Brasil pode ganhar mais duas unidades de conservação marinha
2006-02-02
Se tudo correr bem, o Brasil ganhará em breve duas novas unidades de
conservação marinhas: a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais, com
112,5 mil hectares, e, contíguo a ela, o Refúgio de Vida Silvestre de Santa
Cruz, com 32,5 mil hectares. A APA será, de longe, a maior unidade de
conservação capixaba. E o Refúgio de Santa Cruz, a terceira maior reserva
marinha de proteção integral do país, atrás apenas de Abrolhos e Atol das
Rocas.
Ambas ficam no litoral norte do Espírito Santo e têm como área central o
bucólico balneário de Santa Cruz, com cerca de 8 mil habitantes. Trata-se de
uma das primeiras vilas jesuítas do Brasil, fundada na primeira metade do
século XVI às margens do rio Piraquê-açu e seu enorme manguezal, o quinto
maior da América Latina.
O projeto já foi enviado para Brasília e aguarda a lenta tramitação
característica desse período pré-carnaval. O pior já passou: numa briga que
foi parar nas altas esferas da Justiça e durou sete anos, organizações locais
conseguiram impedir uma grande mineradora de se instalar na região. Agora,
falta resolver a demanda dos pescadores.
Eles apóiam a APA integralmente, pois ela vai permitir apenas a pesca
artesanal. Os barcos de fora, especialmente aqueles que vêm do Rio de Janeiro
e Santa Catarina, terão que buscar outros portos. O conflito que ainda existe
é com relação ao Refúgio de Vida Silvestre, que proíbe qualquer tipo de pesca.
Prestes a perder um bocado de mar, os pescadores esperam receber indenização
pelo que deixarão de lucrar com os peixes da área. Seus líderes tentam adotar
discurso conciliatório. “Se o cachorro é mal-tratado, ele vai pro vizinho.
Assim é o peixe. Se ele ficar mais seguro dentro do Refúgio, vai haver mais
peixe lá dentro”, compara Manoel Bueno dos Santos, presidente da Associação de
Pescadores de Jacaraípe e um dos porta-vozes das cerca de 5 mil famílias
envolvidas diretamente com pesca nos municípios de Serra, Fundão e Aracruz.
Mas o próprio Manoel endossa ameaças de protesto caso as negociações com o
Ibama não seja bem-sucedidas.
Custo e benefício – Tradicionalmente uma das áreas mais generosas para pesca no país, o norte
capixaba sofre redução drástica da oferta de peixe. Os pescadores têm
consciência de que, a médio prazo, a moratória tornará a pescaria mais farta
nos arredores do Refúgio. A questão é saber quanto tempo precisarão esperar.
Segundo o oceanólogo Roberto Sforza, analista ambiental do Ibama, é muito
provável que num prazo de cinco anos aumente o número e tamanho dos peixes
dentro do Refúgio de Santa Cruz. Dentro da APA, por sua vez, a quantidade deve
permanecer a mesma – o que pode ser interpretado como ganho, pois a tendência
hoje é de queda nos estoques – e provavelmente haverá aumento do tamanho dos
peixes e o retorno de algumas espécies que desapareceram devido à sobrepesca.
“Tudo isso vai resultar em melhoria da renda dos pescadores a médio e longo
prazo”, aposta Roberto. Hoje, ela está em torno de 2 salários mínimos.
Enquanto isso não acontece, a conta é negativa: os pescadores terão dezenas de
pesqueiros a menos para trabalhar. Não é possível afirmar com certeza quantos
pontos de pesca estão dentro da área do Refúgio, ou seja, o tamanho exato da
restrição, muito menos quantos ou mesmo se haverá pescadores que perderão sua
fonte de subsistência. A maioria tem em média cinco pesqueiros pra trabalhar,
portanto é possível que aqueles proibidos sejam substituíveis. Mas, diante da
incerteza, os pescadores temem prejuízos. “A preocupação é procedente. O
Ministério de Meio Ambiente e o Ibama estão sensíveis a isso”, afirma Sforza.
Tanto que quase 50 pontos de pesca foram retirados da proposta inicial do
Refúgio. O traçado foi modificado ao longo do tempo até chegar ao desenho
atual, que, segundo o oceanólogo, conseguiu equilibrar a maior biodiversidade
com o menor número possível de pesqueiros importantes.
Precedente e ameaças – Projeto pronto, trâmite em Brasília iniciado, agora é preciso providenciar
estudos que comprovem se realmente haverá pescadores prejudicados. Em caso
positivo, os defensores das unidades de conservação querem abrir um precedente
no Ibama para compensar essas famílias, coisa que nunca aconteceu em áreas
protegidas marinhas.
O Parque Nacional da Lagoa do Peixe, na costa do Rio Grande do Sul, é a
principal referência a inspirar soluções no mar de Santa Cruz. “Os pescadores
prejudicados poderão trabalhar no próprio Refúgio de Vida Silvestre, em alguma
atividade de conservação ou educação ambiental, ou mesmo continuar praticando
a pesca, mediante um termo de compromisso com o Ibama”, antecipa Sforza.
A próxima reunião entre as associações e colônias de pesca, o Ibama e as
prefeituras deve acontecer somente depois do carnaval. Até lá, os pescadores
continuam mobilizados, estão acionando a Confederação Nacional de Pesca e
estudam muito sobre o assunto. Ameaçam invadir prédios públicos se não forem
atendidos e impedir a criação do Refúgio se não estiverem satisfeitos com os
termos do acordo. “E se ele for criado, a gente não vai respeitar a proibição
de pescar”, avisa Manoel Bueno dos Santos.
Os ambientalistas de Santa Cruz também continuam mobilizados, cientes de que é
preciso encontrar uma solução para os pescadores. Por mais que ainda existam
riscos, eles sabem que a situação está bem melhor do que há oito anos, quando
a luta começou. Na ocasião, o inimigo nem de longe queria ouvir falar de
conservação ambiental.
Ação entre amigos – Dez viagens a Brasília, sete processos na Justiça, inúmeros manifestos,
filmagens, fotos e reuniões. Um movimento que nasceu em 1998, ultrapassou as
divisas do Estado e terminou com a vitória dos ambientalistas contra a
prefeitura e uma grande indústria. A vila de Santa Cruz pode se orgulhar de
ter poupado da exploração econômica uma de suas maiores riquezas naturais: as
algas calcáreas.
Tudo começou com um grupo de amigos veranistas que queria regularizar a
situação de suas embarcações de lazer junto à Capitania dos Portos.
Organizaram um curso gratuito para 110 pilotos amadores e, no almoço de
entrega das habilitações, surgiu a idéia de criar uma ong para cuidar do rio
Piraquê-açu. Em junho daquele ano, foi fundada a AMIP – pequena sigla para um
grande nome: Associação dos Amigos do Rio Piraquê-Açu em Defesa da Natureza e
do Meio Ambiente (AMIP).
Guido Martins, primeiro e atual presidente da ong, é mineiro de São Domingos
do Prata. Freqüenta Santa Cruz desde 1963, quando vinha de trem com os amigos
até Vitória e, de lá, enfrentava quase quatro horas em estrada de terra para
curtir o verão na praia. Logo que se aposentou, transformou a paixão de tantos
verões em lar. Mudou-se há dez anos para Santa Cruz com a esposa Zeni
Magalhães, também mineira, antiga veranista do lugar e batalhadora de mão
cheia. Ela e a amiga Tetê Vellozo, capixaba da capital e freqüentadora de
Santa Cruz há mais de 40 anos, protagonizaram a primeira mobilização do futuro
movimento pró-Santa Cruz.
Semanas depois da criação da AMIP, Tetê foi convidada para um jantar num
restaurante requintado do balneário e estranhou a recomendação de não
comunicar nada aos amigos Zeni e Guido. É claro que foi imediatamente lhes
contar o ocorrido. Descobriram que o tal jantar era um pretexto para
apresentar o projeto da indústria Thotham para extrair algas calcáreas do mar
de Santa Cruz e usá-las como matéria-prima para fertilizantes e cosméticos.
Foram à internet pesquisar. Descobriram sobre a riqueza de algas calcáreas na
região e vislumbraram a catástrofe sócio-ambiental que aconteceria caso a
empresa se instalasse. Bancos de algas calcárias (foto) são ecossistemas que,
associados aos recifes de corais, contribuem para a reprodução de diversas
espécies marinhas, e têm papel fundamental na fixação de gás carbônico. As
maiores formações têm no mínimo 300 anos. A de Santa Cruz é a mais importante
do país, com mais de 80 espécies de algas identificadas, e uma dos maiores do
mundo. Sem falar nas centenas espécies de moluscos, crustáceos, esponjas e
peixes que dependem do ecossistema. A Thotham pretendia dragar nada menos que
50 mil toneladas de calcário por mês.
Guerra calcárea – Apavorados, Guido, Zeni e Tetê convidaram todos os ambientalistas que
conheciam, em ongs, universidades e órgãos de governo, e armaram um batalhão
verde para ir ao restaurante na hora marcada. Descobriram que o jantar era na
verdade uma audiência pública, que pretendia “provar” que a empresa estava se
instalando com pleno apoio da comunidade.
Só depois da audiência eles entenderam que a Thotham era a empresa que há
algum tempo vinha distribuindo cestas básicas, promovendo shows e bancando
reformas nos prédios da prefeitura de Aracruz, de quem, aliás, já tinha total
apoio. O prefeito Luiz Carlos Gonçalves (PSDB), conhecido como Cacá, chegou a
“doar” para a Thotham um terreno de 57 hectares dentro de uma Reserva
Ecológica de proteção dos manguezais.
Àquela altura, era difícil acreditar que seria possível impedir a instalação
da indústria milionária. Até porque havia gente na própria comunidade que
preferia ficar do lado da empresa, de olho nas promessas de emprego. Os
diretores da AMIP eram ridicularizados em jornais locais, chamados de
“ecochatos”, chegaram a receber ameaças através de cartas anônimas.
Funcionários da prefeitura que os apoiavam foram demitidos.
Mas o movimento crescia e agregava gente que trabalhava em projetos isolados.
Como a ORCA (Organização Consciência Ambiental), em sua defesa do raro
boto-cinza ( Sotalis fluviatis ) e a Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi,
dirigida pelo biólogo André Ruschi, filho do famoso naturalista, com os
estudos mais antigos sobre o fundo do mar no norte do Espírito Santo, até
então praticamente desconhecidos. “Ia levar o resto da minha vida para trazer
essas informações a público”, conta André. As ações contra a Thotham, pondera,
fez com que tudo emergisse rapidamente.
Até entidades de outros estados e nacionais, como o Projeto Baleia Franca,
entraram na campanha, que além de expulsar a Thotham passou a defender a
proteção ambiental da região. Foi assim que nasceu a proposta da APA e do
Refúgio de Vida Silvestre.
A batalha judicial durou anos. Em 2005, chegou à instância final. No início do
ano, a AMIP venceu o último processo contra a Thotham, no Supremo Tribunal de
Justiça (STJ), derrubando de vez a licença de exploração da empresa. Em
dezembro, veio mais uma conquista, que diz muito pelo seu simbolismo: a Câmara
Municipal de Aracruz aprovou projeto de lei transferindo para a Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), em comodato por 20 anos, o prédio onde
funcionava o escritório da Thotham. Será a nova base oceanográfica da UFES,
incluindo cursos de graduação, pós-graduação e ensino à distância. O projeto
para reforma já está com verba praticamente aprovada. É só questão de tempo.
Como é questão de tempo proteger definitivamente águas tão valiosas, para o
bem da pesca, do turismo e da qualidade de vida da comunidade.
(Fernanda Couzemenco, O Eco, 28/01/06)
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