A saga brasileira pela conquista energética
2006-02-06
O Brasil não é propriamente um terreno fértil para inovações tecnológicas. O
gigantismo estatal e a burocracia que dele resulta premiam a ineficiência,
sugam o crédito disponível e destroem o incentivo que leva pessoas e empresas
a inovar. De vez em quando, a criatividade rompe essa barreira e faz história.
É o que ocorre agora em duas frentes do setor energético. Com o sucesso do
carro bicombustível, o Brasil tornou-se o primeiro país a viabilizar a
produção e o uso em larga escala de uma energia alternativa aos derivados de
petróleo – produto que bate novo recorde de preços e esteve no centro de duas
de suas piores crises econômicas, em 1973 e 1979. Em dezembro passado, 73% dos
automóveis vendidos no país funcionavam tanto a álcool quanto a gasolina.
Numa outra frente, o Brasil está prestes a atingir a auto-suficiência na
produção de petróleo, um sonho que parecia impossível há meros dez anos. Nada
disso veio de graça. Nem é mérito de governos – principalmente do atual, que
tentou pôr fim à gestão profissional na Petrobras e ideologizar a pesquisa em
órgãos públicos. As duas conquistas resultam da criatividade e do esforço de
vários cientistas brasileiros nas últimas três décadas. O carro bicombustível
é o último passo de uma aposta de trinta anos na produção de energia renovável
a partir da biomassa de cana-de-açúcar. Já a auto-suficiência do petróleo só
foi possível por causa da liderança tecnológica brasileira de exploração em
águas profundas.
A independência energética chega em um momento extremamente oportuno. As
cotações internacionais do petróleo estão em patamares elevadíssimos, em torno
de 60 dólares o barril, e podem subir ainda mais ante a instabilidade no
Oriente Médio, onde se concentram as maiores reservas mundiais. "A
auto-suficiência blinda o país contra crises como as de 1973 e 1979", diz
Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura. Em 1979, o
Brasil produzia apenas 15% do petróleo que consumia. A disparada no preço do
petróleo, que quintuplicou em poucos meses, destruiu as contas externas e
levou o país à moratória. É esse o principal ganho para a população brasileira.
Não é pouca coisa. Há dez anos, o Brasil precisava importar metade do petróleo
de que necessitava. Se essa situação persistisse até hoje, representaria uma
conta de 20 bilhões de dólares ao ano – o que eliminaria o expressivo saldo de
15 bilhões de dólares nas contas externas. Em resumo, sem o salto produtivo da
Petrobras, o país não teria o tão festejado superávit externo.
O feito não seria realidade sem a tecnologia de ponta desenvolvida pela
companhia. Mais de 65% dos poços encontram-se a 400 metros abaixo do nível do
mar. O mais profundo, no Campo de Roncador, fica a 1 886 metros abaixo da
superfície – onze vezes a altura do Edifício Itália, o mais alto edifício de
São Paulo. Vencida a barreira da água, é preciso atravessar camadas e camadas
de rochas para atingir as jazidas petrolíferas. As brocas chegam a entrar
2.000 metros na terra até alcançar o veio de óleo. Somente submarinos-robôs,
desenvolvidos nos centros de pesquisa da Petrobras, conseguem operar em tais
condições. Sem eles, a auto-suficiência seria impossível – os mergulhadores
não resistem a profundidades superiores a 400 metros. "Quando foram descobertas
as reservas em águas profundas, na década de 80, não havia no mundo tecnologia
disponível para explorá-las", diz Carlos Tadeu Fraga, gerente executivo do
Centro de Pesquisas da Petrobras. Tecnicamente, a auto-suficiência brasileira
será atingida com a entrada em operação da plataforma flutuante P-50, que se
encontra no estaleiro Mauá, em Niterói (RJ), onde recebe os últimos
preparativos antes de seguir para alto-mar, nas próximas semanas. Quando ela
atingir sua capacidade máxima de produção, provavelmente no segundo semestre,
o Brasil passará a produzir, pela primeira vez, mais petróleo do que consome.
Uma ambição de quase setenta anos, desde 1939, quando jorrou o mais antigo
poço brasileiro com viabilidade comercial, no Recôncavo Baiano. A produção
brasileira mais do que dobrou na última década. No mesmo período, a extração
dos maiores produtores permaneceu praticamente estável. O mais paradoxal é que
a Petrobras começou a bater recordes atrás de recordes após a abertura do
mercado de petróleo, em 1997. Desde sua criação, em 1953, a estatal detinha o
monopólio da exploração em território nacional. "A indústria petrolífera
representava 2,5% do PIB brasileiro. Em 2005, a participação já era de 10%",
diz Eloi Fernández y Fernández, diretor da Organização Nacional da Indústria
do Petróleo. Com a abertura do setor, petrolíferas estrangeiras também
começaram a investir no país. A Shell já produz 50.000 barris de petróleo ao
dia e a Chevron acaba de anunciar planos de investir em prospecção.
Em tempos de auto-suficiência, o que vai acontecer com o preço da gasolina? A
resposta a essa pergunta geralmente desagrada aos consumidores. Ao contrário
do senso comum, o fato de o país tornar-se auto-suficiente não significa que o
preço do combustível deva desabar de uma hora para outra. Isso porque, para
manter-se competitiva e rentável, a empresa acompanha as cotações
internacionais. "Não se pode subsidiar o consumo de um produto escasso e não
renovável", afirma Franciso Gros, ex-presidente da companhia. "Seria demagogia."
Demagogia, aliás, também ronda a campanha publicitária preparada pela atual
diretoria da Petrobras para comemorar o feito. Em primeiro lugar, é preciso
lembrar que a auto-suficiência está sendo obtida apesar deste governo, e não
por causa dele. Além disso, o país ainda dependerá da importação do chamado
petróleo leve. Isso porque as refinarias brasileiras, muito antigas, foram
projetadas para processar o óleo importado sobretudo do Oriente Médio, mais
leve. Na Bacia de Campos, que responde por 85% da produção nacional, o mais
comum é o petróleo pesado. O país exportará parte de seu petróleo pesado e
importará o do tipo leve. O saldo acabará sendo positivo, mas ainda há muito a
avançar no setor de refino.
Também é preciso reconhecer que a volta do álcool como uma importante fonte de
combustível ajudou o país a reduzir sua histórica dependência do petróleo
importado. Muito mais que isso: o Brasil desenvolveu a mais bem-sucedida
alternativa ao combustível fóssil da história. Só neste ano vai produzir 16
bilhões de litros de álcool e manter a liderança como o maior produtor do mundo.
Depois de crises de abastecimento e alta no preço, o álcool havia caído em
desuso, mas a escalada nos preços internacionais do petróleo voltou a tornar o
produto atraente. O brasileiro, no entanto, não teria voltado a utilizar carros
a álcool se não fosse a tecnologia flex. Com ela, o consumidor não fica refém
nem da Petrobras nem dos usineiros (veja reportagem nas páginas seguintes). O
momento também é propício para a exportação do produto. O planeta todo se
preocupa com a emissão de poluentes, e 141 países assinaram o Protocolo de
Kioto, que pretende diminuir a emissão de gases que causam o efeito estufa e o
aquecimento global. Como o álcool pode reduzir em até 80% a emissão de carbono
em relação à gasolina, vários países já aprovaram a mistura de álcool ao
combustível fóssil, o que deve aumentar as exportações brasileiras. Se toda a
gasolina consumida no mundo recebesse 5% de etanol, seria necessário produzir
58 bilhões de litros de álcool a mais por ano.
A saga pelo desenvolvimento de energia alternativa começou nos anos 70. Na
primeira crise internacional do óleo, em 1973, o preço do barril pulou de 2
para 12 dólares. Foi então que o presidente militar Ernesto Geisel instituiu o
Proálcool, em 1975. Em dez anos foram investidos 16 bilhões de dólares em
pesquisas genéticas para melhoria da cana-de-açúcar, subsídios ao preço do
álcool e compra de novas máquinas agrícolas com financiamento a juros baixos. É
preciso reconhecer que foi uma boa idéia. O esforço do Proálcool deu resultado
no início, mas seu caráter subsidiado e mandatório era a semente de sua própria
destruição. Em 1985, com a queda no preço do petróleo no mercado internacional,
o governo não conseguiu manter os subsídios. Em 1989, houve desabastecimento, e
os brasileiros que tinham carros a álcool ficaram reticentes. Em 1990, o setor
foi desregulamentado, e o todo-poderoso Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA),
que definia cotas de exportação e subsidiava o setor, foi extinto. Recentemente,
os usineiros voltaram ao noticiário. Com o boom dos bicombustíveis, o preço do
álcool disparou. As elevadas cotações do açúcar nos mercados internacionais
também acabam se refletindo no Brasil. Em vez de produzir álcool para suprir o
mercado doméstico, as usinas podem optar pela produção de açúcar destinada ao
exterior. Mas hoje, com acesso à tecnologia flex, o consumidor pode boicotar o
álcool, se achar conveniente. Aliás, o programa do álcool só renasceu das
cinzas porque o Estado saiu de cena, os agentes econômicos competiram e os
consumidores puderam escolher.
Foi um duplo triunfo. Dois exemplos de tecnologia nacional que se tornaram
referência mundial. Mas a corrida da inovação não cessa. Há muito ainda por
fazer. A produtividade do plantio de cana deverá manter o ritmo de crescimento.
Novas gerações de carros flex deverão ser lançadas. A produção de petróleo terá
de crescer pelo menos 10% ao ano para que a auto-suficiência seja duradoura.
Para essa última tarefa, os submarinos-robôs terão de ir ainda mais fundo.
Assim como a criatividade dos brasileiros.
"Os carros brasileiros usam uma tecnologia que permite que funcionem tanto com
gasolina quanto com álcool. O papel de governos como o nosso é incentivar esse
tipo de inovação, de forma a nos tornar menos dependentes de energia
importada." A frase acima, dita na semana passada, é de George W. Bush,
presidente dos Estados Unidos, país que lidera a revolução tecnológica mas
importa 60% do combustível que consome. A sentença de Bush dá idéia da imensa
repercussão internacional de uma tecnologia brasileira: o automóvel
bicombustível, também conhecido como "flex", de flexível. A palavra flex está
na boca de democratas e republicanos, suecos e indianos, japoneses e chineses.
No Congresso americano, a senadora Hillary Clinton ecoou os elogios de Bush.
A Índia, o segundo maior produtor mundial de cana-de-açúcar, enviou cientistas
ao Brasil para estudar o projeto. Uma montadora da China – nação que também
enviou cientistas ao Brasil – acaba de encomendar um projeto de carro
bicombustível à Magneti Marelli, empresa sediada no interior paulista que é uma
das responsáveis pelo desenvolvimento da tecnologia. Suécia, Japão e Canadá têm
planos de misturar o álcool à gasolina para cumprir as metas do Protocolo de
Kioto, já que a mescla é menos poluente do que o combustível fóssil em estado
puro. Há, assim, um imenso mercado externo potencial para o novo tipo de
automóvel. No presente, existe uma limitação: a falta de estrutura de
abastecimento de álcool na maior parte dos países, a começar pelos Estados
Unidos. No Brasil, onde metade dos 30.000 postos é equipada com bombas de
álcool, o bicombustível reina. Em dezembro passado, sete de cada dez veículos
vendidos no país já eram do tipo flex.
Não há prosperidade econômica sem inovação, ensina o professor Michael Porter,
da Universidade Harvard, o economista que melhor entendeu os mecanismos da
competição no mundo globalizado. Consoante com essa teoria, a saga do Brasil na
busca da auto-suficiência em combustíveis fósseis e na consolidação do álcool
como fonte alternativa de energia pode ser narrada de inovação em inovação. O
país tem o etanol mais barato do mundo graças ao desenvolvimento, por mecanismos
genéticos, de uma variedade de cana mais rica em sacarose. Na área de
combustíveis fósseis, as inovações brasileiras na extração de petróleo em águas
profundas foram exportadas para quase toda as nações que tiram óleo do mar, da
Nigéria à Noruega. Sem os avanços tecnológicos, o Brasil produziria apenas 30%
do petróleo de que necessita e teria de importar o resto. Não por acaso, a
Petrobras é a instituição brasileira que mais registra patentes por ano. Em
segundo lugar vem a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Toda a
tecnologia do carro bicombustível foi criada no cinturão de alta tecnologia que
se desenvolveu nas imediações da cidade do interior paulista. Foi uma rara
conjunção, no Hemisfério Sul, de três condições que fazem brotar grandes idéias:
oportunidade de mercado, concorrência forte e ambiente tecnológico.
O primeiro protótipo de carro bicombustível foi desenvolvido nos Estados Unidos,
em 1988, e seria movido a uma mistura de gasolina e uma variante de metanol
obtida do milho. O equipamento-chave do automóvel era um sensor físico que
detectava as porcentagens dos dois combustíveis da mistura, para que o motor se
adaptasse instantaneamente. Foi justamente esse artefato – o sensor – que
encareceu o produto a ponto de torná-lo inviável comercialmente. No ano
seguinte, no Brasil, o abastecimento de álcool entrou em crise. Para piorar as
coisas, o presidente Fernando Collor cortou os subsídios ao setor açucareiro,
provocando uma alta do preço do combustível derivado da cana. Os infelizes
proprietários de carros a álcool acorreram às oficinas para converter seus
motores à velha e boa gasolina. O consumidor brasileiro tinha um problema.
Havia dois tipos de combustível disponíveis, mas ele não podia optar sempre
pelo mais barato, já que o preço de ambos flutuava na esteira das turbulências
econômicas. Comprar um automóvel a álcool ou a gasolina era como um casamento
sem possibilidade de divórcio. Foi nesse ambiente que um grupo de engenheiros da
indústria de componentes automotivos Bosch, multinacional de origem alemã
sediada em Campinas, resolveu ressuscitar o projeto do flex. Eles achavam que
um veículo assim teria mercado num ambiente de incerteza em que já havia uma
infra-estrutura do álcool montada. Estava estabelecida a primeira condição para
a inovação: a oportunidade de ganhar dinheiro a partir de uma demanda do
mercado.
Numa era de tecnologia altamente especializada, raramente a inovação é obra de
um único cérebro. Foi o caso do bicombustível. A Bosch escalou um time de 35
especialistas nas áreas de química, informática e mecânica, coordenados pelo
engenheiro Erwin Franieck. "Foram várias noites em claro e fins de semana
trabalhando", conta ele. O ovo de Colombo foi detectar as quantidades de
gasolina e álcool a partir de um sensor que os carros já possuíam. Localizado
no escapamento, esse sensor mede a quantidade de oxigênio e faz parte do
desenho dos automóveis desde que se tornou obrigatório controlar a quantidade
de poluentes lançados na atmosfera. Era só adaptá-lo para a nova função, já que,
pela quantidade de oxigênio, é possível saber a proporção entre gasolina e
álcool no tanque. Como essa medição é feita a posteriori, ou seja, depois de o
carro estar ligado, seria necessário um software rapidíssimo que processasse
essa informação e a enviasse ao motor, para que ele se adaptasse ao combustível.
A Bosch desenvolveu também esse programa de computador e, em 1994, criou um
protótipo de carro flex.
Houve, no entanto, grande resistência das montadoras a adotar o novo produto.
Por duas razões. O custo ainda era superior ao do veículo a gasolina e havia
uma rejeição do público brasileiro, por causa da ressaca da experiência com o
álcool, no fim dos anos 80. Entra aí o segundo fator da inovação: a competição
acirrada. O coração do carro flex é um software que fica no computador do carro.
Esse software é vendido às montadoras pelas empresas que fabricam o equipamento
de injeção eletrônica. Nessa área, a Bosch não estava sozinha. Tinha duas
concorrentes no mercado brasileiro: a Magneti Marelli, do grupo Fiat, e a
Delphi, do grupo GM. A primeira está localizada em Hortolândia, também na região
de Campinas, e a segunda em Piracicaba, 70 quilômetros a oeste. No fim dos anos
90, a Magneti Marelli começou a desenvolver softwares para o carro flex. A
Delphi iniciou a pesquisa em 2000, ano em que os engenheiros da Magneti Marelli
criaram um algoritmo que calculava a composição do combustível com base nas
informações colhidas pelos diversos sensores que os motores dos carros
normalmente trazem. "Aumentamos a precisão do sistema sem elevar o custo", diz
o engenheiro Gino Montanari, diretor da área de pesquisa da empresa. O empurrão
final para que a tecnologia saísse do laboratório e chegasse ao mercado veio do
governo Fernando Henrique, que, em agosto de 2002, contemplou o sistema flex
com a mesma isenção de impostos do carro a álcool.
O terceiro fator da inovação é o ambiente tecnológico. Não é por acaso que as
três empresas que fornecem o software do flex às montadoras se situam na região
de Campinas. A cidade se tornou um pólo de alta tecnologia, a ponto de seu
entorno ser apelidado de Vale do Silício Brasileiro. Lá prospera a inovação
impulsionada pela demanda de mercado, da qual o carro bicombustível é o caso
mais exuberante. Há outros. Por exemplo, a empresa Ecobrisa desenvolveu um
sistema de ventilação alternativo ao ar-condicionado – o invento tem a vantagem
de fazer circular o ar e aumentar a umidade, promovendo uma refrigeração natural
a custo bem mais baixo. Existe, no entanto, outro tipo de inovação. É a
tecnologia de ponta, na fronteira do conhecimento, que necessita de investimento
pesado em pesquisa para se desenvolver. Inovações assim fizeram a fama do Vale
do Silício. Campinas já tem cérebros capazes de criar tecnologia de ponta, mas
o custo do dinheiro e a burocracia brasileira emperram seu desenvolvimento –
tanto que alguns dos jovens empresários da região sonham em emigrar para o Vale
do Silício original.
"Os carros brasileiros usam uma tecnologia que permite que funcionem tanto com
gasolina quanto com álcool. O papel de governos como o nosso é incentivar esse
tipo de inovação, de forma a nos tornar menos dependentes de energia importada." A frase acima, dita na semana passada, é de George W. Bush, presidente dos
Estados Unidos, país que lidera a revolução tecnológica mas importa 60% do
combustível que consome. A sentença de Bush dá idéia da imensa repercussão
internacional de uma tecnologia brasileira: o automóvel bicombustível, também
conhecido como "flex", de flexível. A palavra flex está na boca de democratas e
republicanos, suecos e indianos, japoneses e chineses. No Congresso americano,
a senadora Hillary Clinton ecoou os elogios de Bush.
A Índia, o segundo maior produtor mundial de cana-de-açúcar, enviou cientistas
ao Brasil para estudar o projeto. Uma montadora da China – nação que também enviou cientistas ao Brasil – acaba de encomendar um projeto de carro bicombustível à Magneti Marelli, empresa sediada no interior paulista que é uma das responsáveis pelo desenvolvimento da tecnologia. Suécia, Japão e Canadá têm planos de misturar o álcool à gasolina para cumprir as metas do Protocolo de Kioto, já que a mescla é menos poluente do que o combustível fóssil em estado puro. Há, assim, um imenso mercado externo potencial para o novo tipo de automóvel. No presente, existe uma limitação: a falta de estrutura de abastecimento de álcool na maior parte dos países, a começar pelos Estados Unidos. No Brasil, onde metade dos 30.000 postos é equipada com bombas de álcool, o bicombustível reina. Em dezembro passado, sete de cada dez veículos vendidos no país já eram do tipo flex.
Não há prosperidade econômica sem inovação, ensina o professor Michael Porter, da Universidade Harvard, o economista que melhor entendeu os mecanismos da competição no mundo globalizado. Consoante com essa teoria, a saga do Brasil na busca da auto-suficiência em combustíveis fósseis e na consolidação do álcool como fonte alternativa de energia pode ser narrada de inovação em inovação. O país tem o etanol mais barato do mundo graças ao desenvolvimento, por mecanismos genéticos, de uma variedade de cana mais rica em sacarose. Na área de combustíveis fósseis, as inovações brasileiras na extração de petróleo em águas profundas foram exportadas para quase toda as nações que tiram óleo do mar, da Nigéria à Noruega. Sem os avanços tecnológicos, o Brasil produziria apenas 30% do petróleo de que necessita e teria de importar o resto. Não por acaso, a Petrobras é a instituição brasileira que mais registra patentes por ano. Em segundo lugar vem a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Toda a tecnologia do carro bicombustível foi criada no cinturão de alta tecnologia que se desenvolveu nas
imediações da cidade do interior paulista. Foi uma rara conjunção, no Hemisfério
Sul, de três condições que fazem brotar grandes idéias: oportunidade de mercado,
concorrência forte e ambiente tecnológico.
O primeiro protótipo de carro bicombustível foi desenvolvido nos Estados Unidos,
em 1988, e seria movido a uma mistura de gasolina e uma variante de metanol
obtida do milho. O equipamento-chave do automóvel era um sensor físico que
detectava as porcentagens dos dois combustíveis da mistura, para que o motor se
adaptasse instantaneamente. Foi justamente esse artefato – o sensor – que
encareceu o produto a ponto de torná-lo inviável comercialmente. No ano
seguinte, no Brasil, o abastecimento de álcool entrou em crise. Para piorar as
coisas, o presidente Fernando Collor cortou os subsídios ao setor açucareiro,
provocando uma alta do preço do combustível derivado da cana. Os infelizes
proprietários de carros a álcool acorreram às oficinas para converter seus
motores à velha e boa gasolina. O consumidor brasileiro tinha um problema.
Havia dois tipos de combustível disponíveis, mas ele não podia optar sempre
pelo mais barato, já que o preço de ambos flutuava na esteira das turbulências
econômicas. Comprar um automóvel a álcool ou a gasolina era como um casamento
sem possibilidade de divórcio. Foi nesse ambiente que um grupo de engenheiros
da indústria de componentes automotivos Bosch, multinacional de origem alemã
sediada em Campinas, resolveu ressuscitar o projeto do flex. Eles achavam que
um veículo assim teria mercado num ambiente de incerteza em que já havia uma
infra-estrutura do álcool montada. Estava estabelecida a primeira condição para
a inovação: a oportunidade de ganhar dinheiro a partir de uma demanda do
mercado.
Numa era de tecnologia altamente especializada, raramente a inovação é obra de
um único cérebro. Foi o caso do bicombustível. A Bosch escalou um time de 35
especialistas nas áreas de química, informática e mecânica, coordenados pelo
engenheiro Erwin Franieck. "Foram várias noites em claro e fins de semana
trabalhando", conta ele. O ovo de Colombo foi detectar as quantidades de
gasolina e álcool a partir de um sensor que os carros já possuíam. Localizado
no escapamento, esse sensor mede a quantidade de oxigênio e faz parte do
desenho dos automóveis desde que se tornou obrigatório controlar a quantidade
de poluentes lançados na atmosfera. Era só adaptá-lo para a nova função, já que,
pela quantidade de oxigênio, é possível saber a proporção entre gasolina e
álcool no tanque. Como essa medição é feita a posteriori, ou seja, depois de o
carro estar ligado, seria necessário um software rapidíssimo que processasse
essa informação e a enviasse ao motor, para que ele se adaptasse ao combustível.
Houve, no entanto, grande resistência das montadoras a adotar o novo produto.
Por duas razões. O custo ainda era superior ao do veículo a gasolina e havia
uma rejeição do público brasileiro, por causa da ressaca da experiência com o
álcool, no fim dos anos 80. Entra aí o segundo fator da inovação: a competição
acirrada. O coração do carro flex é um software que fica no computador do carro.
Esse software é vendido às montadoras pelas empresas que fabricam o equipamento
de injeção eletrônica. Nessa área, a Bosch não estava sozinha. Tinha duas
concorrentes no mercado brasileiro: a Magneti Marelli, do grupo Fiat, e a
Delphi, do grupo GM. A primeira está localizada em Hortolândia, também na
região de Campinas, e a segunda em Piracicaba, 70 quilômetros a oeste. No fim
dos anos 90, a Magneti Marelli começou a desenvolver softwares para o carro
flex. A Delphi iniciou a pesquisa em 2000, ano em que os engenheiros da Magneti
Marelli criaram um algoritmo que calculava a composição do combustível com base
nas informações colhidas pelos diversos sensores que os motores dos carros
normalmente trazem. "Aumentamos a precisão do sistema sem elevar o custo", diz
o engenheiro Gino Montanari, diretor da área de pesquisa da empresa. O empurrão
final para que a tecnologia saísse do laboratório e chegasse ao mercado veio do
governo Fernando Henrique, que, em agosto de 2002, contemplou o sistema flex
com a mesma isenção de impostos do carro a álcool.
O terceiro fator da inovação é o ambiente tecnológico. Não é por acaso que as
três empresas que fornecem o software do flex às montadoras se situam na região
de Campinas. A cidade se tornou um pólo de alta tecnologia, a ponto de seu
entorno ser apelidado de Vale do Silício Brasileiro. Lá prospera a inovação
impulsionada pela demanda de mercado, da qual o carro bicombustível é o caso
mais exuberante. Há outros. Por exemplo, a empresa Ecobrisa desenvolveu um
sistema de ventilação alternativo ao ar-condicionado – o invento tem a vantagem
de fazer circular o ar e aumentar a umidade, promovendo uma refrigeração
natural a custo bem mais baixo. Existe, no entanto, outro tipo de inovação. É a
tecnologia de ponta, na fronteira do conhecimento, que necessita de
investimento pesado em pesquisa para se desenvolver. Inovações assim fizeram a
fama do Vale do Silício. Campinas já tem cérebros capazes de criar tecnologia
de ponta, mas o custo do dinheiro e a burocracia brasileira emperram seu
desenvolvimento – tanto que alguns dos jovens empresários da região sonham em
emigrar para o Vale do Silício original.
É o caso do goiano Iron Daher, 33 anos, e do paulista Dario Thober, 37. O
engenheiro Iron é o inventor de um software de reconhecimento de impressões
digitais. O método desenvolvido por ele foi considerado nos Estados Unidos um
dos dez melhores do mundo na especialidade, concorrendo com gigantes como NEC,
Motorola e Raytheon. A empresa de Iron, a Griaule, funciona numa casa de sete
cômodos em Campinas e tem apenas doze funcionários. Apesar do tamanho modesto,
já fornece o software que é responsável por toda a identificação para fins
policiais da Costa Rica. Além disso, exporta tecnologia para os Estados Unidos,
o México e o Chile. Iron acaba de abrir uma subsidiária de sua empresa na
Califórnia e pretende se mudar para lá ainda neste ano. "Comparando os dois
mercados, o americano é uma floresta e o brasileiro um deserto, onde os cactos
– o governo e as grandes empresas – sugam todo o dinheiro. Só lá teremos
condições de florescer", diz ele. Dario Thober também abriu uma filial no Vale
do Silício, mas tem outro projeto. Sua meta é capitalizar-se prestando serviços
para grandes companhias americanas e, com o dinheiro, fazer pesquisa pura no
Brasil. A empresa que criou, a Wernher von Braun, já registrou 22 patentes,
entre elas um novo modelo de telefone via internet. O alemão que levou o homem
à Lua e dá nome à empresa é o ídolo de Dario: "Ele dizia que nenhum sonho vai
para a frente sem dinheiro, e é esse exemplo que seguimos".
No Vale do Silício, as filiais da Griaule e da Von Braun se enquadrarão naquilo
que os californianos chamam de startups – ou seja, pequenas empresas que criam,
patenteiam e lançam produtos de alta tecnologia. Elas se desenvolvem em torno
de universidades voltadas para a pesquisa e que emulam o espírito empreendedor
dos alunos. No Brasil, a instituição que chega mais perto desse modelo
americano é a Unicamp. Lá, o empreendedorismo é incentivado – desde a graduação,
os alunos têm cursos sobre como criar e administrar seus próprios negócios. "Eu
nunca quis ser empregado, e a cultura de dentro da universidade me estimulou a
caminhar com as próprias pernas", diz Fábio Póvoa, um dos donos da Compera,
empresa que desenvolve softwares para várias áreas da indústria, entre elas a
de telefonia móvel. Seu negócio começou na incubadora da universidade, e hoje a
Compera tem 55 funcionários, entre eles trinta pesquisadores de ponta. "Não
adianta gerar patentes e conhecimento se não devolvermos isso à sociedade de
alguma forma", avalia o engenheiro José Tadeu Jorge, reitor da universidade.
"Por isso estamos felizes em ver o canteiro de empresas que surgiu aqui ao
lado."
Na opinião dos empresários da região, o desenvolvimento de softwares sob
encomenda pode ser a grande oportunidade de gerar dinheiro para financiar
pesquisa pura no Brasil, principalmente se o país conseguir entrar no mercado
dos Estados Unidos. "Hoje, quem faz isso para os americanos é a Índia",
constata César Gon, 34 anos, diretor de uma das mais bem-sucedidas empresas da
região, a Ci&T, que tem 300 funcionários e presta serviços na área para
gigantes como a Petrobras e o BankBoston. "Temos tudo para concorrer com os
indianos nesse mercado, desde uma cultura mais parecida com a americana até a
vantagem de estar praticamente no mesmo fuso horário dos Estados Unidos."
Confiante nessa idéia, a Ci&T também abriu uma subsidiária naquele país,
localizada na cidade de Filadélfia. É saudável que não se pense no Estado como
a principal fonte financiadora de pesquisa. Num país em que é costume esperar
tudo do governo, os jovens que estão na vanguarda da economia inovam ainda na
mentalidade.
O fim das ditaduras movidas a petróleo
A era do petróleo fácil está acabando. E, com ela, a festa dos ditadores
movidos a petróleo. No século passado, líderes sanguinários como o iraquiano
Saddam Hussein extraíam petróleo com investimentos mínimos em tecnologia, pois
as reservas eram fartas. Não é mais assim. A curva de produção atingiu seu auge.
A curto prazo, isso beneficia os países produtores – e, com eles, líderes
autoritários e malucos como o venezuelano Hugo Chávez e o iraniano Mahmoud
Ahmadinejad. Isso porque a falta de petróleo pressiona para cima os preços
internacionais. Vão sobrar mais petrodólares para que comprem armas, perturbem
países vizinhos e massacrem democracias. Num prazo maior, no entanto, essa
festa deve acabar. O Relatório de Estatísticas sobre Energia Mundial da BP
(British Petroleum) calcula que as reservas remanescentes no Irã vão durar 83,6
anos; as da Venezuela, setenta anos; as da Líbia, 66 anos; e as da Rússia, 21,3
anos. São prazos muito longos? Sim, mas no decorrer desse período a extração do
petróleo remanescente vai exigir técnicas refinadas, incompatíveis com o atraso
tecnológico típico de regimes autoritários e fanfarrões. Enquanto isso, diversas
fontes alternativas de energia – como o álcool brasileiro – deverão florescer
em países democráticos. Será o fim dos petroditadores.
(Veja, 30/01/06)