Programa de proteção na Amazônia exclui áreas críticas
2006-03-02
Um programa do governo federal que apóia --com verbas internacionais-- a criação de unidades de conservação na Amazônia está deixando de proteger áreas realmente únicas e ameaçadas. A conclusão é de um estudo liderado por pesquisadoras de uma instituição amazônica, o Museu Emílio Goeldi, em Belém.
Usando modelos matemáticos e o conhecimento existente sobre os vários tipos de vegetação da Amazônia, a equipe das biólogas Ana Luísa Albernaz e Manuella Andrade produziu um mapa mostrando o quão críticas para a conservação da biodiversidade são as diversas regiões da floresta. E descobriu que o programa Arpa (Áreas Protegidas da Amazônia), que tem verbas de US$ 86 milhões do Banco Mundial, do WWF e do banco alemão KfW para financiar a criação de reservas na região amazônica, tem deixado a maioria das áreas mais críticas de fora.
Albernaz não se arrisca a dar um número para o tamanho do buraco: "Nosso mapa ainda precisa ser refinado. Nossos hexágonos são muito grandes", acautela-se, dizendo que eles não permitem distinguir variações pequenas de vegetação no mapa. Mesmo assim, afirma: "Os polígonos [reservas] do Arpa nem sempre ajudam a cobrir ambientes importantes que estão de fora das unidades de conservação."
Não só isso: o estudo concluiu que alguns tipos de vegetação (ou fitofisionomias, no jargão científico) estão representados no Arpa por até sete vezes mais reservas do que as metas do programa determinavam, enquanto outros não possuem proteção alguma.
Entre as fitofisionomias "sem-parque" estão as florestas do chamado arco do desmatamento, região compreendida principalmente entre Rondônia, norte de Mato Grosso e sul do Pará. Ali a pressão da agropecuária e da extração de madeira é mais forte.
Pouco estudados
"Esses ambientes estão entre os menos estudados da Amazônia, apesar de conterem os limites de distribuição de várias espécies amazônicas e algumas endêmicas [que só ocorrem ali]", disse Albernaz à Folha. "O mogno, para dar um exemplo, só ocorre na região do arco do desmatamento."
Essa região é também considerada por alguns cientistas o centro a partir do qual a mandioca se dispersou para o resto da América do Sul. Manter sua biodiversidade é, portanto, também uma questão de segurança alimentar.
Dentro da região, o grupo pretende avaliar o vespeiro amazônico do momento: a BR-158, que atravessa o leste de Mato Grosso e o liga ao porto de Itaqui (MA), via sudeste do Pará e Tocantins.
Os pesquisadores do Goeldi têm razão para querer estudar a zona da 158: ela compreende as nascentes do rio Xingu, um dos principais afluentes do Amazonas. E representa a transição entre o cerrado e a floresta amazônica densa. Tudo isso está sendo posto abaixo com velocidade espantosa, à medida que a pecuária se expande pelo eixo da rodovia, empurrada pela soja.
Outra zona desabrigada é o chamado centro de endemismo de Belém, nos arredores da capital paraense. Ele contém espécies de borboletas, aves e primatas que não ocorrem em nenhum outro lugar da Amazônia. Como fica em uma região densamente povoada, o centro também está fora das prioridades para a criação de unidades de conservação.
Por trás do mapa do Goeldi se esconde um debate entre os biólogos sobre qual é a melhor estratégia de conservação para a maior floresta tropical do planeta e sobre os critérios de inclusão de uma área no Arpa.
O programa nasceu em 2002, como cartão de visitas do governo FHC à Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Johannesburgo (Rio +10). A meta é ter 10% da Amazônia (50 milhões de hectares) protegida. Ele se baseia em uma estratégia de conservação desenvolvida em 1999 num seminário em Macapá, que hoje parece ter envelhecido.
"Para receber o apoio do Arpa há algumas regras de elegibilidade", diz Albernaz. "Até recentemente, o principal critério de inclusão era estar num dos polígonos considerados de extrema importância na reunião de Macapá, e me parece que o principal critério de exclusão era a unidade sofrer algum tipo de degradação."
A bióloga do Goeldi defende a chamada estratégia da complementaridade, segundo a qual zonas prioritárias devem ser uma combinação de região ecológica e vegetação que não se encontram protegidas por nenhuma reserva.
Outro lado
O coordenador do Arpa no Ministério do Meio Ambiente, Ronaldo Weigand, diz que a degradação só é um critério de exclusão quando ela é tão forte que inviabiliza a conservação da área.
"O grau de isolamento de uma UC (unidade de conservação) é tema de controvérsias", disse Weigand. "Alguns defendem Ucs isoladas, cujo custo de proteção é baixo porque a pressão é baixa. Outros defendem a criação de Ucs justamente onde a fronteira avança. Nosso critério é o da representatividade", afirmou.
O Arpa passa, neste momento, por uma avaliação de sua primeira fase. Weigand diz que os resultados do estudo do Goeldi deverão ser incorporados à discussão.
(Folha Online, 01/03/06)