Artigo: Enquanto os jornalistas dormem...
2006-03-02
Marcos Sa Correa
Nada como a bela fotografia do presidente Lula na primeira página
dos
jornais, de braços abertos para as ondas, como um Moisés de calção
vermelho,
para ilustrar a notícia de que o Conama vai regularizar favelas,
mineradoras
e outras vanguardas do vale-tudo brasileiro em áreas de preservação
permanente. A fotografia e a notícia saíram por acaso nas mesmas
edições em
dezenas de jornais espalhados pelo país. E, embora à primeira vista
nada
tenham a ver uma com a outra, têm ambas a cara do governo petista. No
caso,
visto de costas.
Lula, como se sabe, está em campanha, fazendo a única coisa que
se
preparou para fazer na vida pública, nas duas décadas de trabalho
bissexto e
salário mensal de que o jovem sindicalista radical emergiu, como inseto
em
casulo, convertido no velho político esperto, maleável e inescrupuloso
de
sua versão 2002. As campanhas eleitorais, que deveriam ser uma trégua
reservada ao público para saber o que se faz no Brasil com seus
interesses,
são na prática o horário nobre da empulhação publicitária, do caixa
dois ou
de malandragens ainda piores. E nisso o presidente já provou que nada
de
braçada.
Mar Vermelho
Mas, qual é o sentido daquela foto de Lula na praia da Lagoa
Doce?
Revelar ao povo brasileiro sua forma atlética, conquistada em 50 dias
sem
cachaça, como disse o ministro Luiz Fernando Furlan? Sugerir que ele
pode
cruzar a nado o Atlântico, como fez Mao Zedong no rio Yang-Tsé? Ou,
quem
sabe, insinuar que ele seria capaz de abrir o oceano para a fuga dos
companheiros perseguidos pelas CPIs, como Moisés abriu o Mar Vermelho?
Nada disso. A fotografia queria dizer apenas que Lula fez aquilo
exatamente para ser fotografado. Sabendo, por experiência própria, que
poderia contar com um fotógrafo atento para flagrar-lhe a palhaçada. E
que
não faltariam depois, nas redações do país inteiro, editores a postos
para
publicá-la mecanicamente com o maior espalhafato possível, como
aconteceria
nas primeiras páginas de pelo menos sete jornais brasileiros na manhã
seguinte. Tratava-se, em outras palavras, de um truque fotográfico. Ou,
pior, de um caso de manipulação sem Photoshop, porque o manipulador
teve a
prerrogativa de falsificar previamente a própria realidade. Se isso é
foto
jornalística, o que impede a presidência da República de usar os
últimos
recursos da eletrônica para produzir a imagem de nosso guia subindo aos
céus
sem o Aerolula?
Depois os jornalistas ainda se queixam - cada vez se queixam
menos, é
verdade, mas acabam resmungando nas entrelinhas - porque Lula burla a
lei
eleitoral, financiando sua campanha com o dinheiro do eleitor,
arrancado por
impostos. Tanto melhor se seu eleitor não se importa em ser tungado.
Mas, em
respeito aos outros, por que a imprensa precisa divulgar passivamente
esse
material ilícito de campanha, como se fosse legítima informação
jornalística?
Talvez por hábito. Tem sido assim desde que o presidente Fernando
Collor adotou a mímica como estilo de governo, saindo da Casa da Dinda
para
correr no cerrado com a frase do dia estampada na camiseta, com
audiência
garantida pelos fotógrafos e cinegrafistas que o esperavam no portão,
ávidos
pela chance de lhe prestar de graça a assessoria de imagem. Depois de
Collor, o costume sobreviveu ao impeachment, gerando no governo Itamar
Franco os plantões para registrar a entrada de mulheres no Palácio da
Alvorada, como se o futuro do país dependesse da aptidão do presidente
para
lhe dar um herdeiro.
Lula não inventou a embromação. Mas, seja porque ele não tem
outra
coisa a fazer no governo, ou porque o governo não tem outra coisa a
fazer
com ele, assumiu com mais gosto do que os antecessores o múnus de ser o
bobo
de sua própria corte. E é preciso reconhecer que ela lhe foi útil. Ele
passsou anos sem dar entrevista. Mas não ficou um dia sem jornalistas
para
difundir os bonés, os chapéus de vaqueiro e todas as coisas sem sentido
que
lhe passaram pela cabeça. Ele finge o tempo todo que governa. Mas aos
jornais quase sempre bastam suas poses em mentiras mais amenas,
fingindo,
por exemplo, que toca guitarra.
Conama versus APPs
A macaquice do presidente não teria tanta importância, se a
reportagem
política não se metesse com os assuntos que deveriam ser exclusivos da
primatologia. Senão, o que acontece é uma primeira página com o
presidente
roubando espaço de notícias muito mais relevantes, como a história de
que o
Conselho Nacional do Meio Ambiente aprovou a resolução que legaliza a
ocupação irregular das áreas de preservação permanente, as APPs. Aí, a
propaganda de Lula vira ameaça ambiental.
O remendo do Conama veio, como sempre, em nome das prioridades
sociais. Mas também atende às urgências eleitorais de administrações
populistas, resolve o problema das mineradoras que se aboletaram onde
não
deveriam e abre brechas para quem daqui para a frente quiser desmatar
legalmente uma APP. Ou seja, tornou flexível o que era excessivamente
frouxo. Trocado em miúdos, consagra o projeto de constituição
patenteado nos
anos 70 pelo jornalista Renato Pompeu que, como o historiador
Capistrano de
Abreu, conseguiu resumir num só artigo todos os fundamentos
consuetudinários
da sociedade brasileira: "Tudo será de quem pegar primeiro".
O que não falta no Conama é ambientalista para torcer contra
árvores,
bichos e todas as ordens da criação que ainda não tenham adquirido o
direito
de voto. O conselho é formado por 111 membros. Tem o tamanho ideal para
turvar deliberações. Levou quatro anos discutindo o caso das APPs. E
saiu
isso. Pelo excesso de gente atuando na coreografia da representação
democrática, suas reuniões exigem uma revoada de conselheiros para
Brasília.
E, ultimamente, deram para ser suspensas por falta de quórum, mandando
de
volta para casa de mãos abanando quem cometeu o equívoco de levar a
sério a
convocação.
Ele se compõe de uma mistura desigual de governos e ONGs. Os
governos,
somando esferas, têm maioria. As vagas das ONGs se dividem
desequilibradamente entre as organizações estritamente ambientais e as
sócio-ambientais. Tudo somado, a ala social do ambientalismo é
amplamente
majoritária. E os ambientalistas propriamente ditos não têm ouvidos
para
ouvir e entender as estrelas do sócio-ambientalismo, quando elas saúdam
a
resolução desta semana dizendo, pela voz da conselheira Adriana Ramos,
que
"agora não tem mais desculpa para descumprir a lei".
Em outras palavras, a coordenadora de Políticas do Instituto
Socioambiental acha que, se os interesses sociais e as leis ambientais
divergem, as leis podem ser descumpridas. E, pior, que a proteção de
rios e
encostas não passa de um regulamento anti-social - a não ser,
naturalmente,
quando as secas, as enchentes e as ravinas revogam da noite para o dia
as
disposições políticas em contrário. Mas os jornalistas ocupados em
encher
páginas e páginas com o ramerrão do governo Lula não tem mais tempo
para
cuidar do que tem tudo para virar a notícia de seu dia-a-dia pelas
próximas
décadas.
(OEco, 28/2)