Além de resolver a política, o Haiti precisa recuperar suas florestas
2006-02-10
Imagine um país cuja história é marcada pela exploração estrangeira e por golpes militares, pelo comando de ditadores sanguinários e corruptos que jogaram a população na miséria e desordem, onde serviços públicos como coleta de lixo e fornecimentos de energia e de água não funcionam e a violência pode explodir a qualquer momento.
Bem-vindo ao Haiti. Do tamanho do estado de Alagoas, essa ex-colônia francesa no Mar do Caribe é o país mais pobre das Américas, onde a maioria dos 8 milhões de habitantes sobrevive com o equivalente a menos de R$ 3 por dia. Com eleições presidenciais marcadas para o dia 7 de fevereiro, além de dar fim ao caos político e social, o Haiti tem pela frente outro desafio: recuperar suas florestas. Os conflitos militares, a pobreza e a falta de outras fontes de energia fizeram com que as matas do país fossem dizimadas. Restou 0,5% da vegetação original.
Para começar a reverter essa verdadeira pindaíba ambiental, desembarcam em março no país técnicos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Durante dois anos, eles implementarão viveiros para produzir 200 mil mudas de árvores nativas e exóticas. O objetivo é reflorestar encostas e topos de morros, beiras de rios e de nascentes e outras áreas degradadas. O projeto tem financiamento de US$ 585 mil (cerca de R$ 1,3 milhão), dividido entre os governos do Brasil e da Espanha, países que mantêm tropas no Haiti.
Mogno e palmito
Os viveiros terão espécies bem conhecidas dos brasileiros, como mogno, ipê, mangueira, palmito-juçara, acácia e amoreira, além de pinheiros, eucaliptos, bambus, nim, teca, leucena e bétula. As árvores serão plantadas de acordo com a degradação e inclinação do terreno e conforme o tipo de solo. “Isso evitará novos deslizamentos e ajudará a suprir a procura por lenha”, explica o engenheiro florestal José de Arimatéia Silva, professor do Instituto de Florestas da UFRRJ.
O alvo inicial do replantio é uma área de 200 hectares na região norte do país. Por questões de segurança, o reflorestamento só pode acontecer em locais próximos de onde estão aquartelados soldados espanhóis. A participação do Exército Brasileiro ainda está sendo estudada.
Ao contrário de projetos anteriores, encabeçados por países como Estados Unidos, Canadá e França, que apenas doavam recursos, a atual iniciativa também prevê o intercâmbio e o treinamento de haitianos em reflorestamento e no cultivo de legumes e verduras. São os chamados sistemas agroflorestais, que associam a plantação de florestas e de culturas alimentícias. “Esperamos que a iniciativa seja um pontapé inicial, e que daqui a alguns anos o reflorestamento seja conduzido pelos próprios haitianos”, disse Marcelo Lacerda, da Agência Brasileira de Cooperação (ABC). As ações serão realizadas juntamente com o governo, instituições de ensino e cooperativas de produtores do Haiti.
História de devastação
Logo após os Estados Unidos, o Haiti foi o segundo país das Américas a se livrar do colonizador europeu. Libertou-se do domínio francês em 1803, em uma revolução promovida por escravos que durou 12 anos.
A independência, no entanto, fez crescer a exploração das riquezas naturais ao mesmo tempo em que gerou endividamento externo. Com a justificativa do não-pagamento de suas dívidas, os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915. O país seria novamente colônia até 1934.
Com a saída dos ianques e após vários golpes militares, François Duvalier, o “Papa-Doc”, assumiu a presidência em 1957 e implantou um regime de terror até sua morte, em 1971. A violência continuou com seu filho Jean Claude Duvalier, o “Baby-Doc”, que governou até 1985. Durante essas quase três décadas no poder, os ditadores ordenaram a destruição de florestas inteiras no Haiti. Motivo: evitar que rebeldes oposicionistas as usassem como esconderijo. O resultado foi desastroso. Dos 40% de cobertura florestal do território que existiam na década de 50, pouco mais de 3% se mantém em pé, e só 0,5% de florestas naturais. Ou seja, o país está a um passo de ficar completamente careca (na imagem de satélite ao lado, a fronteira entre o Haiti, à esquerda, e a República Dominicana, à direita).
A escassez de árvores aumenta a pressão sobre as poucas áreas protegidas. As últimas manchas verdes do país são uma reserva de pinheiros com 32 mil hectares e os parques nacionais Macaya e La Visite, que somam apenas 4,2 mil hectares. A retirada ilegal de madeira das reservas é facilitada pela falta de limites definidos e de dinheiro para a fiscalização.
Outro problema se deve ao relevo extremamente montanhoso e às fortes chuvas, um prato cheio para inundações. Sem vegetação, nada detém os deslizamentos de terra e a força da água. Uma das maiores enchentes da história haitiana atingiu em 2004 a região de Gonaives, provocada pela tempestade tropical Jeanne. Mais de mil pessoas morreram.
Além da perda de espécies animais e vegetais, o desflorestamento desenfreado também prejudicou as águas e a agricultura do país. Com 80% dos rios sufocados pelo assoreamento, é cada vez mais difícil manter os cultivos de cacau, café, sisal, milho, sorgo, arroz, feijão, batata e banana, base da economia agrícola.
Mais crise
A fuga de Baby Doc para o exílio não esgotou o ciclo de violência no país. Em 1990, Jean Bertrand Aristide foi eleito com as bandeiras do combate à corrupção e ao narcotráfico e da luta contra a pobreza. Poucos meses depois, caiu vítima de novo golpe militar. Retornou ao poder em 1993, foi reeleito em 2001 mas acabou deposto em 2004, forçado por uma rebelião armada que irrompeu em Gonaives e alcançou a capital Porto Príncipe. O país já sofria embargo comercial por parte dos Estados Unidos, o que acirrava a guerra civil.
Os conflitos levaram à intervenção das Nações Unidas no Haiti. O Brasil, de olho em um assento no Conselho de Segurança da ONU, destacou mais de 1,2 mil homens para a empreitada. Lidera soldados de outros 18 países, na chamada Minustah (do francês Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti).
Se as condições políticas e sociais permitirem, os haitianos colocarão seus votos nas urnas esta semana, escolhendo o presidente entre 35 candidatos. Será um novo capítulo na história de um país que ainda não conhece a paz. E quase deixou de conhecer o que é uma floresta.
(Aldem Bourscheit, O Eco, 04/02/06)
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