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2006-02-02
Quando os europeus, na época dos grandes descobrimentos, começaram a fincar suas colônias nos trópicos, depararam-se com um ecossistema que exalava cheiro forte e – por causa de suas águas turvas, árvores com formas estranhas e solo escuro – tinha pinta meio fantasmagórica. Eram os manguezais, um sistema costeiro tropical com vegetação típica e fauna associada, ambos adaptados a uma área sistematicamente inundada por marés. Pelo odor e aspecto, os mangues foram olhados como uma versão dos pântanos da Europa e viraram sinônimo de insalubridade, foco provável de doenças e portanto inimigos declarados da humanidade. No Brasil, essa guerra assumiu ares de Santa em fins do século XIX quando, como parte das obras de modernização do espaço urbano do Rio de Janeiro levadas a cabo pelo prefeito Pereira Passos, tomou-se a decisão de erradicá-los da Baía da Guanabara.

A situação começou a mudar lá pela década de 80, no século passado. Foi por essa época que estudos sobre os manguezais mostraram que apesar do seu jeitão de brejo, eles não só não tinham nada de sujos, como serviam de suporte para uma gama diversa de microorganismos, peixes e aves. Apesar da ciência, a implicância com os mangues ainda é grande. Até na academia. O historiador ambiental Arthur Soffiati, da Universidade Federal Fluminense, conta que três biólogas que fazem mestrado na escola e têm o manguezal como objeto de estudo, simplesmente se recusam a entrar dentro dele. “Elas acham aquilo, com todo aquele lodo, repulsivo”, conta ele. Gosto, em geral, não se discute. Mas segundo um relatório divulgado em 26 de janeiro pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP) e a World Conservation Union (IUCN), o horror aos mangues nos dias de hoje beira a irracionalidade.

O estudo da ONU, que avaliou a situação de mangues e recifes de corais ao redor do mundo, reitera a importância desses dois ecossistemas para a manutenção da biodiversidade em áreas tropicais de costa. Diz que eles prestam uma série de serviços relevantes ao meio ambiente e em consequência, aos homens. Servem como filtro biológico, ajudando a fixação de material orgânico, protegem a costa de processos de erosão e o próprio mar - retendo sedimentos-, e funcionam como berçários para várias espécies, principalmente de peixes. Além disso, por conta das funções que desempenham, valem muito dinheiro. O relatório dá aos recifes de corais um valor, por quilômetro quadrado, que varia de 100 mil a seiscentos mil dólares.

Armadura contra ondas
Os manguezais valem mais, de 200 mil a 900 mil dólares por quilômetro quadrado. A turma da ONU chegou a esses valores levando em consideração os preços dos recursos naturais, da madeira à fauna, produzido pelos mangues. Em Matang, na Malásia, um único manguezal, com 400 quilômetros quadrados, serve de berçário para um pesqueiro que gera 100 milhões de dólares anuais de renda para a indústria local de pesca. Na Indonésia, um sistema de corais na costa sustenta uma indústria de turismo que gira 10 milhões de dólares por ano. A ONU recomenda cautela com essas avaliações financeiras, lembrando que a ciência de atribuição de valores ao meio ambiente ainda está na sua infância.

Mas aponta uma razão definitiva para que manguezais e recifes de corais sejam vistos como muito valiosos: eles salvam vidas. Ambos funcionam como barreiras naturais a ondas provocadas pelos ventos, função que cresce de importância na medida em que o mundo enfrenta um recrudescimento de furacões e tufões. No caso dos manguezais, ondas insufladas pela ventania chegam a perder até 75% de sua energia ao baterem neles. Mesmo em caso de ondas causadas por outros fenômenos, como aconteceu no tsunami da Ásia em dezembro de 2004, suas qualidades como colete à prova de águas foi comprovada, diz Klaus Toepfe, diretor da UNEP. Nas Maldivas, áreas atingidas pelo maremoto nas quais manguezais e recifes de corais estavam intactos sofreram danos que se restringiram a uma faixa de costa de apenas 50 metros de largura. E nelas, quase não houve vítimas.

Infelizmente, apesar de tantas razões para a humanidade tratar bem de mangues e recifes de corais, os dois ecossistemas continuam a sofrer um grau de devastação que inviabiliza seu futuro. Trinta por cento dos corais do mundo já foram perdidos e o relatório estima que se nada for feito para preservá-los, em 2030 esse índice pode chegar a 90%. No caso dos manguezais, 35% deles já foram varridos do mapa. E a pressão sobre os que restam é intensa, principalmente por conta de aterros, corte de madeira e sua conversão para operações de extração de sal e criação de camarões e crescimento populacional. Mangues e recifes de corais ocorrem em apenas 4% da área total de terra firme do planeta. Mas à sua volta, vive praticamente 1/3 da população mundial.

Burrice nacional
E recuperá-los, ou buscar substitutos artificiais para exercer suas funções tanto biológicas como de resgate, sai caro. As Maldivas investiram 10 milhões de dólares para recriar uma barreira de costa com recifes artificiais. Perto disso, a manutenção anual dos dois ecossistemas sai praticamente de graça. “Custa cerca de 775 dólares por quilômetro quadrado por ano”, disse Toepfe na coletiva em que a UNEP divulgou o estudo. O Brasil tem a obrigação de prestar muita atenção ao seu texto. Manguezal, por aqui, é um ecossistema pujante, presente em praticamente todo os 7 mil 367 quilômetros de litoral do país. “É a maior costa com manguezais em todo o mundo”, diz Sofiatti. Sua presença é marcante do Oiapoque, no Amapá, até Laguna, em Santa Catarina.

“Entre o Maranhão e o Amapá, ele chega a ser imponente”, diz Soffiati. “Lá encontram-se as árvores mais altas do mundo desse tipo de ecossistema”. Infelizmente, a situação dos manguezais na costa brasileira está muito longe de ser considerada boa. No Norte do país, segundo trabalhos da brasileira Yara Schaeffer-Novelli, por sinal amplamente citados no relatório produzido pela UNEP, apesar da pressão humana, o estado de conservação dos manguezais está estável. “De lá para baixo, a situação é de desastre”, diz Soffiati. No Nordeste, a principal ameaça são os criadouros de camarões que estão sendo plantados ao longo do litoral. No Sudeste, correm o risco de sumir sob o peso de ocupações irregulares. Em resumo, à luz do que revela o estudo da UNEP, nós brasileiros estamos dando uma de burros. Destruir manguezais como fazemos de maneira diligente há 4 séculos é não só jogar dinheiro fora, como também reduzir nossa capacidade de enfrentar eventuais catástrofes ambientais que, porventura, venham bater em nosso litoral.
(Manoel Francisco Brito, O Eco, 28/01/06)
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