Antártida: Brasileiros avançam em conhecimentos
2006-02-02
A sobrevivência é o primeiro desafio quando se pensa em uma expedição para a
Antártica. No manto de gelo que cobre 14 milhões de km², a temperatura média
anual é inferior a 50 graus negativos e não há vida além de microorganismos,
liquens e raros musgos. Mas é lá que os cientistas procuram respostas sobre as
mudanças ambientais que preocupam o planeta.
Os anos de 2007 e 2008 devem marcar importantes avanços nesse conhecimento. É
quando acontece o IV Ano Polar Internacional, um fórum científico dedicado à
Antártica e ao Ártico. Pesquisadores brasileiros vêem o encontro como uma
chance de ampliar a presença nacional no continente gelado.
O Programa Antártico Brasileiro (Proantar) existe há mais de 20 anos, mas as
pesquisas do país estão restritas às áreas periféricas dessa massa de gelo. A
Estação Antártica Comandante Ferraz está a 500 km da linha imaginária do
Círculo Polar Antártico. A unidade fica na Ilha Rei George, no Arquipélago
Shetland, a 3.100 km do ponto mais ao sul do Brasil.
“Temos que marcar o ano polar no Brasil com as primeiras missões dentro da
Antártica”, afirma o glaciologista Jefferson Cardia Simões, do Núcleo de
Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Ele coordena a participação brasileira em avançados programas
internacionais de investigações do gelo antártico. Por exemplo, na estação
russa Vostok, onde já foram feitas perfurações com 3.750 metros de
profundidade para retirada de registros químicos que, como um arquivo vivo,
revelam a evolução do clima e da atmosfera da Terra em milhares de anos.
A grande aventura
Quando Cardia fala em entrar na Antártica significa realizar uma das tarefas
que mais gosta - os acampamentos. “A grande aventura se dá dentro do
continente”, diz. Na opinião dele, as experiências nos laboratórios da Estação
Comandante Ferraz são como férias em hotel cinco estrelas. Nos navios de
cabines aconchegantes que transportam cientistas para expedições no oceano
Austral ainda há um pouco de adrenalina, em dias de tempestades e ondas altas.
Mas a verdadeira expedição à Antártica é nos comboios que seguem em direção ao
pólo. Por isso, a equipe brasileira planeja acampamentos e longas caminhadas
de madrugada, em que vão enfrentar tempestades e precisar de perícia para não
cair nas profundas fendas escondidas sobre a neve.
Jefferson Cardia tem 47 anos e esteve em 15 expedições no Ártico e na
Antártica. Ele foi o primeiro brasileiro a percorrer 1.150 km entre as
montanhas Patriot e o Pólo Sul geográfico, o ponto central do continente.
Viajou em comboio com uma equipe de doze chilenos na mais avançada missão
latino-americana na Antártica, entre outubro de 2004 e janeiro do ano passado,
num total de 2.300 km (ida e volta), a mesma distância que separa Brasília e
Belém. Enfrentou a sensação térmica de 52 graus negativos e adquiriu
experiência para as missões brasileiras que pretende realizar por conta do Ano
Polar.
O Nupac é o único grupo nacional com especialistas em acampamentos em geleiras.
Nas barracas, os pesquisadores enfrentam o lado agressivo da natureza. Mesmo
nas regiões costeiras. “Geralmente somos desembarcados pelos helicópteros que
levam às vezes uma ou duas toneladas de equipamentos, alimentos para o dobro
do período que pretendemos ficar, motos de neve e trenós. Usamos barracas
polares preparadas para enfrentar ventos e temos uma alimentação com 3.500 a
4.000 calorias diárias, por causa da perda de energia pelas mãos, pés e rosto”,
conta Jefferson Cardia.
Os cientistas brasileiros estão em campanha junto ao governo federal e a
iniciativa privada para ampliar as pesquisas na Antártica. Usam o Ano Polar
como barganha. Afinal, cerca de 40 países vão enviar expedições para examinar
os processos ambientais no continente e sua influência no resto do mundo. O
Brasil não pode ficar de fora. Não só pela ciência, mas por motivos
estratégicos. Pelos acordos internacionais, não estar na Antártica significa
não ter direito a voto em decisões globais sobre os destinos da região, que
tem influencia direta sobre o clima e meio ambiente nacional.
Mudanças – A Antártica se espalha mais de 13 milhões de km², é 99%
coberta por gelo e concentra 70% da água potável da Terra. Sabe-se que as
friagens que em curtos períodos do inverno atingem a Amazônia são formadas no
oceano que circunda o continente. O gelo antártico é o principal sorvedouro de
energia (heat sink) do planeta e, portanto, um dos principais controladores do
sistema climático. O oceano Austral tem 36 milhões de km² e suas águas estão
relacionadas ao processo de formação de correntes marinhas. Por isso, a região
também tem especial influência sobre nutrientes do mar brasileiro.
Segundo o cientista, nos últimos 12 anos cerca de 15 mil km² de gelo se
desprenderam de áreas periféricas da Antártica. Cardia diz que o derretimento
não é significativo, pois o continente é imenso e permanece estável. Mas o
degelo é indício do aquecimento global e preocupa. Os pesquisadores querem
saber se esse processo é contínuo, pois a alteração do nível do mar pode ter
conseqüências ambientais, econômicas e sociais catastróficas.
Nos últimos 20 anos, pesquisadores brasileiros observaram redução da camada
protetora de ozônio da atmosfera, a desintegração parcial do gelo na periferia
do continente e a sensibilidade da Antártica às mudanças ambientais. A partir
de 2002, passaram a investigar especificamente as inter-relações da região com
a América do Sul, já que a Antártica interfere nas condições ambientais do
hemisfério austral. “Para o Rio Grande do Sul estão previstos distúrbios no
padrão climático, como distribuição de chuvas e aumento de temperatura”, diz
Cardia.
Os cientistas brasileiros têm o compromisso de voltar das expedições com
resultados, pois a parte científica do Proantar custa anualmente entre R$ 1,6
milhão e R$ 2 milhões anuais. E os gastos logísticos são no mínimo cinco vezes
maiores. O Brasil é líder em pesquisas científicas na América Latina, mas
investe cada vez menos na Antártica. Entre 2002 e 2005, os investimentos foram
de R$ 5 milhões para toda a atividade científica, envolvendo 20 instituições e
mais de 120 cientistas.
Fascínio – Mas nem tudo é trabalho e preocupação. Os cientistas que se
dedicam a esse ambiente inóspito ficam fascinados por sua beleza. “Por mim, eu
nunca iria embora da Antártica”, afirma sem hesitar a carioca Rosemary Vieira,
de 39 anos, que faz doutorado em Geologia Marinha na UFRGS. “Lá nunca um dia é
igual ao outro. Um dia pode estar um céu limpo e no outro a gente não
conseguir sair da barraca por causa de vento e neblina”, conta ela.
A pesquisadora esteve na Antártica durante 25 dias entre 2003 e 2004, já com
bastante experiência em pesquisas a 4.700 metros nas cordilheiras andinas, ao
norte do Chile e ao sul da Patagônia. Está acostumada a dormir embalada por
rajadas de ventos. E a ficar quase um mês sem banho. Os pesquisadores se
defendem com lencinhos úmidos e líquidos diversos. “Passamos o Ano Novo na
Estação Comandante Ferraz com um banho delicioso de chuveiro. Consegui lavar
meus longos cabelos, que estavam há tantos dias embaixo do gorro que não
entrava nenhum pente", ela lembra.
Agruras que têm compensação. “Uma das maiores emoções foi ver colônias de
pingüins com 10 mil a 20 mil aves. São amigáveis, bonitos e fedorentos!",
exclama. A costa do continente é habitada por sete espécies de pingüins. O
menor tem pouco mais de 40cm e o maior é o chamado Imperial, com 1,20m e quase
50 kg. A fauna é rica, com focas e andorinhas que migram do Ártico, no Pólo
Norte. Além de surpreendentes espécies de peixe, como o peixe-do-gelo, que tem
sangue transparente pela falta de hemoglobina e capacidade anticoagulante.
A Antártica recebe pouco mais de mil pesquisadores do mundo no inverno e até 5
mil no verão, entre dezembro e fevereiro. Alguns ficam durante poucos dias,
mas há quem fique até dois anos no continente. No ano passado, 27 mil turistas
foram levados principalmente por agências européias e norte-americanas. Mas
eles não saem dos navios. Ou, no máximo, fazem passeios curtíssimos.
Geralmente são idosos que pagam até 30 mil dólares por pacotes turísticos de
dois ou três dias.
Perigos e dieta – As caminhadas exigem perícia. Um dos maiores riscos
são as famigeradas fendas, buracos profundos escondidos em camadas de neve.
Outro cuidado é com a desidratação, que atinge o organismo lentamente, provoca
um sono inesperado e pode levar à morte. Sentir frio é sinal de perigo: a
hipotermia é constatada quando o corpo fica abaixo dos 35 graus.
Já a dieta dos pesquisadores não é tão mortal como se imagina. A história de
que se mantêm apenas com alimentos desidratados e barras de chocolate é
fantasia. É verdade que ficam sem ver saladinhas durante o período em que
estão no continente, mas comem bem.
“A gente leva comida congelada a vácuo. Comemos de tudo, até estrogonofe. E
bifes nos acampamentos. Os argentinos levam a melhor carne do mundo para a
Antártica”, relata, sorridente, o pesquisador Jefferson Cardia Simões. O
inconveniente é ficar virando o botijão de gás de cozinha, que insiste em
congelar.
(Cristina Ávila, O Eco, 28/01/06)
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