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2006-02-08
O demógrafo Paul Ehrlich celebrizou-se no meio acadêmico por publicar o polêmico best-seller The Population Bomb (A Bomba Populacional), em 1968, no qual faz projeções catastróficas sobre as conseqüências da explosão demográfica. "A falta de comida causará a morte de milhões de pessoas nas próximas décadas", escreveu. Por suas previsões alarmistas, Ehrlich ocupou o posto de principal seguidor do inglês Thomas Malthus, que, no século XVIII, lançou pela primeira vez o anátema da escassez sobre a humanidade. Na década de 80, Ehrlich fez uma famosa aposta com o economista americano Julian Simon. A aposta ganhou publicidade por seu ineditismo no meio acadêmico: o alvo era o valor que cinco metais alcançariam na Bolsa de Chicago nos dez anos seguintes. Ehrlich sustentava que o crescimento populacional elevaria a demanda e o preço dos metais. Os metais perderam valor, e Ehrlich, a aposta. Agora, aos 73 anos, 47 dos quais dedicados à pesquisa na Universidade Stanford, na Califórnia, Ehrlich diz que errou, sim, mas por circunstâncias que não invalidam sua tese central: a Terra está chegando ao limite da sustentabilidade da vida humana.

Veja – As previsões apocalípticas que o senhor fez em seu livro The Population Bomb (A Bomba Populacional) não se confirmaram. Estamos salvos?
Ehrlich – Quando fiz as previsões, o ritmo de crescimento da população era tão rápido que, segundo minhas contas, o número de habitantes da Terra dobraria a cada 27 anos. Esse era um cenário assustador no qual fazer projeções como as que publiquei no livro soava razoável. Baseado nos dados de que dispunha então, posso até ter exagerado na dose. Mas fiquei muito mais próximo da realidade do que os otimistas que minimizaram em suas análises os impactos devastadores da explosão demográfica. O crescimento populacional levou o planeta a ser um lugar pior para viver, exatamente como eu havia afirmado.

Veja – Mas o senhor escreveu que "alimentar a humanidade era uma batalha perdida" e, desde então, a proporção de famintos caiu de 35% para 13%.
Ehrlich – A revolução tecnológica vivida no campo levou a um nível de aumento da produtividade com o qual eu não contava ao fazer minhas previsões. A produção agrícola cresceu 40% em cinqüenta anos. As sociedades também aprenderam a distribuir melhor a comida em situações de emergência. Por isso errei nos números, mas acertei na idéia central. A concentração populacional em algumas regiões do mundo tornou o acesso à comida mais difícil, principalmente em países africanos. Estima-se que 300 milhões de pessoas tenham morrido de fome nos últimos trinta anos – apesar das benesses da tecnologia no campo. Com menos gente no mundo, certamente a pobreza e a fome não teriam grassado e se tornado um fenômeno com as proporções de hoje. Essa situação tende a piorar.

Veja – Se a maioria dos países enriquece, por que razão as pessoas correm mais risco de passar fome?
Ehrlich – Com as informações que temos hoje, é difícil fazer previsões sobre o futuro da agricultura quando o planeta tiver passado pela transição climática que está em curso. Não dispomos ainda de resposta para uma questão básica: quantas sementes se adaptarão ao novo ambiente? Ninguém sabe. Talvez bem poucas. É razoável afirmar, portanto, que existe uma possibilidade real de o número de famintos aumentar no planeta. Não há um cientista sério que discorde da idéia de que a superpopulação leve a esse tipo de desastre social. Um outro consenso na comunidade científica é sobre a relação entre a superpopulação e os principais problemas ambientais da atualidade.

Veja – O senhor pode dar exemplos?
Ehrlich – Nas últimas três décadas, a relação entre o excesso de pessoas no mundo e os estragos ambientais tornou-se evidente. Já há menos água potável disponível para tanta gente e, com os grandes contingentes populacionais de hoje, a poluição atmosférica chegou a índices assustadores. No futuro médio, um cálculo conservador mostra que haverá 4 bilhões de veículos circulando nas ruas. Naturalmente, a qualidade do ar ficará ainda pior e o clima da Terra sofrerá variações mais drásticas.

Veja – O senhor não está subestimando a capacidade tecnológica de alterar esse cenário?
Ehrlich – Ao contrário do que meus opositores no campo acadêmico pensam, sou um entusiasta da tecnologia. Não vivo sem meus computadores de última geração para rodar dados e auxiliar em projeções. O que não posso é me juntar à corrente que sustenta ser a ciência moderna a salvadora de todos os nossos males – inclusive aqueles que têm como origem a superpopulação. A maior parte dos recentes avanços tecnológicos não chegou ao centro do problema. Uma questão é que, muitas vezes, o homem não sabe como se beneficiar de seu próprio invento. Olhe o que aconteceu com as imagens enviadas pelo satélite americano que apontava para o encolhimento da camada de ozônio: por muitos anos apenas armazenamos a informação em um supercomputador. Outro ponto é que nos dedicamos demais à pesquisa de tecnologias que não rendem nenhuma contribuição para a redução dos efeitos maléficos da superpopulação – esse, sim, nosso problema-chave. O iPod é uma ótima invenção da ciência, mas como pode atenuar os estragos da colméia humana na qual o mundo se transformou?

Veja – E as várias pesquisas que têm como objetivo substituir o petróleo por fontes alternativas de energia?
Ehrlich – Essas pesquisas mostram uma luz no fim do túnel, mas mesmo em relação a elas faço uma ressalva. Os avanços tecnológicos costumam levar tempo para gerar benefícios consistentes à sociedade. Na prática, funciona assim: enquanto a poluição atmosférica altera a temperatura terrestre, os pesquisadores ainda estudam como vão viabilizar o hidrogênio. A previsão é que daqui a três décadas o hidrogênio representará 10% da matriz energética mundial. Será bom para o planeta? Sem dúvida que sim. Mas isso ainda estará longe de minimizar o fato de o mundo ser hoje um lugar habitado por 6,5 bilhões de pessoas. Essa é uma situação insuportável. Repito: a única maneira de agüentarmos o planeta desse jeito é depredando o lugar em que vivemos além de seu limite – algo que jamais faríamos em nossa vida privada.

Veja – Em sua opinião, qual é o tamanho ideal para a população mundial?
Ehrlich – Fiz um exercício matemático segundo o qual a Terra seria um lugar bom para viver com 2 bilhões de habitantes. Ou seja, o equilíbrio natural seria assegurado se o mundo tivesse apenas 30% dos habitantes de hoje. Com esse número, as pessoas teriam acesso ao máximo de oportunidades disponíveis. De acordo com meu estudo, todas elas seriam bem alimentadas e educadas, viveriam em cidades vibrantes, teriam bons empregos e não mais ouviriam falar no desaparecimento da camada de ozônio. Não sei se um dia a Terra voltará a ter apenas 2 bilhões de habitantes, mas o dado promissor que temos dá conta de que a era da explosão demográfica vai terminar. As melhores notícias nesse campo vêm da Europa. A população da Itália, por exemplo, já começou a encolher. No ritmo atual, acredita-se que o mundo chegará ao fim do século XXI com cerca de 8,5 bilhões de habitantes. A partir daí esse número vai cair. Isso me dá uma certa esperança no futuro.

Veja – Com uma queda drástica no tamanho das populações, não há risco de os países empobrecerem por falta de mão-de-obra?
Ehrlich – Sou otimista em relação aos efeitos da redução populacional para a economia. Tudo indica que, de fato, o PIB dos países cairá quando sua força de trabalho encolher. Isso não quer dizer, no entanto, que as pessoas viverão pior. Penso justamente o contrário – e baseio meu otimismo em dois argumentos objetivos. O primeiro é que a renda per capita dos cidadãos aumentará quando a riqueza dos países for repartida por menos gente. Em segundo lugar, a produtividade também crescerá. Ou seja: menos pessoas produzirão mais. Essa já é uma tendência atual.

Veja – Quais são os países que mais o preocupam?
Ehrlich – De longe, os Estados Unidos. O cenário americano me dá calafrios por se tratar do terceiro maior conglomerado de pessoas do mundo, atrás apenas da China e da Índia, e, ao mesmo tempo, ser o país onde os indivíduos têm uma das maiores rendas per capita do planeta. São 300 milhões de cidadãos consumindo utilitários esportivos e jatos que bebem gasolina como se fosse Coca-Cola. O nível de consumo americano exerce pressão sobre os recursos naturais do mundo inteiro. Do ponto de vista do equilíbrio global, não há situação demográfica mais explosiva.

Veja – Esperar que as pessoas possam refrear seu consumo não é utópico?
Ehrlich – Prefiro colocar a coisa da seguinte maneira: consumir pode trazer bem-estar, e não sou contra isso por princípio. Aprecio os benefícios que a economia de mercado pode trazer para a vida das pessoas – e comprar é um deles. Mas esse é um típico caso em que a teoria está distante da realidade. Com o cenário atual, o mundo pode até suportar durante algum tempo o padrão de vida dos americanos. A chegada de bilhões de chineses e indianos a esse mesmo nível de consumo levará a conseqüências devastadoras para o meio ambiente e para a qualidade da vida na Terra. Será um teste aos nossos limites.

Veja – Segundo projeções econômicas, China e Índia estarão próximas do padrão de consumo americano em 2050...
Ehrlich – O fato de esses países terem enriquecido é ótima notícia. Só lamento que tenham chegado lá com uma população gigantesca. Já pensou toda essa gente realizando o sonho de dirigir o próprio automóvel? Do ponto de vista ambiental, a situação só tende a piorar com esse quadro. Evito projeções apocalípticas, mas, como cientista, tenho o dever de fazer previsões que sirvam de alerta. No atual ritmo de crescimento econômico e com tanta gente junta, China e Índia terão papel de vanguarda na destruição da camada de ozônio e estão arriscadas a ver doenças epidêmicas, como a aids, espalhar-se em seu território. O contingente populacional dos dois países é terreno fértil para a proliferação de tais epidemias. Trata-se de um ciclo vicioso catastrófico, típico de ambientes superpopulosos.

Veja – O que o senhor sugere para quebrar esse ciclo?
Ehrlich – Acho inevitável que sejam tomadas medidas em duas direções. Primeiro, os governos devem intervir para limitar a venda de produtos cujo consumo excessivo leve a prejuízos para o meio ambiente. Eu começaria pelo aumento dos impostos sobre a gasolina e os itens produzidos à base de petróleo. Impor alguma regulamentação nesse campo é uma questão de sobrevivência da espécie. Em segundo lugar, é preciso que os governos também estimulem os cidadãos a promover uma mudança de hábitos. A redução do desperdício de recursos naturais no dia-a-dia seria um bom começo. Há números impressionantes nesse campo. Em alguns países, mais da metade da água disponível é jogada pelo ralo. Isso é inadmissível diante da situação atual de superpopulação da Terra.

Veja – O senhor chegou a defender impostos sobre berços e fraldas para inibir a fecundidade. Ainda acredita nessas medidas?
Ehrlich – Eu também defendia que homens indianos com mais de três filhos deveriam ser esterilizados por força da lei. Essas idéias ficaram velhas, admito, porque os países estão conseguindo implantar boas políticas de redução da fecundidade – em geral, mais educativas e menos invasivas do que as que propus. O Brasil é um bom exemplo disso. Nos anos 70, uma mulher brasileira tinha, em média, seis filhos. Hoje esse número baixou para dois.

Veja – Historicamente, um dos efeitos da superpopulação são as guerras pelo "espaço vital". Esse risco está crescendo atualmente?
Ehrlich – A experiência mostra que existe uma relação direta entre a explosão demográfica e o acirramento da política externa dos países. Isso acontece por uma razão simples. As nações se vêem forçadas a entrar em guerra com outras para garantir recursos naturais que, com o atual contingente, são cada vez mais escassos. O melhor exemplo para ilustrar o que estou dizendo é o conflito no Iraque. Os Estados Unidos desencadearam a guerra com o objetivo de manter o suprimento de petróleo de que necessitam para continuar a crescer e a consumir na velocidade de hoje.

Veja – Como se sente sendo classificado como um neomalthusiano?
Ehrlich – Malthus, até certo ponto, foi um visionário, em especial quando veio a público falar pela primeira vez sobre os perigos da superpopulação. Ele errou nos números, mas acertou na idéia central: aglomerados de gente tendem a concentrar pobreza, fome e doenças. As estatísticas comprovaram tal fenômeno posteriormente.

Veja – Por que o senhor perdeu a célebre aposta que fez com o economista Julian Simon nos anos 80, em que afirmava que o valor de cinco metais iria subir em dez anos na Bolsa de Valores de Chicago?
Ehrlich – Parti do pressuposto correto. Eu achava que o crescimento populacional levaria ao aumento da demanda pelos metais e, em conseqüência disso, seu preço subiria. Fiz o cálculo econômico básico segundo o qual a escassez traz como resultado o aumento do preço. Perdi a aposta por uma questão meramente circunstancial: houve uma queda generalizada nas ações da bolsa em virtude de um momento de encolhimento da economia americana. Imagine a situação como um jogo entre a Seleção Brasileira de Futebol e um time de bairro qualquer. Apostei no Brasil, mas quem venceu foi um desconhecido adversário. Venceu uma vez. Ponto final. O equívoco está em pensar que o desconhecido adversário venceria o Brasil sempre. No meu caso, o erro está em imaginar que o fato de eu ter perdido aquela aposta significa que os recursos naturais são inesgotáveis e que o planeta pode sustentar não importa quantos bilhões de seres humanos.
(Veja, 06/02/06)

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