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2006-02-07
Em vez de castigar, a seca faz milagre no vilarejo de Remanso do Fogo, a 500 km de Belo Horizonte. Quando as águas baixam, as bolhas que mitificam trechos do Rio Paracatu se transformam em chamas. De maio a setembro, esquentam os alimentos de famílias como a do pescador Salvandir Barbosa dos Santos. O gás espalhado no subsolo mineiro pode mudar a realidade de 1 milhão de habitantes dos municípios da Bacia do São Francisco – uma das novas fronteiras da indústria petrolífera, abordada nessa primeira reportagem.

No sertão das Minas Gerais, a iminente chegada das petrolíferas é vista como a salvação de quem vive sem infra-estrutura às beiras do Velho Chico. 90% da população rural não têm energia elétrica e pisam na solução do gás natural, que serve apenas aos fogareiros, improvisados até em garrafas de refrigerante.

"Compramos bujão, mas pouco. Os colegas que vêm aqui pescar não precisam de fogão na época seca", conta Salvandir, ao lembrar da economia que faz com o dinheiro do gás de botijão. Tem sido assim pelo menos desde 1940, quando o pai dele, recém-chegado da Bahia, fincou os primeiros alicerces de madeira na vila da pacata Santa Fé de Minas.

Salvandir convive com as emanações de gás desde criança, sem alimentar expectativas de ver o município deslanchar. À beira do rio, o rastro de óleo, que compõe a paisagem há décadas, também não cria ansiedade. "Aquilo ali deve ser petróleo, a Petrobras andou cá vendo isso", narra, conformado com o que tem e sem noção do que pode mudar na vida da região com a chegada das empresas.

Enquanto os moradores vivem no ritmo próprio dos sertões, a Petrobras, a multinacional inglesa BG, a brasileira Geobras e o grupo argentino Oil & MS não perdem tempo: demonstrando apetite inédito, disputaram dezenas de concessões na região, durante o último leilão de áreas de petróleo e gás da Agência Nacional do Petróleo (ANP). O conhecimento do fênomeno natural e a semelhança com a formação geológica da Rússia, maior produtor mundial de gás, fizeram da Bacia do São Francisco a mais atraente de toda a história das rodadas de licitações. Das 43 concessões oferecidas, 39 foram arrematadas. Isso porque só a parte mineira foi a leilão.

Estudo feito por uma das empresas com planos de exploração sob as veredas, a Geobras, apontam para a existência de um trilhão de metros cúbicos de gás natural na Bacia do São Francisco, combustível suficiente para abastecer o Brasil por 60 anos. A projeção é preliminar mas foi suficiente para convencer bancos estrangeiros a financiar a pequena empresa no projeto de exploração de nove áreas da região, com R$ 114 milhões. Falta o aval da ANP para aprovar os documentos da Geobras junto a investidores.

A proximidade com os grandes mercados também empolga os investidores. "Temos Belo Horizonte e, se sobrar, podemos levar o gás a São Pau-lo", comemora o presidente da BG, Luiz Carlos Costamilan. Parceiro da BG em seis áreas na bacia, o diretor de Exploração e Produção da Petrobras, Guilherme Estrella, prefere esperar os testes de viabilidade comercial antes de comemorar: "O que temos de concreto, por enquanto, é uma curiosidade geológica".

Os efeitos dessa curiosidade geológica chegam aos animais que daquela água bebem. Na Fazenda do Vale das Aroeiras, no município de Buritizeiro, trabalhadores estranharam o gado que bebia água num dos poços da propriedade. "As vacas ficam empanzinadas quando bebem a água com gás. Não levantam de tão estufadas de gases", conta, às gargalhadas, Jullierme Alves, funcionário da Prefeitura de Buritizeiro.

Alertada por uma explosão na Fazenda das Aroeiras em 1988, a Petrobras furou um poço no local e confirmou a existência de grande volume de gás natural. Desde então, as visitas de estudiosos e empresas não pararam. Lá, é possível assistir a cenas dignas de filmes repletos de efeitos especiais, como fogo sobre a água. Larissa Ferreira, 7 anos, adora acompanhar o pai, Juvercino, ao "poço encantado" que exala bolhas. A facilidade de cozinhar não é a mesma encontrada à beira do Rio Paracatu. No Velho Chico, o gás é tanto que vaza continuamente. No poço de Juvercino, as bolhas aparecem, desaparecem, retornam, se espalham... e a panela demora a esquentar.

O geólogo Wilson Guerra, da Universidade Federal de Ouro Preto, explica que a bacia do São Francisco é uma das mais antigas do mundo. "Antes da Rússia encontrar gás, imaginava-se que não havia reservas sob esse tipo de bacia, mas os russos quebraram esse tabu".

O proprietário da terra onde os poços são perfurados têm direito a receber de 0,5% a 1% da produção. Um poço no quintal pode render de R$ 1 mil a R$ 30 mil por mês. Juvercino acredita que o patrão, se contemplado, repartirá a riqueza com os empregados, mesmo sentimento de Libânio de Souza. "Estamos esperando pros filhos de Deus olhar e entender que temos que viver também", diz o aposentado, que abriga mulher e sete filhos na casa improvisada de galhos e plástico. Vive a 5 km do São Francisco, mas sofre com a falta de água. Mora em cima de uma bacia de gás natural, mas não tem luz. Mesmo diante das dificuldades, Libânio se orgulha de ter abandonado a cidade para viver ali: "Quero nada de cachaçada, palavrão, desrespeito na casa dos outros".

O alívio da gente do sertão é que, diferentemente do que acontece na exploração em alto-mar, na qual o destino dos royalties depende das boas intenções das prefeituras e governos estaduais, os donos da terra têm direito a participação direta. Modesta, mas suficiente para lhes dar o básico.
(GM, 06/02/06)

Os órfãos do carvão estão à espera dos royalties
A população faz coro ao apontar a maior carência das cidades do Norte de Minas Gerais: emprego. Durante décadas, a produção de carvão vegetal desordenada proporcionou trabalho aos habitantes da região mas transformou a paisagem, famosa pelas veredas. O maior rigor na fiscalização ambiental nos últimos anos está devolvendo o cerrado e arrancando a única atividade econômica relevante dos sertanejos.

O sustento da família de Maria Gomes, com 12 filhos, é o Bolsa-Família. Já foi a carvoaria, na qual todos trabalhavam. Hoje só há lugar para um: o marido de Maria ganha R$ 12 por dia nos fornos. Só que nem todo dia há serviço. Em vez de queimar a mata nativa, os produtores foram obrigados a investir no cultivo de eucaliptos para utilizá-los na carvoaria.

Os produtores de carvão reduziram ou abandonaram a atividade por causa das novas obrigações impostas pelo governo federal, como relatam funcionários da Prefeitura de Santa Fé de Minas. O chefe de gabinete da prefeitura, Anderson Braga, reconhece a necessidade ambiental de combater a destruição do cerrado. Critica, porém, o fato de os municípios não terem recebido aumento nas transferências governamentais para compensar o desemprego. "Não tivemos nem mais um tostão por causa desta lacuna. A depredação tinha de ser combatida, mas a população ficou mais carente", afirma Braga. Ele aposta nos royalties do gás natural e petróleo para reinvestir em alternativas de emprego. Na gaveta por falta de verba, há projetos de cultivo de buritis, palmeiras que proporcionam artesanato e produção de móveis.

Sem infra-estrutura e saneamento, a população de Buritizeiro aguarda por um lugar ao sol nos investimentos de R$ 2,7 bilhões da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa). O orçamento vale de 2002 a 2006, conforme lembra o secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais, Wilson Brummer. O secretário admite a falta de saneamento, mas se orgulha da ênfase à educação. "Você viu que as crianças vão à escola, mesmo em lugares distantes". De fato, nenhuma das famílias entrevistadas nesta reportagem tinha crianças fora das salas de aula. Nas redondezas do Córrego do Doce, a cinco quilômetros do centro de Pirapora, alunos caminhavam até três quilômetros para chegar à escola. Hoje passa ônibus escolar por quase toda a região.

Paulo de Santana, presidente do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável de Buritizeiro, questiona o governo federal na transposição do Rio São Francisco. "Por que fazer uma obra monumental para atender a regiões mais distantes antes de investir em encanamento barato para as localidades que estão na beira do Rio?"

Gente desconfiada demais que mexe com lama preta
"Eles têm muito segredo; tiraram lama preta mas saíram de perto da gente". O pescador Antônio José de Oliveira, do vilarejo de Remanso do Fogo, se queixa do silêncio da Petrobras sobre os estudos geológicos realizados na Bacia do São Francisco. A curiosidade não é de hoje. "Sabe das coisas e não conta. Ô gente desconfiada demais, essa Petrobras!".

O diretor de Exploração e Produção da estatal, Guilherme Estrella, afirma que a empresa ainda sabe pouco sobre a bacia porque não deu continuidade à pesquisa, iniciada na mesma época em que só tinha olhos para a Bacia de Campos, no Estado do Rio – alavanca da auto-suficiência em petróleo, que será comemorada este ano. O executivo afirma que dados mais concretos virão a partir das atividades de exploração, que começam neste ano com a perfuração de dois poços pelas parceiras Petrobras e BG e um terceiro pela empresa concorrente Geobras.

De acordo com a ANP, a exploração de hidrocarbonetos na Bacia do São Francisco começou na década de 60, com a descoberta de emanações de gás e pesquisa de especialistas locais. Em 1970, o município de Montalvânia, na divisa entre Minas e Bahia, foi alvo de estudos. Constatou-se que se tratava de gás natural e não de gás metano. Mesmo assim, o interesse das empresas só apareceu em 2005, depois de uma tentativa frustrada de leilão em 2002, quando nenhuma companhia (nem a Petrobras) apresentou lances.

O apetite voraz das empresas em apenas três anos intriga o diretor da Geobras, Luiz Andrade. Segundo ele, foi justamente neste intervalo de tempo que a empresa de pesquisas em mineração descobriu o potencial de gás na região por meio de estudo aerogeofísico (avião equipado com sensores que identificam hidrocarbonetos). Ele arrisca dizer que este foi um incentivo para outras companhias buscarem informações sobre a região.

"Tem multinacionais ligando pra gente perguntando como temos informações tão parecidas. Todas as nove áreas que ganhamos, a Petrobras quis também e disputou conosco. E todas as que eles arremataram nós também quisemos e fizemos lances", lembra.

Se a Geobras acredita em vazamento de informação, para o presidente da BG, Luiz Costamilan, o crescimento do consumo de gás no país sem proporcional aumento da oferta nos últimos dois anos explica a mudança de comportamento das empresas em relação à bacia. Para o superintendente da ANP, Milton Franke, bastaram algumas palestras sobre o fenômeno que acontece na região para o desprezo acabar. As dúvidas sobre o rumo da Bolívia também podem ter disparado o gatilho da disputa.

Com 41 mil unidades de trabalho prometidas pelas empresas que arremataram as concessões, São Francisco é com folga a bacia terrestre com mais potencial de investimentos de geração de emprego no país. O investimento em exploração de toda a bacia nos próximos seis anos chega a US$ 125 milhões. "Se as empresas concessionárias cumprirem este volume de investimentos, muito poderá ser feito para melhorar as condições de vida da população", afirma Milton Franke.

Para vencer a Petrobras na disputa pelas áreas, a Geobras prometeu investir R$ 114 milhões. "Se o gás sai assim no raso, imagina com mais profundidade. Onde há fumaça, há fogo", comemora Andrade.

Agricultores de Buritizeiro já cultivam a esperança
A fertilidade de gás natural e petróleo nas terras de Antônio da Batalha esterilizou seus planos de agricultor. Desistiu de plantar na propriedade adquirida há 50 anos porque a presença de hidrocarbonetos não deixa a plantação vingar. Aos 63 anos, não sabe o que fazer com os hectares que possui. Como ele, 30 famílias que repartem os dez mil quilômetros quadrados da Fazenda de Capão Celado, em Buritizeiro, amaldiçoam o combustível e muitos já deixaram a região.

O sustento de Antônio vem da roça que cultiva na lavoura ao lado do amigo Messias Afonso Velloso. "Os técnicos da Agência Nacional de Petróleo vieram cá e nos avisaram que nem adiantava plantar", conta Messias. O gás e o petróleo impedem a renovação dos nutrientes da terra. Quanto mais se lavra, atingindo camadas profundas do solo, menor a chance de que o plantio prospere.

"Os nutrientes são renováveis em situação normal. Os hidrocarbonetos não deixam haver renovação do solo", detalha Wilson Guerra, geológo da Universidade de Ouro Preto. Nas terras pretas, a primeira plantação brota naturalmente. A segunda já não é tão garantida. "Na terceira vez não há broto que resista; nem plantamos mais", explica Messias.

"Sou tão pobre que nem mulher tenho", lamenta Antônio. Ele nem imagina que a chegada de petrolíferas na região pode mudar sua vida. Não sabe que terá direito a participação de superficiário se houver produção de gás e óleo nos próximos anos. Quem sabe, assim, não conseguirá um casamento?

Também sem noção das compensações que a terra preta pode oferecer, todos os parentes de Antonio da Batalha abandonaram Capão Celado em busca de terrenos adequados ao plantio. Os tios de Messias fizeram o mesmo.

Na propriedade de Messias, algumas áreas são improdutivas, mas há espaço para culturas de mandioca, arroz, feijão, abacaxi. A produção satisfaz as necessidades das dez pessoas que dividem o mesmo teto. E ainda sobra para vender e ajudar os amigos que não têm a mesma sorte.

As dificuldades dos agricultores vão além da presença de hidrocarbonetos. Falta tecnologia, sobra cupim, que come a plantação. Eles se queixam também da dificuldade de irrigação, ainda que a distância do Rio São Francisco seja de poucos quilômetros e já vislumbram o uso de royalties do petróleo e gás para melhorar as condições de plantio.

Messias, mais informado sobre as benesses que o subsolo pode oferecer, conta o que fará com o dinheiro da participação de superficiário. "Vou investir em tecnologias que aumentem nossa agricultura aqui". A esperança vem das visitas anuais dos técnicos da ANP e da Petrobras, que ele conta receber.
(GM, 06/02/06)

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