineral passa a ser de uso privado".
Malvezzi ainda destaca que a água é explorada de forma insustentável e, muitas vezes, predatória, e cita o exemplo da Nestlé. A multinacional suíça é proprietária, desde 1992, do Parque das Águas da cidade de São Lourenço, que faz parte do Circuito das Águas mineiro e é economicamente vinculada às águas minerais. Em São Lourenço, a Nestlé foi acusada de secar uma fonte, demolir outra, perfurar um poço sem autorização legal e não aproveitar a água que dali jorrou por dois anos, uma vez que esta tinha elevado teor de ferro e, portanto, era imprópria para consumo. Posteriormente, ainda, a empresa teria alterado a composição química desta água, retirando o ferro para comercializá-la, procedimento considerado ilegal no país - a lei proíbe qualquer alteração no teor mineral das águas.
Como alternativa à privatização, Malvezzi defende que a água mineral seja gerenciada pelo Sistema Nacional de Recursos Hídricos (SNGRH) e não pelo Departamento Nacional de Produção Mineral. O SNGRH é responsável por implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos e entende a água como um bem de domínio público, que deve ser gerida de forma descentralizada, com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades, embora seja dotada de valor econômico (e, portanto, passível de cobrança pelo uso) por ser um recurso natural limitado. Se a água fosse mantida como bem público, diz Malvezzi, seria necessário pensar na melhor forma de engarrafamento e distribuição do produto. “Por enquanto, ninguém sequer formulou uma proposta alternativa”, admite.
Edital - Os interessados na exploração das águas minerais Araxá, Cambuquira, Caxambu e Lambari, no sul de Minas Gerais, tiveram até 14 de fevereiro para retirar o edital de concorrência pública na sede da Codemig (Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais), em Belo Horizonte. As propostas poderão ser enviadas para a Codemig a partir do dia 16 de fevereiro, sem data definida para o encerramento. A empresa que ganhar a concessão terá direito ao arrendamento, por 15 anos, renováveis por mais 15, dos direitos minerários, dos equipamentos e das instalações de envasamento das quatro marcas citadas.
(ComCiência, 02/03/06)