Seringueiros propõem criação da sua Universidade da Floresta
2006-02-06
Um adolescente, seringueiro quase menino, ouviu com atenção as palavras do sertanista Antônio Macedo sobre aquele negócio de organizar os trabalhadores a fim de ter um lugar seu para criar os filhos e fazer vida sem ser mandado de patrão de uma para outra colocação.
Esse menino era Davi Nunes de Paula, fundador da Associação dos Seringueiros Agroextrativistas da Bacia do Rio Croa e Alto Alagoinha (Asaebrical), que vai reunir-se com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em Brasília no dia 7 deste mês. Ele vai pedir que apresse os processos para a criação da Reserva Extrativista do Rio Croa e Alto Alagoinha, que juntando cinco seringais somam cerca de 250 mil hectares, onde moram mais de 400 famílias de posseiros, muitas delas vivendo ali há quase 50 anos.
Vai apresentar o apoio de sua comunidade da floresta e apresentar ao BNDES seu projeto de criação do Centro de Formação e Educação Integrada, entidade que em parceria com a Universidade da Floresta funcionará dentro do Croa recolhendo e preservando os saberes e conhecimentos milenares dos povos da floresta.
Nesta matéria, Davi, que de seringueiro transformou-se num misto de sindicalista visionário com líder espiritual e xamã, relata sua trajetória que se confunde com a própria luta pela libertação dos seringueiros do Juruá, a conquista do governo pela Frente Popular. São momentos de alegria, conquistas e decepções de uma vida seringueira em que foi analfabeto até os 15 anos e agora ajuda a projetar uma verdadeira universidade na floresta. "Era 1990 quando conheci o Antônio Macedo, que na época era sertanista da Funai falando daquelas coisas de movimento social pela criação da organização dos povos do Juruá eu fiquei admirado. Aquela movimentação toda gerou muita discussão de qual seria a forma ideal de uso daquela terra e foi assim que surgiu a Reserva Extrativista do Juruá, a primeira do Brasil, do mundo.
Gostei ainda mais dele porque era odiado pelos patrões. Era perseguido porque o trabalho dele tinha valor, peguei simparia pelo trabalho dele. Eu era uma pessoa analfabeta e trabalhava cortando borracha. Macedo convidou meu pai para trabalhar como guarda-livros da reserva. Eu fui ser assistente de canoa, motorista de embarcação, acompanhava meu pai nas visitas, por isso fui morar na Foz do Tejo, comecei a trabalhar no projeto de saúde da associação dos seringueiros (Asareaj).
Aprendi muito, aquele trabalho marcou minha vida. No projeto também tinha apresentações de teatro, música e violão que levavam alegria para aquela gente. Fui gostando, gostando e quando vi já tinha sido fisgado pelo movimento. A gente ia por aquelas comunidades seringueiras, índios e tudo o mais despertando nas pessoas a vontade e a coragem de lutar pelos seus direitos. Sem perceber, de repente aquilo foi me tornando uma referência e depois uma liderança. Herdei de meu pai esse meu jeito calmo, o espírito solidário e conciliador.
Meu pai, Antônio de Paula, era muito conhecido e respeitado. Como eu andava junto com ele, aprendi o exemplo. Meu pai era um caboclo ecologista. Eu morava nas colocações e passava muito tempo nas canoas e barcos atrás de meu pai, não gostava da escola, quando ele me matriculou com 13 anos preferia gazetar para vender quibe e fazer outros serviços para ganhar dinheiro. Só militando no movimento é que eu descobri a importância de me alfabetizar.
Em, 1995 tinha 16 anos quando fui morar na casa de minha irmã Isna de Paula, que na época estava fazendo o supletivo do primeiro grau e me obrigou a estudar também. Primeiro me alfabetizei em seis meses e no ano seguinte consegui fechar o primeiro grau. Voltei para Cruzeiro do Sul em 1997, cheguei no momento que estava começando a campanha eleitoral, fui conquistado pela Frente Popular, até hoje me lembro de um adesivo do Jorge Viana com um uma foto e a bandeira do Acre e a frase Acre "nosso lugar no mundo".
Trabalhei ajudando a organizar o pessoal do Croa. Na primeira viagem eu nem gostei de lá porque tinha muito carapanã, mas quando voltei senti uma força e uma voz dizendo dentro de mim: “Fica aqui, que é o teu lugar, e tudo o que tu sonhas vais realizar aqui”. Para mim, era uma mensagem da rainha da floresta e eu obedeci.
"A Frente Popular ganhou o governo e a gente achou que tudo estava resolvido, relaxamos, mas logo depois percebemos que não era bem assim. Por causa disso o movimento deu um enfraquecida, mas a gente reagiu, se reorganizou, criou novas entidades e foi à luta. A reserva do Alto Juruá, por exemplo, viveu sua pior administração entre os anos de 1998 e 2004, só resolvemos o problema criando duas novas associações.
Até o ano 2000, sequer um vereador havia entrado no Croa para pedir voto, as pessoas eram desunidas, bebiam bastante, se furavam. Era um lugar esquecido. Fui para lá e chamei o pessoal para se organizar. No primeiro momento a comunidade reagiu mal, alguns gostaram da idéia, mas outros foram contra e até ameaçado eu fui por casa disso.
Levei a idéia para o pessoal do Imac, a Magali gostou e o Edegard de Deus aprovou, então começamos a nos organizar.
Eu não estava bem física nem espiritualmente e fui buscar remédio numa comunidade em Cruzeiro do Sul, lá encontrei a professora Maria Alice Freire, do Centro de Medicina da Floresta, que me atendeu e deu assistência. Ela vinha do Mapiá e estava a caminho do seringal Adélia, no baixo Juruá, e tinha parado em Cruzeiro do Sul. Falei de nossa comunidade e ela se interessou."
Em dezembro veio com o padrinho Alfredo do Cefluris ,que gostou da idéia, nos visitou e um amigo que estava com ele doou R$ 4 mil para nos ajudar. Com esse dinheiro visitamos as famílias e organizamos sete reuniões e no dia 27 de janeiro de 2001 criamos a Associação dos Seringueiros Agroextrativistas da Bacia do Rio Croa e Alto Alagoinha.
A assembléia decidiu que eu deveria ser o presidente, então passeia trabalhar mais ainda. Imac, Ibama e Deracre nos deram apoio.
Eu era inexperiente, produrei o Macedo para tomar umas aulas, também procurei o Pianko, o Bemke, Moisés, Chico Ginu, procurei todo mundo. Organizamos a sede, horta comunitária e o centro de saúde, que com orientação da Maria Alice daria origem ao Projeto de Saúde Nova Vida, cujo objetivo principal é reunir os conhecimentos da medicina da floresta e preparar produtos que são fornecidos aos integrantes da comunidade.
Em 27 de setembro de 2001 aconteceu o primeiro evento que levou à formação dos primeiros 25 agentes de saúde da medicina da floresta, orientados por Maria Lúcia Freire. Fiz aliança com o movimento dos povos da floresta, apresentei projeto às instituições, recebemos apoio do WWF e em maio de 2002 realizamos o primeiro Encontro dos Povos da Floresta do Alto Juruá.
Nasce a Universidade da Floresta
Ali se reuniram mais de 100 lideranças da floresta e representantes de entidades de todo o Brasil. O governador Jorge Viana e o vice Binho prestigiaram o evento. Ali foi feita uma avaliação da situação precária em que vivem os povos e resgatada a idéia de criar uma universidade da floresta.
Havia no encontro dois representantes do deputado Henrique Afonso, que pessoalmente defendia a criação de uma universidade Federal do Vale do Juruá. Nós achávamos que era melhor reforçar a Ufac e acrescentar os cursos de que necessitamos.
Ele abraçou a idéia e nós o apoiamos. Até porque nessa época já tínhamos a proposta de criar o Centro de Formação e Educação Ambiental dos Povos da Floresta, cujo objetivo é ser um braço da Universidade da Floresta respeitando e absorvendo os conhecimentos e tradições dos povos da floresta.
A proposta de criação da Universidade da Floresta ganhou força total em novembro de 2002 quando aconteceu em Cruzeiro do Sul o debate sobre a Universidade do Século XXI. Além de Henrique, a proposta ganhou apoio do governador Jorge Viana e do senador Tião Viana, gerando uma engrenagem política com força capaz de concretizar o sonho, e ela passou a existir de fato.
Durante o terceiro encontro dos povos da floresta realizado em 2005, foi criado um Fórum Deliberativo para definir o programa pedagógico da univerisdade da floresta. No nosso entender, essa universidade tem que ter a identidade do povo da floresta e se não tiver isso ela não é universidade da floresta nem nunca vai ser.
Para isso precisa criar cursos ligados à floresta, como o de antropologia, ciência sociais e inserir um curso de pedagogia social indígena. Se não valorizarmos e preservarmos esse conhecimento milenar ele será perdido. A posse da terra é importante para tudo isso e nós vivem,os sobre uma terra que não é legalmente nossa. O processo de reconhecimento e desapropriação está bem adiantado e deve ser concluído até junho porque nossa luta chamou a atenção de Brasília.
Audiência pública - Diante dessa situação, pedimos em janeiro ao promotor Adenilson de Souza a realização de uma audiência pública para acontecer nos dias 22 a 24 de março. Nela vamos debater o plano de mitigação de impactos da BR-364 com vista ao desenvolvimento e segurança das famílias tradicionais do Croa e Valparaíso.
De seis a 15 de agosto o primeiro encontro de cultura ecológica para Nova Era que acontecerá na Comunidade Nova Era localizada no rio Croa. Até lá, esperamos ter definida a solução para nossa terra, como também a implantação do Centro de Formação e Educação Ambiental Integrada dos Povos da Floresta já funcionando como um braço da Universidade da Floresta na floresta do Croa.
(Página 20 – AC, 03/02/06)