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2006-03-02
Em meio às repetidas pesquisas e denúncias que apontam a expansão da soja como um dos principais pivôs do desmatamento na Amazônia, a ONG norte-americana The Nature Conservancy (TNC) tem tentado mediar um acordo para legalizar o plantio de soja no estado do Pará, envolvendo negociações entre os sojicultores, a multinacional fornecedora de alimentos e produtos agrícolas Cargill e os órgãos públicos - Ministério Público, Ibama e Incra - numa relação de troca de interesses e concessões que desafiam a legislação ambiental brasileira.

Segundo a ONG, o acordo seria firmado por meio da celebração de um termo de ajuste de conduto (TAC), um instrumento jurídico em que o réu (no caso, as agricultores) é obrigado a concordar a seguir uma série de determinações para regularizar a sua situação. Nesse sentido, a TNC faz o cadastramento das propriedades (com a anuência do proprietário) e analisa o passivo ambiental (o dano à região) para tentar regularizar a questão fundiária e ambiental da propriedade. Atualmente, a ONG cadastrou 138 produtores, cujas propriedades somadas chegam a 90 mil hectares.

De acordo com a representante da TNC no Brasil, Ana Cristina Barros, a necessidade de permissão do produtor para entrar em propriedade e avaliá-la foi a porta de entrada no processo da Cargill, responsável pela compra de 80 a 90% da produção de soja de Santarém. Valendo-se do monopólio de compra e do seu poder de influência, a Cargill tem apoiado a TNC, pressionando os produtores de soja a entrarem no projeto para regularizarem a sua situação fundiária e ambiental, uma vez que a empresa se compromete no pré-acordo a apenas comprar soja legalizada. Hoje, quase 90% da soja comprada pela Cargill na região é ilegal.

Choque com a lei – A legislação ambiental brasileira determina que 80% da área de cada propriedade privada na Amazônia não podem ser desmatadas por serem consideradas reservas legais. Além disso, as áreas de preservação permanente (APPs), como as matas ciliares dos rios e de topo de montanha, também devem ser preservadas. Todos os agricultores cadastrados pela TNC não respeitaram essa determinação e desmataram muito mais do que a lei permite para plantar soja. A ONG não divulga a área do dano ambiental, pois alega ser um dado ainda sigiloso na fase de pré-acordo. Mas segundo Barros, um levantamento de agosto de 2004 revelou que 534 hectares de APPs foram desmatados.

Concretamente, a TNC propõe agora que o desmatamento das reservas legais seja compensado. A idéia é manter uma área de conservação ambiental equivalente àquela devastada pelos sojeiros cadastrados. "É uma área hipotética em algum lugar do Pará. Mas aqui é complicado conseguir uma terra para isso sem problemas de demarcação", diz o procurador da República em Santarém, Felipe Fritz Braga, ao explicar que essa área não se localizaria nas propriedades dos agricultores.

Ainda de acordo com a ONG, essa área seria propriedade governamental (da União, Estado ou município) e seria mantida e preservada com verbas dos sojicultores. Para Barros, essa compensação evitaria que os agricultores tivessem custos com o reflorestamento da área que já foi devastada ilicitamente, ao mesmo tempo em que eles não deixariam de produzir onde já plantaram. "Reflorestar é caro", afirma. Barros diz ainda que essa área poderia ser uma já delimitada, como as quilombolas ou as de populações tradicionais.

Sérgio Schlesinger, membro do projeto Brasil Sustentável e Democrático da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), considera a proposta um despropósito. "Uma reserva quilombola não vai compensar a devastação nem do mês passado. No Pará, tem tratores desmatando 24 horas por dia. Isso tem que parar. Não há como compensar esse aumento de desmatamento constante", afirma. Para ele, não há por que desmatar e depois compensar. "Não faz o menor sentido", diz.

A proposta de compensação se vale de um dispositivo da lei ambiental, uma medida provisória de 1998 que permitiu que uma área desmatada pudesse ter o seu equivalente compensado em outro lugar. Segundo o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, no entando, esse dispositivo não pode ser usado para desmatamentos recentes. "O mecanismo só permite a compensação para desmatamentos do passado, justamente para evitar que ele funcione como instrumento para desmatamentos posteriores. Para o caso da devastação da soja, não poderia ser usado", afirma. "A atividade ilegal ambiental e social na Amazônia tem que ser combatida".

"Na nossa concepção, não é a soja que provoca o desmatamento, mas sim quem planta e como planta. Pode-se triplicar a produção sem derrubar um centímetro de floresta, usando áreas subutilizadas ou abandonadas", explica Capobianco. No entanto, ele admite que a soja induziu o desmatamento quando estava valorizada no mercado.

Entre os anos de 2001 e 2002, houve um aumento de 40% no desmatamento na Amazônia Brasileira. De acordo com dados do Greenpeace, a área cultivada de soja em Santarém cresceu 130% entre 2002 e 2003. Nesse período, o número de produtores subiu de 180 para 320. "Os agricultores da soja desmataram e agora tentam fazer um acordo com o Ministério Público. É uma afronta à Constituição brasileira e abre um precedente perigoso para que isso aconteça em outras regiões. É um acordo que só traz prejuízo para população mais carente e para as florestas", considera André Muggiati, campaigner do Greenpeace.

Avanço da soja – A representante da TNC admite que o avanço da soja na Amazônia desmata a região. "Mas a soja está lá, não se pode negar a existência dela na Amazônia, sendo que há programas oficias do governo incentivando a soja na região. Eu não acho que a gente vai conseguir fazer com ela não se expanda. A gente vai conseguir dar limites", avalia Barros.

"A TNC não é uma ong propriamente brasileira. Tanto a TNC como a Cargill são multinacionais norte-americanas. A questão é de interesse brasileiro e são os brasileiros que são atingidos com essa expansão da soja. A gente não precisa da TNC ou da Cargill, mas sim a atuação do governo para fazer cumprir a lei", contrapõe Schlesinger. "Quem tem que dizer que não pode fazer nada somos nós brasileiros. As leis não estão sendo cumpridas", protesta.

"A atividade principal da TNC é oferecer formas de compensação ambiental de passivo ambiental para empresas. Em todo o mundo, ela vende o mesmo produto. Até na Indonésia, ela vende esses produtos para empresas interessadas em compensação ambiental", diz o procurador Felipe Braga.

Schlesinger acredita que o modelo agrícola da sojicultura é fruto de uma política econômica que exclui e tenta compensar o "incompensável". Ele defende o fim da expansão da soja na Amazônia e o apoio à agricultura familiar, voltada para a população brasileira. "A soja cresce daquele jeito porque interessa para o governo exportar mais e equilibrar a balança de pagamento. Não saímos do modelo [econômico] de 500 anos atrás", diz.

Apesar de Barros dizer que a TNC lida com grandes e pequenos produtores que vieram de outras regiões do Brasil, Schlesinger diz que não existem pequenos agricultores da soja na Amazônia diante desse modelo de agricultura mecanizada. "Não dá para plantar como antes a custo compensador", diz.

Ele ainda lembra que a monocultura trouxe desemprego por tomar o espaço da agricultura. "As comunidades locais estão sendo expulsas da terra na base da violência. Matam gente, jogam agrotóxico nas casas, matam plantações e criações de animais deles. Como é que vou fazer acordo com o grande produtor? Ou com a Cargill? Tem que reprimir", diz Schlesinger.

"A compensação ambiental é muito discutida, mas o que é pouco falado é a compensação social. A cultura da soja causou êxodo rural. O antigo morador de pequenas propriedades acabou indo para a cidade, houve deterioração e inchaço da área. O equipamento público não deu conta de suprir todas as necessidades da comunidade. Não há uma proposta para esses casos", queixa-se o procurador do caso, Felipe Braga que se diz preocupado com a ausência de propostas nas áreas sociais.

"A gente pensa nisso [compensação social] até onde é possível, mas não é o foco central. A pauta social não é nosso negócio", explica Barros.

Interesses
– O apoio da Cargill à causa da TNC também vem por vias financeiras. É a empresa que está financiando o trabalho da ONG nesse projeto, juntamente com o governo britânico.

De acordo com o documento de pedido de verba da TNC ao governo britânico, a embaixada britânica dialogou diretamente com a Cargill, que confirmou que a empresa "está procurando uma forma de minimizar o desmatamento para assegurar seu maior mercado externo e para limitar os danos à sua imagem".

Barros acredita que o interesse da empresa em atuar nesse sentido é a "crescente responsabilidade social e a pressão enfrentada pelas empresas no mercado" em relação às questões ambientais. "Não é bondade humana", diz ela ao lembrar que a imagem da Cargill está desgastada devido às pressões que ela sofre pelas suas violações ambientais, principalmente por causa da construção irregular e instalação do seu porto em 2003 em Santarém. "Outras [empresas] já relataram perdas financeiras devido aos problemas ambientais".

Desde 2003, o Brasil ocupa o lugar de segundo maior produtor de soja do mundo e a União Européia é o seu principal comprador. Segundo o documento, o principal concorrente do Brasil é os Estados Unidos, que não são capazes de ajustar um esquema comparável de certificação que visa a União Européia. Para a União Européia é importante que os seus produtos sejam provenientes de regiões politicamente corretas, evitando possíveis embates comerciais.

O documento é enfático ao relatar que o sucesso desse projeto pode abrir portas para que outras ações similares sejam feitas em outras regiões de biodiversidade brasileira como no cerrado e em outros países da América Latina.

Partes envolvidas – Dentro da proposta da TNC, o Ibama exerceria um papel fundamental nas negociações para a celebração do TAC. A contrapartida que se pede da instituição é o abatimento das multas aplicadas aos agricultores por violarem a legislação ambiental. "Negociar a multa em seu valor mais baixo e dar um desconto de 90% é um incentivo [aos agricultores]. Essa flexibilização seria importante", explica Cristina Barros, que avalia que há uma "boa conversação" com as autoridades do Ibama.

O diretor de florestas do Ibama, Antônio Carlos Hummel, diz que não chegou nada formal até ele em relação a esse TAC. Mas ele lembra que o acordo não altera as leis. "Não tenho idéia dos termos desse TAC, mas não se pode deixar de seguir as normas", diz Hummel, ao lembrar que as multas aplicadas devem ser pagar.

Braga afirma que nenhuma instância do INCRA se manifestou em relação ao acordo da TNC. "Os órgãos não estão afinados. O MP é o único que está acompanhando", diz.

Barros também é reticente em relação à data de celebração do TAC. Segundo ela não está havendo um comprometimento das partes para que cada uma cumpra as obrigações pré-estabelecidas.
(Agência Carta Maior, 25/02)

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