Risco de conflito nuclear é maior hoje que na guerra fria, diz intelectual norte-americano
2006-02-23
Aos 76 anos, o festejado crítico literário americano Harold Bloom dá-se ao direito de dizer o que pensa sobre a vida, o mundo e outras miudezas. O professor de Humanidades na Universidade Yale começou a carreira com o estudo de poetas românticos do século XIX, passou para o judaísmo e depois expandiu o alcance de suas obras. Jesus e Javé, seu 29º livro, lançado no Brasil pela Editora Objetiva, explica as razões políticas por trás das histórias da Bíblia dos judeus do Pentateuco aos cristãos do Novo Testamento. Mas a principal preocupação de Bloom hoje é com a guinada de seu país rumo às religiões pentecostais (que crêem na interação pessoal do fiel com o Espírito Santo). Com voz tranqüila, ele ataca as bases da política americana e traça um quadro aterrador para o futuro do planeta. Bloom aponta a corrida armamentista nuclear que ocorre em países fora do eixo EUA-Rússia e a falta de diálogo entre Ocidente e Islã como materiais inflamáveis. De acordo com ele, o planeta vai ficar mais perigoso que no tempo da Guerra Fria. Se algum país como o Irã for capaz de produzir bombas sujas, com material radioativo que cabe numa valise, Bloom acredita que ninguém estará a salvo, nem mesmo em cidades como Rio de Janeiro ou São Paulo. De sua casa, em Connecticut, Bloom falou com ÉPOCA.
ÉPOCA - Como o senhor acha que os evangelhos apócrifos, principalmente esse novo texto atribuído a Judas Iscariotes, serão recebidos pelos cristãos nos Estados Unidos?
Harold Bloom - Eu acredito que eles terão pouca influência, porque os Estados Unidos já desenvolveram uma espécie muito particular de cristianismo. Os EUA estão se tornando um país essencialmente pentecostal.
ÉPOCA - Como os americanos se relacionam com o cristianismo?
Bloom - Boa parte dos cidadãos está convencida de que Jesus foi americano. Acreditam que ele os amou de uma forma pessoal. Dois terços dos americanos acreditam que conversam com ele. A Europa, sobretudo a Europa Ocidental, é mais secular. Os Estados Unidos, sob o terrível regime que vivemos - com o pior presidente da História, George W. Bush, que se proclama um "cristão renascido" -, definitivamente não são um país secular. Política e religião nos EUA viraram praticamente palavras para definir a mesma coisa.
ÉPOCA - O senhor diz que os Estados Unidos estão misturando religião com política?
Bloom - Essa é uma subversão muito perigosa da Constituição americana. Quando ela foi escrita, houve a preocupação de vetar a existência de qualquer lei que tivesse a ver com religião. Mas isso não tem sido levado em consideração com muita freqüência. Não há nenhuma pessoa na administração Bush que não seja uma espécie de "cristão renascido". Dick Cheney (vice-presidente), Condoleezza Rice (secretária de Estado), Donald Rumsfeld (secretário de Defesa), todos são, de alguma forma, "renascidos" ou evangélicos. E esse é o principal grupo de eleitores que apoiou Bush. E continua apoiando, mesmo depois da incursão criminosa e inconstitucional no Iraque. Essa visão religiosa está colocando a democracia em perigo nos EUA.
ÉPOCA - E como um país com esse comportamento religioso pode dialogar com o mundo?
Bloom - Não pode. Não há nada que se pareça com um diálogo nas atuais relações internacionais. Não há nenhuma conversa em andamento entre o Islã e o Ocidente secular ou o Ocidente cristão, como os Estados Unidos. Nas Américas do Sul e Central, no Caribe e no México há muito mais diálogo com o Islã do que existe, por exemplo, na Dinamarca, na França, ou nos Estados Unidos.
ÉPOCA - Mas o Islã tem contribuído para esse diálogo?
Bloom - Há muita propaganda que as pessoas tentam espalhar por aí dizendo que o Islã não é militante. Mas uma pesquisa de opinião realizada pela Al Jazeera (rede árabe de TV) mostrou que isso não é verdade. Ela revelou que 80% dos muçulmanos apóiam os atentados suicidas cometidos pelos homens-bomba. E isso faz sentido, se você for olhar um pouco mais para trás.
ÉPOCA - Como assim?
Bloom - Eu conheço o Alcorão muito bem. Ele não é um documento, ou uma escritura, que encoraja o diálogo ou o debate com o cristianismo ou com o judaísmo. Fica muito claro que as pessoas que acreditam no cristianismo ou no judaísmo devem ser toleradas, não devem ser mortas, mas desde que a autoridade secular, o controle político, seja exercida pelo Islã. E essa não é uma posição fácil de ser aceita nos dias de hoje.
ÉPOCA - O senhor diria que vivemos um momento tão delicado quanto o período da Guerra Fria?
Bloom - De certa maneira, as coisas começam a ficar, sim, parecidas com a Guerra Fria. Só que a Guerra Fria acabou com o colapso econômico da União Soviética e agora temos um mundo muito diferente.
ÉPOCA - O ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger dizia que um mundo com apenas duas superpotências seria mais seguro que um mundo com vários países com capacidade nuclear. O senhor concorda?
Bloom - Estamos caminhando em direção a um mundo mais perigoso. Uma vez que os iranianos consigam a bomba, a Arábia Saudita pode querer também, para se defender. E quem sabe aonde isso vai parar? Os Estados Unidos proclamam que têm a salvação, promovendo a democracia em toda parte. Mas estamos vendo o resultado da democracia no Irã, no Iraque e agora entre os palestinos, onde um grupo que patrocinava atentados terroristas, o Hamas, chegou ao poder. Eu realmente não sei aonde isso vai parar.
ÉPOCA - O senhor acha que pode haver retaliação?
Bloom - O Estado de Israel, os Estados Unidos precisam tolerar. Como o Ocidente vai lidar com esse regime iraniano? E se outro Estado se tornar capaz de produzir as chamadas bombas sujas (com material radioativo), que podem ser escondidas dentro de uma valise e levadas para qualquer parte do mundo? A vida pode se tornar mais infeliz em toda parte no Ocidente. Mesmo no Rio de Janeiro e em São Paulo.
ÉPOCA - O senhor vê alguma saída para essa situação?
Bloom - Na verdade, eu não me sinto preparado para afirmar se o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o budismo ou o hinduísmo vão ajudar a civilizar o mundo. Mas certamente agora, no início do século XXI, nenhuma religião parece estar ajudando a civilizar o mundo.
(Epoca, 20/02/06)
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