Conama anuncia a morte das APPs às vésperas do Carnaval - Artigo
2006-03-02
Por Maria Tereza Jorge Pádua
Muito já foi dito e escrito, inclusive alguns artigos neste mesmo
meio de comunicação, sobre os descalabros da Resolução aprovada dia 22 de
fevereiro no Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente), a respeito da
utilização possível das Áreas de Preservação Permanente (APPs), a ser
fornecida pelo órgão ambiental competente, que pode autorizar a
intervenção
ou supressão de sua vegetação para a implantação de obras, planos,
atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social, ou
para a
realização de ações consideradas eventuais e de baixo impacto
ambiental.
O que na verdade, trocando em miúdos, esta resolução fez foi
abrir o
uso das APPs, sob as justificativas de utilidade pública e interesse
social.
Passaram a ser utilidade pública ou interesse social as atividades de
pesquisa e extração de substâncias minerais, ou seja, a mineração em
áreas
de preservação permanente, a agrosilvicultura praticada em pequena
propriedade ou posse familiar, a implantação de áreas verdes em zona
urbana
com locais para piqueniques, mirantes, ciclovias, bancos, rampas para
lançamento de barcos e pequenos ancoradouros, banheiros, etc., etc.
Além do
mais também flexibiliza o uso, até então ilegal, de APPs em zonas
urbanas,
inserido no brilhante conceito de "regularização fundiária sustentável
de
área urbana". Também se consideram de "interesse social" as atividades
de
pesquisa e extração de areia, argila, saibro e cascalho, outorgadas
pela
autoridade competente.
Obviamente, como não poderia ser de outra forma, segundo a
resolução
todas essas atividades podem ser autorizadas "sempre quando não
descaracterize a cobertura vegetal nativa, ou impeça a sua recuperação,
e
não prejudique a função ecológica da área". Ninguém explicou até agora
quais
são os passes de magia, negra ou branca, que permitam a coexistência de
tantas atividades humanas com a natureza que "não deve ser
descaracterizada".
Os sábios do Conama, pelo menos os que votaram a favor da medida, devem
aos
cidadãos uma explicação de como vão explorar minérios, pedra, areia e
argila
ou construir campos esportivos e cemitérios, por exemplo, sem
descaracterizar a vegetação.
Utilidade pública das APPs
Os doutores de gabinetes do Conama não consideraram as
previsíveis
conseqüências destas aberturas, agora tornadas legais por esta
Resolução,
cujos autores sequer percebem o que vai ocorrer na prática e no
terreno. As
APPs são exigidas por Lei, ou eram, pelos seus serviços ambientais,
quais
sejam, com referência à água: proteção de nascentes, olhos de água,
margens
de rios, lagos e lagoas, veredas, restingas e mangues; e, com
referência a
solos: proteção de topos de morros e encostas em declives e altitudes
expressivos, e com relação a flora e fauna, garantir sua sobrevivência
pela
manutenção da cobertura florestal.
Os serviços fornecidos pelas APPs sim é que são de utilidade
pública e
interesse social. Estes sim as populações precisam para pelo menos se
evitar
mais desbarrancamentos, erosão, inundações e muitas mortes, todos os
anos
nos períodos chuvosos. O que realmente não é de interesse social é a
mineração, a extração de areia, argila, saibro e cascalho, nem praças
municipais em áreas de preservação permanente com a autorização de uma
série
de construções, dentre elas a mais bucólica: bancos de praças públicas.
Tudo
isso é interessante e necessário, mas não em áreas de preservação
permanente, que são fundamentais para a saúde dos ecossistemas e para o
bem-estar humano.
Dentre os critérios e restrições previstos para a supressão da
vegetação em áreas de preservação permanente, a resolução reza: "a
intervenção e a supressão eventual e de baixo impacto ambiental de
vegetação
em APP não pode, em qualquer caso, exceder ao percentual de 5% (cinco
por
cento) da APP impactada localizada na posse ou propriedade". Realmente,
parece que os membros do Conama acreditam morar na Suíça ou quiçá são
extraterrestres. Pode-se imaginar a quantidade de técnicos e recursos
materiais necessários para que essa disposição seja respeitada e
aplicada.
Só os membros do Conama acham, na sua sabedoria de outro planeta, que é
fácil constatar ou identificar, no terreno, estes 5%, principalmente em
áreas de minifúndios, ou zonas urbanas. Quem vai pagar o custo
inquestionavelmente estratosférico de tanto detalhamento? A população
do
país vai pagar para se suprimir Áreas de Preservação Permanente? Eu não
quero pagar! E, de fato, ninguém vai pagar essa conta. Por isso esse
conto
de limitar o dano a 5% vai parar como tantos outros dispositivos
legais: no
lixo.
Quem é responsável?
Pior ainda. Quem será responsabilizado pelas mortes provocadas
por
deslizamentos, desbarrancamentos, erosões e inundações, que ocorrem
anualmente na época das chuvas? Quem vai pagar os prejuízos destas
calamidades, ditas naturais? Eu proponho que se cobre isso aos autores
da
malfadada disposição. Pelo menos, no futuro, deverão ser lembrados a
cada
vez que centenas de famílias sejam soterradas ou que milhares sofram
com
inundações. Eles deverão sentir vergonha e sofrer o escárnio popular.
Será que o pessoal do Conama e do Ministério do Meio Ambiente e
todos
os "especialistas" de escritório sabe que fazer leis e regulamentos não
significa em absoluto que serão cumpridos? Que os planos diretores
municipais são mudados ao bel prazer do calendário eleitoral? Que
muitas
instituições ambientais, mesmo que queiram, não poderão cumprir esta
resolução, pois são poucos funcionários e, em geral, mal pagos? Será
que não
podem prever a máquina de vendas de serviços que será estabelecida para
facultar a supressão de Áreas de Preservação Permanente, por setores
aquinhoados?
Pobres daqueles que tanto lutaram no passado, desde 1965, data do
último Código Florestal para defender as famosas APPs. Pobres dos que
tiveram de destruir suas casas e hotéis, por estarem em APPs. Pobres de
todos nós que vamos enriquecer ainda mais o setor de mineração do país.
Pobres de nós que vamos pagar a conta. Pelo menos nossa consciência
está
limpa. Das mortes por desbarrancamentos, deslizamentos e inundações,
não
seremos os responsáveis. Eles serão.
Maria Teresa é ambientalista histórica e ex-Presidente do IBAMA.
(Ambiente Brasil, 28/2)