Nas águas poluídas do Tietê, só de passagem
2006-03-02
Na margem da água fétida, ela anda lentamente. Caminha com olhar
atento e minucioso, à procura de alimento. A garça-branca-grande chama
atenção pelo tamanho, enquanto luta pela vida em pleno rio Pinheiros,
em São Paulo, que de tão poluído nem oxigênio tem. Mas ela não está
sozinha.
Gaviões, urubus, sanhaços, biguás, irerês e caracarás são visitantes
habituais do rio. Há também moradores fixos, como a corruíra, o
tico-tico, o joão-de-barro, o bem-te-vi, o beija-flor, o
sabiá-laranjeira e a cambacica.
No rio Tietê, também na capital e também poluidíssimo, a maioria das
espécies é visitante. “Elas aparecem de passagem porque não têm muito
onde pousar”, explica o professor Luiz Fernando de A. Figueiredo,
primeiro secretário do Centro de Estudos Ornitológicos (CEO). Em suas
margens, já foram vistos urubu, caracará, gavião-peneira e a
garça-branca-grande.
Como podem existir aves à beira de rios sem água potável, cercados por
rodovias marginais infestadas de barulho e poluição do ar? No Tietê,
elas estão atrás de insetos e dejetos levados ou jogados no rio, como
restos de animais mortos. No Pinheiros, encontram mais atrativos – e
por isso aparecem em maior quantidade. Para entender o porquê, é
preciso voltar no tempo, até dezembro de 1999. Esta foi a data da
inauguração do Projeto Pomar, resultado de uma parceria entre a
Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo e 17 grandes empresas, como
Natura, Credicard, Microsoft, Volvo e Johnson&Johnson.
Frutas e ninhos
O Projeto Pomar plantou 400 mil mudas de 230 tipos de vegetais, entre
gramíneas, arbustos e árvores (muitas frutíferas) de pequeno a médio
porte ao longo de 22 km de rio (16 na margem direita e 6 na esquerda).
Seis anos se passaram, período suficiente para o crescimento de muitas
dessas mudas. De acordo com Alexandre Soares, biólogo do projeto,
“antes do Pomar, observávamos cerca de 20 espécies perto do rio.
Depois dele, já calculamos ter visto mais de 60”.
Na região que abrange o Pomar, não falta fruta para atrair a passarada
- pitanga, araçá e goiaba são alguns exemplos. No momento, o projeto
se encontra em fase de manutenção. Se outra parceria for fechada,
aproximadamente 1,2 km a mais do rio Pinheiros vai ganhar uma nova
cara. E, de quebra, novos visitantes e moradores. A receita é simples
e garantida: árvores oferecem alimento, servem de refúgio e propiciam
locais para as aves fazerem ninhos.
Enquanto o Pinheiros recebe diversas espécies, o Tietê só vai se
tornar mais interessante em alguns anos, quando estiverem crescidas as
mudas plantadas desde setembro do ano, como parte de um projeto de
paisagismo que integra a ampliação da calha do rio. O projeto, que
termina este mês, prevê o plantio de cerca de 3 milhões de mudas de
árvores, arbustos, flores e vedélias ao longo de 50 km do rio, somando
as duas margens.
Outras duas razões explicam o aparecimento de aves nestes rios: a
primeira é que ambos ficam próximos a áreas arborizadas da cidade.
Perto do Pinheiros estão o Parque Burle Marx, a Cidade Universitária
da USP, o Instituo Butantã e as represas Billings e Guarapiranga.
Perto do Tietê, os parques ecológicos do Tietê e do Piqueri. As aves
transitam entre céu e terra, têm liberdade de voar e por isso nada
impede que saiam de um ponto arborizado para outro lugar, em busca de
alimento.
A segunda razão é que essas espécies são resistentes a ambientes
alterados. Como afirma o professor Luís Fábio Silveira, ornitólogo do
departamento de Zoologia e do Museu de Zoologia da USP, “as aves do
Tietê e do Pinheiros se adaptaram bem à confusão de São Paulo”. Mas
será que elas são saudáveis?
Intoxicação
Estudos mostram que as águas do Pinheiros e do Tietê recebem esgoto
doméstico e substâncias químicas, entre elas metais como cromo, níquel,
zinco e mercúrio. De acordo com Nelson Menegon Júnior, técnico da
Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), toda a
extensão do rio Pinheiros e o trecho do Tietê que fica dentro da região
metropolitana de São Paulo fazem parte do que se costuma definir por
“classe 4”, nível mais alto de concentração de poluentes. “Os rios que
estão na classe 4 se encontram nas piores condições sanitárias e
biológicas”, explica.
Os efeitos tóxicos de produtos químicos podem até matar as aves. Nos
Estados Unidos, o falcão peregrino entrou em processo de extinção
durante a década de 70 em conseqüência da utilização do pesticida DDT
em larga escala. A criação em cativeiro ajudou a salvar o falcão, que
também foi beneficiado pela proibição da substância no país pouco
tempo depois.
No caso dos dois rios paulistanos ainda não existe nenhum estudo que
responda a três questões: se as aves bebem daquela água, se são ou não
prejudicadas e, se forem, até que ponto estão intoxicadas. Sem muitas
informações científicas sobre isso, os especialistas apostam no
instinto e acreditam que as aves passam longe do líquido contaminado.
“Visivelmente, o bicho percebe o aspecto daquilo e já sente que a água
não é boa”, afirma o professor Luís Fábio Silveira.
Além disso, as espécies que habitam as marginais são exatamente aquelas
que se viram bem em locais modificados pelo homem. “Por serem mais
tolerantes a ambientes diversos, não são tão afetadas pela poluição e
pelas alterações do meio”. Isso explica o fato de levarem uma vida
aparentemente normal, sem mudança de comportamento. “A quantidade de
pássaros não diminuiu e este é um indicador de que estão bem
adaptados”, afirma.
Luiz Fernando de A. Figueiredo, do CEO, concorda com Silveira. “Não
existe relato de mortandade, a gente não vê isso acontecer. O rio não
é o único lugar que tem água naquele espaço. As aves podem matar a
sede ou tomar banho em pequenas poças, em buracos de troncos. Além
disso, elas também têm instinto de não ir a lugares muito fundos,
preferem os pontos mais rasos. As aves conhecem o ambiente em que
vivem”, defende.
Isso serve, inclusive, para a garça-branca-grande, que lentamente toca
as patas na água para abocanhar algum inseto. Se ele estiver
contaminado, ainda que ela não se alimente daquela água, pode acabar
com as substâncias no organismo. É muito provável que seja prejudicada,
mas não existe estudo científico que comprove isso. O único sinal
positivo desta relação é que a população das garças naquela região não
está diminuindo.
Preservação
Alimento e adaptação ao meio não são os únicos fatores que farão com
que essas espécies continuem a habitar ou visitar as margens dos rios.
Conscientização ambiental da população também é fundamental. “A
sociedade também tem que fazer a sua parte e assumir a sua parcela de
responsabilidade”, diz Pedro F. Develey, coordenador do programa de
áreas prioritárias da BirdLife International e co-autor do “Guia de
Campo – Aves da Grande São Paulo”, da Aves e Fotos Editora.
Se hoje a Cidade Universitária da USP tem cerca de 150 espécies de aves
é porque, logo que começou a ser implantada, por volta da década de 50,
uma campanha conseguiu recolher centenas de estilingues de seus
freqüentadores.
(Karina Miotto, O Eco, 01/03/06)
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