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2006-02-08
Se ao pensar em um grupo reconhecidamente conservador você lembra dos militares, agora tem um bom motivo para acreditar que essa fama é muito bem-vinda. Pelo menos em relação à natureza, o país deveria agradecer o que as Forças Armadas têm feito para manter de pé e saudáveis bons fragmentos de florestas, mangues, restingas, campos e montanhas.

E olha que, na maioria das vezes, não é preciso muita coisa. Basicamente, manter a área vigiada, o que já tem sido suficiente para tornar facilmente visíveis algumas unidades militares. Afinal, além de algumas terras indígenas e unidades de conservação, são os locais onde ainda existe verde.

Nas cidades, esse é um exercício até interessante. Uma imagem do Google Earth sobre a Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, mostra com clareza que o bairro foi quase totalmente urbanizado. Restaram basicamente três tufos verdes no mapa: duas unidades da Marinha e outra da Aeronáutica, onde se localiza o aeroporto internacional. A região metropolitana do Rio tem outras dezenas de exemplos. Um dos que mais impressionam pelo tamanho e o grau de preservação é a restinga da Marambaia.

As Forças Armadas informam que em praticamente todas as suas unidades os recursos naturais são preservados. Sejam bases pequenas ou grandes, em qualquer ponto do país. Mas quando uma área dessas tem o tamanho do estado de Sergipe e está na Amazônia, livre da ameaça de grileiros, sojicultores, pecuaristas e madeireiros, o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente podem levantar as mãos para o céu.

A Aeronáutica mantém, desde a década de 50, o Campo de Provas Brigadeiro Velloso (CPBV), na Serra do Cachimbo, no sul do Pará. São 21.588 quilômetros quadrados de cerrado, áreas de transição e floresta amazônica. A área foi adquirida pelos militares para servir de ponto de apoio aos aviões que trafegavam pela região Norte no final da Segunda Guerra Mundial. Anos depois, virou um centro de treinamento para as Forças Armadas, com estandes de tiro, bases aéreas, paióis e outras instalações.

Segundo a Aeronáutica, quase toda área encontra-se intocada até hoje, sendo que freqüentemente são descobertas novas cachoeiras e espécies de animais e plantas nos vôos ou exercícios realizados na região. Também ali nascem rios importantes, como Cururu, Cururu-Açu, Azul, Formiga, Cristalino e São Benedito. Os militares afirmam que suas equipes estão preparadas para fazer a vigilância das áreas limítrofes, caso seja necessário. E têm parceria com o Ibama, que dá palestras e treinamentos na área.

Conseqüência benigna

A princípio, o objetivo dos militares não é preservar coisa alguma, mas essa acaba sendo uma conseqüência natural de sua presença. Sorte das áreas escolhidas. Com acesso restrito de visitantes, ausência de atividades econômicas e a proteção das Forças Armadas, a natureza ali tem todas as condições de prosperar. "Os militares choram falta de recursos, mas têm disciplina", avalia o biólogo Ruy Alves, vice-diretor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"Esse fenômeno não é brasileiro. É mundial", considera Alves, que prepara um artigo sobre o assunto. Ele, que viveu metade de sua vida na atual República Tcheca, conta que teve a chance de visitar bases militares em sua terra natal, verificando aves e plantas em abundância. "Era diferente de todas as regiões do país, mesmo aquele local tendo sido usado para treinamentos pesados de guerra". Sem estudos mais aprofundados, Alves diz que constatou o mesmo fenômeno em bases na Tanzânia, na Indonésia e na Malásia.

Mas foi no Brasil que o pesquisador encontrou algumas das áreas militares que mais lhe chamaram atenção pelo grau de preservação. Ele cita a Serra do Lenheiro, nas proximidades de São João Del Rey (MG), escolhida para os treinamentos do 11º Batalhão de Infantaria de Montanha do Exército. Graças a isso e à dificuldade de acesso do gado aos campos rupestres, Alves encontrou uma região intocada no meio da serra, onde faz pesquisas e cataloga espécies raras de flora desde 1986.

Outra beleza natural sob o domínio militar é a Ilha do Cabo Frio, em Arraial do Cabo (RJ). Segundo o pesquisador, 80% da ilha estão preservados. "Encontramos ali uma planta só conhecida na Serra dos Órgãos. A cada dia, fazemos uma nova descoberta", revela. Uma das mais recentes é o registro de um novo tipo de figueira.

Para o pesquisador tcheco, os militares não cumprem bem apenas a função de manter as áreas preservadas, mas também a de recuperá-las de modo eficiente com a ajuda de instituições de pesquisa, como o próprio Museu Nacional. "Temos uma boa parceria: a rigidez dos militares com orientação científica", diz Alves.

Trindade em recuperação

No Brasil, um dos casos mais clássicos de recuperação da natureza em áreas militares tem acontecido longe dos olhos de muita gente. Na ilha mais distante de seu litoral: a Ilha da Trindade, a 1.167 quilômetros da costa, controlada pela Marinha. Quando o pesquisador chegou na ilha de 10 quilômetros quadrados para os primeiros estudos, há dez anos, encontrou 600 cabras, algumas centenas de porcos, ovelhas e eqüinos, que, junto com os primeiros colonizadores açoreanos, dizimaram 95% da vegetação da ilha. "Só sobraram as samambaias gigantes, que não agradavam a esses animais".

Segundo Alves, existem no mundo 70 ilhas oceânicas semelhantes a Trindade. Em todas elas, ao longo dos séculos, marinheiros deixavam cabras que poderiam prover alimento a eventuais náufragos. "Essa prática acabou devastando muitos ecossistemas", diz.

Com o tempo, o solo ficou exposto e as erosões não tardaram. A Marinha procurou orientação de especialistas do Museu Nacional e a primeira coisa a ser feita foi exterminar com os animais – tarefa concluída em 2004. "A natureza se recuperou espontaneamente em algumas áreas, e, em outras, estamos introduzindo árvores", conta. Embora o pesquisador não saiba dizer, hoje, quanto de mata já foi recuperado, descobertas importantes já puderam ser feitas com as espécies que estão brotando naturalmente, graças à manutenção de um banco de sementes no solo.

Mas a presença militar em alguns paraísos ecológicos não agrada a todos. Na Ilha de Alcatrazes, no litoral de São Paulo, a polêmica dos treinamentos de tiros coloca a Marinha de um lado e ambientalistas do outro. Alves considera os impactos dos militares em Alcatrazes "um mal necessário". "Não dá pra ser xiita. A Marinha tinha que usar alguma ilha para esse tipo de exercício. Se não fosse lá, ia ser Noronha ou qualquer outra", opina. O biólogo acredita em conciliação. Inclusive entre as Forças Armadas e as autoridades ambientais. "Os militares têm muitas áreas mais bem preservadas que o Ibama. E cada um tem muito a ensinar para o outro. Toda ajuda deveria ser bem-vinda".
(Andreia Fanzeres, O Eco, 04/02/06)
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