Disputa pelo espaço imobiliário expõe povoado à ação predatória do homem
2006-02-22
O Morro de São Paulo, na Bahia, começa no catamarã. Basta pisar no barco para viver o paraíso. Os preços praticados no bar improvisado não deixam dúvida: você está cercado de água por todos os lados, assim como em Tinharé. O idioma oficial é o espanhol. Argentinos e chilenos são a maioria e praticamente lotam as cem poltronas disponíveis em plena segunda-feira, 9h da manhã. O português Fabrício e a namorada, ambos de Caxias do Sul, no Rio Grande, são a exceção que confirma a regra. "Todo mundo fala que lá é muito bonito, estamos doidos pra conhecer". O australiano Hill puxa uma conversa e o bate-papo segue até a saída da baía. O desembarque no Portaló acontece às 11h10. Dezenas de homens guiam carrinhos de mão e, uniformizados, aguardam os visitantes. São os taxistas da ilha, que carregam quilos de bagagens até a pousada desejada. A festa vai começar.
Uma galeria de arte logo no início do caminho do forte altera o cenário, mas o sentido é outro e, após subir a íngreme ladeira no sentido da vila, destampa-se a Igrejinha de Nossa Senhora da Luz. É a senha para voltarmos no tempo.
Agora estamos no Ano da Graça de 2004. Exatamente em 2 de fevereiro, Iemanjá envia para o povoado o que hoje é considerado um presente pelos moradores do Morro. Chega frei Elias, "padre maluco", como define, feliz, o carioca dono da lojinha de filmes. A igreja, que vivia fechada, fica aberta até as sete da noite, recebe contribuições dos turistas. Todos fazem questão de conhecer a obra do século XVII, que já está sendo restaurada pelo frei sergipano, 33 anos, além de dar uma passada na lojinha criada por ele. Teólogo e psicólogo, morou em Roma e ao voltar para Salvador tratou de fazer um curso de restauração. Aplica os conhecimentos na igreja e no que vê durante a caminhada até o Forte da Ponta.
Logo no início, fica indignado com o grito de "lasquinê" de um taxista que passa o tempo no dominó dentro da Casa da Guarda, hoje depósito para extintores, engradados, carrinhos de mão, bola de futebol, bóias. Depois, a primeira informação: "O terreno está aterrado, originariamente não é essa a sua altura", diz. Durante o trajeto, em locais em que há menos terra e o piso é mais baixo, podem ser vistos óculos nas muralhas, pequenas frestas providencialmente colocadas para dar visão aos guardas.
Pedras ao mar, a muralha está se acabando. A força das águas reduz os quase 700m de construção. "O impacto da pesca com bomba no passado também influiu pra isso aí", lembra Elze Wense Moutinho, a dona Zezé, integrante da Irmandade de Nossa Senhora da Luz e braço direito do frei Elias. O canhão escornado no mar também traz outras recordações. "Antigamente os meninos brincavam de pegar as balas e jogar no mar, tem muitas por aí", garante Zezé.
Descalabros da ilha
Da depressão que bate no forte abandonado, procura-se uma pequena trilha na mata em frente, fragmentos da mata atlântica. A caminhada é difícil e dona Zezé escorrega. Frei Elias a segura ligeiro e evita a queda da senhora de 75 anos, jovem menina guerreira que defende o seu Morro com unhas e dentes. O religioso vai à frente do atalho que deve levar ao farol. De lá do alto, tem-se a visão de parte da ilha e dos descalabros de que ela é vítima.
Do farol de Carson não se vê a Fonte Grande nem a casa de seu Romenil. Ele, que foi para o Rio moço trabalhar, não esqueceu a amada Deusa, que deixou em Valença. "Passei quatro anos só me comunicando por carta, sem ver nem ouvir. Assim que pude, voltei e casamos". A casa também vira pousada nesses tempos, mas não perde a característica de um lar. E, da varanda, ao lado da mulher, ele vê que o muro da cisterna de decantação, recoberta por cúpula meia-laranja, é utilizada por uma pousada como limite de seus domínios. O local é também ponto de recolhimento de lixo e, devido ao grande movimento de pessoas, serve também para anúncios. "Dia 4/2 - Grande Seresta (ao vivo) com o grupo Improviso e Flavinho (ex-vocalista do Mach Five)", diz o papel A4 pregado na fonte tombada pelo Patrimônio Histórico desde 1943. "Depois dessas construções todas aqui em Morro, surgiram muitas fossas. E aí se acabou o riacho limpo, com os sapos, pitu, camarão. Hoje só se pensa em ganhar dinheiro", se dana seu Romenil.
A fonte, segundo a tradição local, foi descoberta no século XVII, quando era construída a igreja. No século seguinte, o vice-rei André de Melo e Castro mandou fazer uma fonte de três bicas para a serventia do presídio. Nela, uma placa com a inscrição: "O Ilmo. E Exmo. André de Melo e Castro Conde das Galvêas Virei e Capam. Genal. De Mar e Terra Estado do Brazil mandou fazer esta fonte 1746". O tempo para ler a inscrição é o mesmo que um taxista leva para lavar o seu carro de mão no local.
Enquanto isso, no tour histórico, ninguém encontra o posto São Luís, citado como um dos fortes do complexo. É possível ver apenas parte da murada: não é que a delegacia de Morro de São Paulo foi construída justamente em cima do monumento? O PM de plantão, ao saber da nova, lamenta e já aponta para os fundos da casa, onde está detido um menor que acabara de chegar de Valença. Invadiu um hotel e roubou os pertences do hóspede. Agiu com outros dois. O comissário de menores Irisvaldo Santos, também gerente da pousada Village da Fonte, já percorre a praia na busca deles e de uma outra menor, também de Valença, que abandonou a casa e foi vista com um turista na Terceira Praia. A mãe está desesperada.
É de lei que o traje oficial em Morro de São Paulo é o chinelo de dedo. O resto parece ser detalhe. No Verão passado, um argentino achou de ficar nu na Segunda Praia. Apanhou dos nativos que o levaram para a pousada, pegaram as roupas, e o despacharam na primeira embarcação que ia para o continente. Noutro dia, um hermano, feliz e despreocupado, acendeu uma marijuana nas escadarias da igreja, em plena luz do dia. "Ele levou de remo", lembra mais feliz ainda o pescador Erisvaldo Santos, que complementa a renda nesta época como ajudante em pousada.
Já na pizzaria da praça, o garçom, de Valença, reclama que a proprietária, do Sul do Brasil, está ficando com parte dos seus 10% nas semanas de grande movimento. "Por isso que em breve eu vou sair daqui e montar meu mercadinho", promete.
A relação nativo versus estrangeiro é mesmo complexa em Morro de São Paulo. O arquiteto soteropolitano, que não é tão estrangeiro assim, após nove anos de ilha, simplesmente desistiu. A sua Yellow Cat continua vendendo bem, mas a casa onde moravam ele e a esposa já está à venda. "É um lugar com pessoas de todas as partes do mundo e com interesses diversos, é muito difícil", afirma Antonio Mendes de sua outra loja, na Praia do Forte. "Aqui a relação entre o nativo e o visitante que veio investir é bem mais saudável, ambos crescem juntos", completa.
Toninho, como é conhecido, a esposa e um outro sócio tentaram criar uma associação para tentar aplacar os problemas do Morro. Sem sucesso. "Meu vizinho de porta de um lado era um alemão que Deus sabe qual o interesse dele ali, enquanto que do outro era um nativo revoltado. Foi impossível".
Incêndio - Seria impossível, também, uma construção amarelo-ovo em meio à mata verde do caminho do forte, com pista de dança, luzes de última geração e equipamento eletrônico de primeira. Quem chega de barco pensa se tratar de um posto de informação para turistas. Mas, logo ali, no meio da mata atlântica, na área de preservação ambiental, no terreno da União, na zona tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional?
Mas em Morro nasceu a Pulsar, que em noites de festa atrai mais de 500 pessoas, para ciúmes dos empresários da Segunda Praia. Na última noite de janeiro, um princípio de incêndio começou a destruir parte da vegetação a uns 200m da Pulsar. Enquanto se apagava o fogo com baldes de areia e água, além de extintores das pousadas, um dos nativos insinuou que o incêndio seria criminoso em virtude do sucesso da boate.
A construção está de pé porque não se respeitou um termo de ajustamento de conduta firmado entre os ministérios públicos federal e estadual, o Ibama, a Gerência Regional do Patrimônio da União na Bahia (GRPU) e a prefeitura de Cairu, em 2001. "O termo fala em anuência prévia por parte da GRPU para que a prefeitura expeça alvará de construção. E nós não demos", afirma Ana Lúcia Villas Boas, gerente do órgão. O Ministério Público Federal está cuidando do caso.
Todos na ilha aguardam ansiosos o início das obras do Projeto de Revitalização do Patrimônio Histórico. A iniciativa do governo baiano, do Instituto do Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul da Bahia (IDES) e do Senac pretende transformar toda a área do forte, que vai abrigar eventos culturais e atividades de ensino do Senac.
E, assim, andam de mãos dadas o descaso e a beleza, a intolerância e a esperança. Paraíso e inferno convivem juntos e de forma tensa em um dos mais extraordinários cartões-postais do litoral brasileiro. A mistura que pode explodir a qualquer momento não é registrada pelas publicações especializadas em turismo. O desrespeito ao riquíssimo patrimônio histórico e os crimes ambientais cometidos parecem não ofender a dignidade de quem ali mora. Enquanto isso, nasce mais uma pousada na paradisíaca Quarta Praia de Morro de São Paulo.
(Correio da Bahia, 21/02/06)