ONG defende expansão da soja no norte do Brasil
2006-02-16
The Nature Conservancy (TNC) é uma ONG internacional riquíssima para
os padrões de qualquer ong. Só nos Estados Unidos, sua política de
comprar terras para preservar paisagens já cobre mais de 6 milhões de
hectares. Tem a meta de, até 2015, garantir o futuro de pelo menos 10%
dos 30 sistemas naturais mais importantes que identificou ao redor do
planeta. Sua dotação chega aos 2 bilhões de dólares.
Na página que mantém na Internet, afirma que sua missão é “proteger
plantas, animais e os ecossistemas naturais que representam a
diversidade de vida no planeta, conservando as terras e águas de que
precisam para sobreviver”. Tomada ao pé da letra, a frase poderia
muito bem induzir seu leitor a imaginar que parte fundamental do
trabalho da TNC na Amazônia brasileira envolve o combate à expansão das
plantações de soja sobre a floresta. Longe disso. Desde que o grão
esteja sendo plantado dentro das regras que regulam a relação entre
fazendeiros e natureza, a TNC acha que não há nada de errado com a
presença crescente da soja na região Norte do país.
“Nosso objetivo é engrossar o número de produtores de soja que
respeitam as leis ambientais”, diz Ana Paula Barros, representante
nacional da TNC. É com base nele que a TNC tenta intermediar um Termo
de Ajuste de Conduta (TAC) entre sojicultores com passivo ambiental no
município de Santarém, no Pará, às margens do rio Tapajós, e órgãos
federais. Já cadastrou e está levantando as irregularidades ambientais
de 130 plantadores do grão na região que vendem sua produção para a
multinacional Cargill. O custo do projeto, segundo Barros, é de um
milhão de dólares. Um quarto dessa conta foi assumida pela própria
Cargill. O resto está sendo coberto por repasses feitos pela embaixada
da Inglaterra em Brasília.
Todos os produtores cadastrados pela ONG atropelaram a lei sobre a
manutenção de reservas legais em suas propriedades – que na Amazônia
significa conservar a floresta em 80% do terreno – e ao desmatamento
de áreas de preservação permanente (APPs), como matas em margens de
rio e próximas a nascentes. Pelo levantamento feito até agora, o
passivo é grande. Em relação à falta de reservas legais, o déficit
desses produtores, pelo levantamento inicial, bate em 1.500 hectares.
No que diz respeito às APPs, desmataram em torno de 530 hectares de
floresta e nesse caso, segundo Barros, não há escapatória. “Terão que
reflorestar”, diz. Mas a TNC está tentando saídas mais criativas na
questão das reservas legais.
Vaga ameaça - Nenhuma, por enquanto, envolve a exigência do
reflorestamento das propriedades. “A idéia é buscar opções que a lei
dá”, diz Barros. Uma delas é achar área de floresta na Bacia do Tapajós
e constituir um fundo para comprá-la e mantê-la de pé para compensar a
falta de matas nas propriedades. Mas também se discutem alternativas
que, pelo menos na sua letra, nem a lei e tampouco as regulamentações
dão. Como por exemplo, criar outro fundo para regularizar problemas
fundiários em unidades de conservação na região. A TNC também anda
ventilando em reuniões com outras ongs e governos a idéia de
implementar mecanismo pelo qual a falta de reserva legal possa ser
compensada com contribuições a fundos de manutenção de Parques e
Estações Ecológicas na Amazônia, como o Áreas Protegidas da Amazônia
(ARPA).
Essa última proposta encontra muita resistência, porque ela libera o
fazendeiro de manter parte da mata em suas terras e lhe dá um crédito
por manter árvores em terras públicas, onde elas já estão de pé. É uma
aritmética cujo resultado líquido é diminuir o tamanho da floresta.
Seja qual for o caminho escolhido, ele tem um custo e ainda não está
claro quem é que vai pagar por isso. “A Cargill se dispõe a fazer uma
contribuição”, diz Margareth Francis, do escritório da TNC em Belém.
“A Cargill está longe de discutir isso. Em princípio, ela não porá
dinheiro algum”, corrige Barros. “Quem sabe, talvez no futuro”. Resta
saber, portanto, que incentivo esses 130 produtores, que apesar da
situação ilegal continuam plantando e vendendo soja para a empresa,
enfrentando apenas o dissabor de multas do Ibama que raramente são
pagas, terão para colocar a mão no bolso e corrigir sua situação.
Há uma ameaça da Cargill de parar de comprar soja produzida fora dos
padrões da regulação. Mas ela é vaga. Não foi oficializada e muito
menos tem prazo para entrar em vigor. “Olha, 99% da soja que cresce no
Brasil é irregular”, diz Barros, insinuando que a empresa não tem
muita opção a não ser fazer parte da ilegalidade geral. Agora, mesmo
que houvesse dinheiro para levar esse TAC adiante, ou que a empresa
batesse com o pau na mesa e parasse de comprar soja com passivo
ambiental, dificilmente o documento seria costurado rapidamente. Além
dos fazendeiros, o TAC teria que ter a ratificação de órgãos públicos
como o Ibama, o Incra e o Ministério Público Federal. E as propostas
que a TNC tem levado a eles para viabilizar o documento “demandam
muitas inflexões legais”, como explica da maneira mais delicada
possível o Procurador da República em Santarém, Felipe Fritz Braga.
Outro passivo ambiental – “Do Ibama, pede-se anistia a 100% das
multas. O Incra, para participar, teria que editar uma nova norma, pois
a que o órgão tem em vigor permite que ele seja interveniente em TACs
que dizem respeito a propriedades de até 100 hectares, o que não é o
caso”, diz o Procurador. “Esse é um produto que essa empresa, a TNC,
está tentando construir, mas por tudo isso, se ele sair, ainda demora”.
– Mas a TNC não é uma empresa, Procurador. É uma ong. Foi ato falho?
– Não, eu sei que ela é uma ong. Mas age como uma empresa tentando
vender esses TACs como produtos aqui na Amazônia. Outras ongs do mesmo
porte fazem isso. A concorrência é acirrada.
O TAC intermediado pela TNC também envolve um comprometimento
definitivo da Cargill de não comprar soja produzida a partir de
passivos ambientais. O que não é mau, embora pela lei ela não
precisasse de um novo papel para tomar esta atitude. “Existem lacunas
na fiscalização”, diz Braga. “Não há controle sobre a empresa. Aliás,
não há controle sobre nenhum grande comprador de soja no Brasil”.
Enquanto isso, a soja segue comendo a floresta amazônica. Na área de
Santarém, a partir de 2003, o grão ultrapassou a pecuária como
principal agente do desmatamento, conta o Procurador. Foi nesse exato
ano que a Cargill inaugurou seu porto na cidade, na margem do Tapajós.
E a obra, assim como a soja que ela ajuda a escoar para os mercados
importadores, foi também feita ao arrepio da legislação ambiental.
O porto começou a ser construído em 2000. “Na marra, sem o Estudo de
Impacto Ambiental (EIA)”, conta o padre Edilberto Sena, da Diocese de
Santarém. “Ele foi erigido à força de liminares na Justiça”. E, como
sempre acontece nesses casos, contou, lembra Sena, com uma ajudinha da
Presidência da República, que em 2004 publicou decreto transformando
toda a frente da cidade debruçada sobre o Tapajós em área de porto.
Ainda se discute outro Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em relação às
docas da Cargill, fruto de processos abertos contra a empresa por ONGs
ambientalistas e ligadas aos movimentos sociais da região. Essa novela
ainda está longe do fim, e apesar da boataria de que a TNC está
trabalhando para intermediar um acordo entre as partes, Ana Paula
Barros, a representante da ong, garante que ela não tem nada a ver com
a história do porto. Só com a legalizaçnao da soja ilegal.
(Manoel Franscisco Brito, O Eco, 11/02/06)
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