Buenos Aires confia nos “cartoneros” para evitar resíduos recicláveis em aterros sanitários
2006-01-31
Os “cartoneros” (coletores informais de papel e resíduos) foram pioneiros na reciclagem em Buenos Aires, uma atividade que lhes permitiu sair da indigência. Agora, são peça fundamental para cumprir o ambicioso objetivo de “lixo zero” na cidade até 2020. Promulgada nos primeiros dias de janeiro, a Lei do Lixo Zero fixa obrigações para o governo e os três milhões de moradores da capital no sentido de reduzir a geração de lixo e promover sua separação, recuperação e reciclagem.
A lei prevê, com diversos prazos graduais, que em 14 anos nem um só resíduo reciclável chegue aos aterros sanitários, considerados pelos ambientalistas como fonte de contaminação e símbolo de um modelo esgotador de recursos naturais, que não podem ser recuperados uma vez enterrados. Os "cartoneros", os únicos que atualmente se ocupam da reciclagem de lixo, constituem um eixo fundamental da proposta. Ao seu trabalho se deve o fato de que cerca de 10% do total do lixo reciclável gerado na cidade seja efetivamente reutilizado. Segundo as últimas estimativas, em Buenos Aires são produzidas 4,5 mil toneladas de lixo por dia.
Um grupo pioneiro é o formado em torno da cooperativa El Ceibo, nome da flor nacional argentina. As 40 famílias que a integram recuperam, há seis anos, resíduos no residencial bairro portenho de Palermo. “Explicamos aos moradores como devem separar o lixo e acertamos com eles quando querem que retiremos”, contou Alfredo Ojeda, de 21 anos, integrante do El Ceibo. O grupo realiza seu trabalho de “porta em porta”: recolhe sistematicamente os materiais recicláveis das casas, leva para um centro de triagem, onde há uma seleção e, finalmente, os comercializam. São recuperadas cinco toneladas de materiais reutilizáveis por semana: papel, papelão, vidro e plástico.
Seus integrantes cumprem diferentes funções: promotores, recicladores, separadores. E, de acordo com o trabalho que fazem, recebem seu salário, que varia entre US$ 130 e US$ 300 por mês. Valores que, embora modestos, permitiram que saíssem da situação de indigência em que se encontravam. “Não tínhamos nada”, disse Cristina Lescano, fundadora e coordenadora da El Ceibo. Quando esta cooperativa começou, há seis anos, eram algumas dezenas de famílias que revolviam o lixo em busca de subsistência. “Nunca vou esquecer da primeira vez que fui vasculhar o lixo: saí toda coberta, pois tinha vergonha”, contou. Em 2001, na pior crise do país, o grupo se constituiu em cooperativa.
“É uma mudança cultural, mas estamos conseguindo. Porque, por exemplo, se um morador entrega dez garrafas a uma pessoa, elas não são dessa pessoa, pertencem à cooperativa. E isso, às vezes, é difícil de entender”, disse Lescano. No empreendimento não trabalham menores de idade, já que “não se deve levá-los para as ruas”, acrescentou a coordenadora da El Ciebo, e o trabalho é realizado somente durante o dia, e não à noite, como no caso da maioria dos catadores. Os membros do grupo vestem coletes azuis para serem identificados. “É melhor, assim os moradores não desconfiam. Antes não abriam a porta”, disse o jovem Ojeda.
Dados oficiais indicam que cerca de sete mil "cartoneros" trabalham atualmente na capital da Argentina. Apesar de haver quase nove mil registrados, acredita-se que, com a recuperação econômica do país, vários abandonaram a atividade. A lei recém-aprovada contempla a “promoção da participação de cooperativas e organizações não-governamentais na coleta e reciclagem do lixo”. Espera-se que esta lei, ao reparar o vazio legal que havia sobre o tema, consiga regular e controlar a atividade. “Vamos ajudar a formalizar essa atividade”, garantiu Marcelo Vensentini, subsecretário de Meio Ambiente do governo local. Uma regulamentação indispensável para proteger os direitos dos "cartoneros" de terem um trabalho decente e bem remunerado.
“Há máfias que são muito difíceis de controlar, que compram o material coletado pelos "cartoneros" a preço vil, o juntam em lugares clandestinos e depois o vendem”, afirmou o deputado Juan Manuel Velasco, presidente da Comissão de Ecologia do Congresso Legislativo e autor da Lei de Lixo Zero junto com a organização ecologista Greenpeace. Sobre discriminação, práticas abusivas e injustiças, os membros da cooperativa sabem muito. E também sobre tensão. “As pessoas nos perguntam se quando conseguirmos um trabalho vamos deixar de fazer isto. Respondemos que não, que isto é um trabalho e é digno”, disse Lescano.
Por Maricel Drazer, Terramérica