Multinacionais que fabricam produtos de limpeza querem estudar os microorganismos presentes na água do Bogória, no Quênia
2006-02-28
Em gerações passadas, as pessoas que moravam em torno deste estranho
lago atribuíam poderes místicos às suas águas. Gelado em alguns pontos
e
quente em outros, o Lago Bogória supostamente curava uma série de
doenças, desde problemas de pele até estresse. Ocasionalmente,
sacrificavam-se cabritos na beira das fontes quentes do lago como
ofertas aos espíritos que residiam nas névoas.
Guillaume Bonn/The New York Times - 18.fev.2006
Alunos do ensino fundamental contemplam as águas do Bogória, durante
excursão ao lago
Usos igualmente milagrosos foram descobertos recentemente em suas
águas,
tão salgadas quanto o mar e que contêm microorganismos resistentes não
comumente encontrados em outras partes do mundo. Apesar dessa imagem
primordial, o Lago Bogória é de muitas formas totalmente moderno, um
agente pouco conhecido na indústria da moda, por exemplo, e motivo de
uma briga jurídica de alto calibre.
O jeans "stonewashed", que caem tão bem, talvez devam sua aparência
lavada e sensação agradável e macia ao Lago Bogória ou mais
especificamente a uma enzima isolada de um micróbio coletado lá. Outra
enzima derivada das criaturas dos lagos salgados do Quênia desempenha
um
papel importante em detergentes comuns, eliminando manchas difíceis e
reduzindo grumos que se formam em tecidos de algodão.
O que a empresa que desenvolveu o uso comercial dos micróbios anuncia
como ciência inovadora, as autoridades quenianas estão chamando de
"biopirataria". Países em desenvolvimento estão querendo uma parte dos
lucros obtidos com seu patrimônio biológico, seja de fungos encontrados
no esterco de girafa, antibióticos isolados de cupinzeiros ou
supressores de apetite derivados de cactos.
A Convenção Internacional de Diversidade Biológica, formulada pela
reunião ecológica de cúpula Eco-92 no Rio de Janeiro, dá aos países uma
divisão justa de alguns dos benefícios derivados de recursos
biológicos.
Mas grupos de advocacia dizem que a convenção é comumente ignorada.
"É um vale-tudo por aí", escreveu o pesquisador Jay McGown em recente
relatório chamado "Obtido na África: Mistérios do Acesso e Divisão dos
Benefícios", publicado pelo Edmonds Institute e African Center for
Biosafety.
Em 2002, antes da convenção entrar em vigor em dezembro de 2003,
cientistas tiraram amostras em sacos plásticos do Lago Bogória e do
Lago
Nakuru, ao sul. Nelas encontraram "extremófilos", criaturas resistentes
que residem nos ambientes mais hostis e submeteram-nos a uma bateria de
testes.
Uma empresa da Califórnia chamada Genencor International Inc.
subseqüentemente comprou as amostras da enzima, patenteou-as e
clonou-as
em uma escala industrial para uso em têxteis e detergentes.
A Genencor, que se tornou uma divisão da Danisco em 2005, diz que
obteve
as amostras de uma empresa holandesa que participou da expedição de
pesquisa liderada por Willliam D. Grant, microbiologista da
Universidade
de Leicester, no Reino Unido.
A missão que estudou os lagos salinos da África Oriental, segundo a
Genencor, tinha todas as permissões exigidas pelas autoridades
quenianas
e foi acompanhada por uma microbiologista da Universidade Kenyatta,
Wanjiru Mwatha.
A Genencor não escondeu a origem dos micróbios. Em seu relatório anual
de 2000, alardeou: "É verdade, para encontrar enzimas que prosperam em
ambientes alcalinos e que dão aos seus jeans uma sensação de suavidade
e
um visual lavado, fomos procurá-las nos lagos do Quênia."
Autoridades quenianas descobriram em 1994 que a empresa estava lucrando
com materiais retirados do lago e vêm pedindo compensação desde então.
Elas afirmam que nunca foram concedidas permissões para que os
microorganismos fossem levados e vendidos.
Mwatha disse em uma entrevista que recebeu permissão do governo para
conduzir pesquisa para sua tese de doutorado em Bogória e outros lagos.
Grant era seu orientador enquanto estudava no Reino Unido, e ele a
acompanhou na viagem de pesquisa no Quênia.
Mas Mwatha disse que não sabia de nada sobre seu envolvimento com
empresas e não tinha consciência que suas amostras tinham sido
entregues
para uso comercial.
"Pessoalmente, nunca lidei com nenhuma empresa", disse Mwatha. "O que
realmente me chateia é que, se eles encontraram algo em minhas
amostras,
eu deveria saber, não pelo ponto de vista financeiro, mas pelo ponto de
vista científico."
Mas é no aspecto financeiro que as autoridades quenianas estão se
concentrando. "Estamos discutindo com eles", disse Connie Maina,
porta-voz do Serviço de Vida Selvagem do Quênia. A Genencor acrescentou
em declaração: "Saudamos um diálogo aberto com as autoridades do Quênia
e esperamos uma resolução positiva."
Segundo a Genencor, as enzimas derivadas dos lagos quenianos não dão
muito dinheiro --arrecadaram menos de US$ 10 milhões (em torno de R$ 21
milhões)-- e a empresa doou equipamentos de computador e amostras para
o
departamento de microbiologia da Universidade Kenyatta.
Autoridades quenianas acreditam que os lucros são muito maiores do que
a
empresa está alegando. Enquanto a Genencor insiste que uma de suas
principais parceiras, a Procter & Gamble, não usou enzimas quenianas em
seus produtos, os quenianos duvidam.
Por enquanto, porém, a situação sobre como os micróbios de Bogória
chegaram ao mercado continua turva como o próprio lago que, com ou sem
briga, continua grande fonte de orgulho para o país. Regulamente, as
crianças fazem visitas ao lago Bogória.
"Então, esse lago está sendo usado em toda parte para fazer os jeans
parecerem lavados. Vocês não sabiam disso, não é? O que vocês pensam
sobre isso?" perguntou Benson Kiritu, professor de ciências sociais da
Academia Vidhu Ramji em Muranga, a um grupo da sétima série à beira do
lago.