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2006-02-22
"O mar é uma experiência de eternidade", escreveu o romancista alemão Thomas Mann (1875-1955), numa época em que os oceanos pareciam a salvo da colonização humana. Agora, um projeto que reúne 1.700 cientistas de mais de setenta países tenta impedir que a observação do escritor se torne anacrônica. Chamado de Censo da Vida Marinha, é o maior esforço já realizado para reunir toda a informação existente – e a ser descoberta – sobre as espécies que vivem ou já viveram nos oceanos. Até 2010, os pesquisadores pretendem ter material suficiente para prever como será a vida marinha no futuro, dando subsídios para a descoberta de maneiras de usar os recursos do mar sem destruir seu meio ambiente.

A tarefa é complexa. O ambiente submarino é, de certa forma, mais desconhecido e inexplorado que a Lua. Até hoje a ciência apenas arranhou a superfície dos mares, que representam 70% da área da Terra. Sabe-se muito pouco sobre a vida nas profundezas, onde, estima-se, se concentra mais da metade da biodiversidade marinha. Em dois séculos de pesquisas oceanográficas, foram catalogadas 230.000 espécies – quantidade ínfima comparada ao 1,5 milhão de espécies animais identificadas no ar, na terra, nos rios e lagos. De acordo com algumas estimativas, há perto de 2 milhões de espécies à espera de ser descobertas nos oceanos, 90% delas microrganismos.

A relevância do Censo da Vida Marinha, do qual participam oito cientistas brasileiros, pode ser resumida em duas promessas. A primeira é a de revelar, com riqueza de detalhes e complexidade nunca antes vistas, as maravilhas criadas pela natureza no mar. A segunda é a de transformar os oceanos em uma fonte bem administrada de alimentos para o futuro da humanidade. No quesito beleza natural, os oceanos surpreendem menos pela diversidade de espécies – nisso o ambiente terrestre é mais pródigo – e mais pela variedade de formas, tamanhos, cores e soluções para a sobrevivência. Desde seu início, seis anos atrás, o projeto registrou 10.000 espécies antes desconhecidas. A cada expedição os biólogos encontram novas e bizarras criaturas, como camarões cegos, peixes que emitem luz própria, esponjas carnívoras, moluscos gigantes e corais de mais de 7 metros de altura que vivem em águas profundas e frias.

Com freqüência os pesquisadores topam com animais de grande porte que, apesar do tamanho, eram desconhecidos. No ano passado, biólogos da Austrália catalogaram uma nova espécie de golfinho, confirmada com um teste de DNA. Em 2004, um grupo de pesquisadores do Instituto Oceanográfico Harbor Branch, na Flórida, descobriu um tipo de lula de 2 metros de comprimento. Os especialistas estavam testando uma câmera submarina dotada de luz especial quando captaram, por acaso, a imagem do molusco gigante. "Estamos fazendo novas descobertas a um ritmo mais acelerado do que imaginávamos", disse a VEJA o biólogo americano Ron O Dor, pesquisador-chefe do Censo da Vida Marinha, cuja sede é em Washington, nos Estados Unidos. Diz O Dor: "As novidades incluem desde a existência de polvos em águas frias e profundas do Canadá, desmentindo a crença de que esses animais só viviam em mares com temperaturas amenas, até detalhes sobre o comportamento das espécies. Por exemplo, sabe-se agora que os cardumes de atum migram constantemente entre o Japão e os Estados Unidos".

Novos equipamentos, como robôs subaquáticos teleguiados, capazes de instalar sensores, câmeras digitais e sonares a mais de 6.000 metros de profundidade, revolucionaram as pesquisas marinhas. Abaixo de 3.000 metros, a chance de coletar uma espécie inédita é de 50%. A luz não penetra nessa profundidade e, sem ela, deixa de ocorrer a fotossíntese. Por isso, não há plantas, apenas bactérias e animais adaptados a pressões esmagadoras. A 1.500 metros da superfície, a pressão equivale ao peso de cinqüenta Boeing 747. O ambiente mais profícuo para a vida nas profundezas são as planícies abissais. Esses trechos planos do fundo do oceano são cobertos por uma camada de sedimentos minerais e orgânicos que servem de alimento para centenas de milhares de espécies.

Apenas 1,5% desse universo rico em vida já foi estudado pelos cientistas. Desde a década de 70 sabe-se da existência de fontes hidrotermais no leito dos oceanos. Chamadas de chaminés negras, são jatos de água quente rica em minerais, em torno dos quais se formam colônias de bactérias capazes de sobreviver a temperaturas de 113 graus e de se alimentar de metano e enxofre. Por sua vez, esses microrganismos servem de alimento para uma variada fauna, que inclui vermes tubiformes gigantes, formando um dos mais inesperados ambientes do planeta.

O inventário completo da biodiversidade marinha terá papel importante no futuro da humanidade. "Sem esse conhecimento, será impossível manter por muito tempo os estoques marítimos de peixes e a crescente demanda humana por alimentos", diz a bióloga Erminda Couto, da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, na Bahia, e coordenadora da equipe brasileira que participa do censo. Nos últimos cinqüenta anos, a quantidade de alimento retirada dos oceanos quintuplicou, enquanto a população mundial dobrou. Hoje, 10% do que a humanidade consome em calorias vem do mar. "Ainda dá tempo de fazer nos oceanos o que o homem não conseguiu fazer em terra: evitar a dilapidação dos recursos naturais pela exploração descontrolada e pelo desperdício", disse a VEJA o americano Jesse Ausubel, diretor do censo marinho.

No mar, o homem age como se ainda estivesse na Idade da Pedra: é basicamente um coletor e caçador, sem se preocupar em fazer o manejo dos estoques de animais. Das 200 espécies mais adequadas para o consumo humano, 120 estão sendo superexploradas. Não ajuda o fato de as águas internacionais serem, na prática, terra de ninguém. Apenas um em cada sete peixes retirados do mar faz parte de estoques marítimos controlados por acordos internacionais de pesca.

Conhecendo o que se esconde debaixo d água, os governos poderão estabelecer com maior segurança regras e cotas para a exploração dos recursos marítimos. Isso inclui as fontes de energia submarinas. Mais da metade da produção mundial de petróleo é retirada dos oceanos. Nos anos 70, foram descobertas reservas de hidrato de metano – moléculas de metano presas em cristais de água. O potencial energético desse recurso equivale ao dobro do de todo petróleo, gás natural e carvão existentes. Ainda não se conhece a tecnologia para explorá-lo com segurança. A humanidade começa a colonizar os mares. Fará isso com maior sabedoria se conhecer os seres que vivem lá. (Veja, 22/02/06)

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