Projeto de conservação de lontras em Florianópolis atrai ecovoluntários estrangeiros
2006-01-31
— Oi, algum de vocês sabe onde fica o Projeto Lontra?
— Eu explico – saltou um dos meninos de trás do muro. — Eu sou do projeto.
— Ah, você é um ecovoluntário?
— Não, eu faço parte do Pró-Lontrinha – disse o menino de mais ou menos 12 anos, filho de pescadores do Sul da Ilha de Santa Catarina. — É assim: Ali na frente você dobra à direita, depois segue até chegar a um orelhão, daí dobra à direita de novo e segue os postes, acho que é o número 10.
O orelhão fica numa bifurcação, o caminho da direita, que leva à sede do Projeto Lontra, é uma trillha no meio da mata de restinga sombreada por pinus e eucaliptos no Parque Municipal da Lagoa do Peri, com área de 2.030 hectares distante 24 km ao sul do centro de Florianópolis. Os postes têm placas numeradas. Na frente da placa nº10, como informou corretamente nosso guia, está o portão de ferro verde com a placa do Projeto Lontra, o único do Brasil a estudar a espécie ameaçada de extinção em seu habitat natural.
Os brasileiros podem achar difícil encontrar o local, mas estrangeiros vêm de todas as partes do mundo para fazer pesquisas e trabalhar como voluntários. O Projeto Lontra está entre os três destinos mais procurados por “ecovoluntários”, junto com os lobos da Rússia e os rinocerontes da Suazilândia (África). A popularidade internacional surgiu em 2002, quando o projeto aderiu ao “Ecovolunteer Program” - programa de intercâmbio ecológico misturado com turismo científico - com sede na Holanda e popular na Europa, mas pouco conhecido dos brasileiros.
A sede do Projeto Lontra fica em um engenho de farinha às margens da Lagoa do Peri, onde antigamente havia plantação de mandioca e produção de cachaça. Hoje, cercada de mata nativa, a infra-estrutura oferece sala de estudos, internet e alojamento para abrigar até sete ecovoluntários, com café da manhã e jantar. Almoço não, “por causa das saídas de campo e também porque não é costume dos visitantes do hemisfério norte”, explica Alessandra Bez Birolo, responsável pela parte administrativa e financeira do projeto. As placas e livros na estante são em inglês, a fim de atender ao público “tradicional”, para quem o projeto tem outro nome: “River Otter Project” (otter, em inglês, significa lontra). Resumindo, a língua oficial é o inglês.
“Os brasileiros não têm a cultura do ecovoluntariado, falta dar valor à riqueza que temos aqui”, diz Alessandra. Segundo ela, a maioria dos brasileiros que freqüenta o projeto vem sem acompanhantes, em busca de novas amizades ou para aprender inglês. Entre 2002 e 2004 o centro foi visitado por 104 estrangeiros e 13 brasileiros. Até a mascote da casa veio de fora. Seu nome é Zig, um furão (Marshall Ferret) importado dos Estados Unidos. “Há furões brasileiros, mas este, como é exótico, já veio castrado para não alterar o ecossistema”, explica Alessandra.
O furão é primo da lontra, mas Zig é apenas um parente distante da lontra de água doce estudada na Lagoa do Peri. Existem 13 espécies de lontras no mundo, duas delas vivem no Brasil: a lontra (Lontra longicaudis) e a ariranha (Pteronura brasiliensis). O Sul da Ilha é um dos redutos da lontra, que entrou para a lista oficial das espécies ameaçadas de extinção do Ibama por ser cobiçada por uns e odiada por outros. A pele de lontra é valiosa, muito requisitada para casacos de pele. Por outro lado, a lontra é a grande “vilã” dos tanques de piscicultores, por “devastar” a criação. Segundo Alessandra, é tudo mentira. “A lontra não é oportunista nem territorialista, como dizem. Ela come aproximadamente 10% do seu peso por dia, o que dá mais ou menos 1,2Kg de peixe. Um peixe! Como isso pode devastar uma criação?”, questiona.
Mesmo assim, a lontra brasileira foi caçada até quase desaparecer. Ela está no topo da cadeia alimentar, seu único predador é o homem. Quando o Dr. Oldemar Carvalho Júnior criou o Projeto Lontra, em 1986, existiam cinco indivíduos no local. Hoje, segundo pesquisas de DNA em fezes, existem seis lontras no Parque da Lagoa do Peri. O número não aumentou muito, mas também não diminuiu, o que, no fim das contas, é um bom sinal. Por estar no topo da cadeia alimentar, a lontra é fundamental para o equilíbrio ecológico. “Se ela desaparecesse, abriria um nicho para outra espécie, seria imprevisível”, explica Carvalho.
Carvalho é o fundador do projeto. Em 1986, quando se formou em oceanografia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), alugou um quarto na Lagoa do Peri para estudar lontras. Os estudos resultaram na dissertação de mestrado “Auto-ecologia de lontras na Lagoa do Piri” (sic) *, em 1992. Sete anos depois, quando voltou da Inglaterra, onde concluiu o doutorado, o pesquisador formou um grupo de estudos com alunos de oceanografia e engenharia ambiental da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e, desde que firmou parceria com o Ecovolunteer Program, desenvolve pesquisas e saídas de campo para observação das lontras. Até agora 35 trabalhos já foram publicados e há 18 projetos em andamento.
Em nossa visita, encontramos dois ecovoluntários no Projeto Lontra. O inglês Geremy Langrige, de 21 anos, é recém formado em uma faculdade que não existe no Brasil, um curso que combina geografia e economia. Ele diz que já planejava entrar em um programa de ecovoluntariado quando saísse da faculdade. “Queria ter contato com a natureza”, diz. Ele está viajando há três meses, já passou pelo Peru, Bolívia, Argentina e agora fica no Brasil durante três semanas. Depois de várias saídas diárias de caiaque pela Lagoa do Peri, Geremy está um pouco frustrado, não viu nenhuma lontra. “Até agora só encontramos pegadas”, diz.
A canadense Jemia Fong, de 23 anos, descendente de chineses, disse que encontrou o programa de ecovoluntariado na internet. Ela é bióloga, quer ser pesquisadora e escolheu o Projeto Lontra para passar duas semanas em estudo de campo. “Foi perfeito pra mim porque eu não conhecia a América do Sul”, diz. No dia em que a equipe do Ambiente Já visitou o projeto, a saída de campo foi curta, só duas tocas de lontras. Quando saímos, Jemie queria voltar. Não vai descansar enquanto não vir uma lontra com seus próprios olhos.
A lontra é difícil de encontrar. Possui pelo denso — marrom como as pedras onde fazem tocas —, hábitos sub-aquáticos e noturnos. Tem o pescoço curto e largo, maior do que a cabeça, orelhas pequenas e redondas. Os olhos pequenos ajustam o cristalino quando mergulham, “truque” que proporciona visão perfeita tanto dentro quanto fora da água. A cauda é longa e espessa, achatada na base e afunilando até à ponta, para nadar e servir de leme. As patas são curtas, com cinco dedos unidos por uma membrana interdigital, para facilitar a natação. Pesam cerca de 12 kg, medem entre 55 e 80 cm de comprimento e vivem em média 11 anos.
A última lontra a visitar a sede do projeto foi Otto, encontrado dentro de um canal de drenagem de água fluvial poluído por esgoto doméstico, no bairro Rio Tavares. Otto estava doente e ferido, com sinais de apedrejadamento, além de bicheiras e com as patas dianteiras paralisadas. Depois de quatro meses, Otto foi devolvido à Lagoa do Peri em agosto do ano passado com o dobro do peso e caminhando normalmente. O Projeto Lontra tem dois veterinários com especialização em animais silvestres e um “hospital” pronto para atender indivíduos doentes ou machucados. Há três anos Carvalho tenta construir um criadouro científico na sede. O projeto foi mandado quatro vezes ao Ibama, que pediu adequações.
A infra-estrutura do Projeto Lontra é mantida pelos ecovoluntários e pela venda de souvenires. As camisetas do projeto custam R$ 20, as lontras de pelúcia, R$ 38. Quanto à estadia, os preços são diferentes para brasileiros e estrangeiros. Visitantes nacionais pagam R$ 55 a diária e estrangeiros cerca de 45 euros (R$ 120, na cotação de 30/01). Segundo Alessandra Birolo, a maior parte dos alimentos consumidos no projeto é orgânica e produzida ali mesmo. O lixo também é reciclado, o que faz Alessandra comemorar o fato de ter uma propriedade “sustentável”. O projeto fica em uma área particular que, segundo ela, está em processo para tornar-se uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).
O dinheiro é aplicado nas saídas de campo, manutenção das pesquisas e da infra-estrutura, pagamento de estagiários e funcionários e em educação ambiental, através do Projeto Pró-Lontrinha, do qual nosso guia mirim faz parte. O Pró-Lontrinha é uma escola voltada para crianças carentes do sul da Ilha. Duas vezes por semana, de manhã e à tarde, 40 crianças entre 7 e 15 anos de idade aprendem sobre as lontras e sobre o ecossistema local. “Educação é para crianças muito pequenas, o que fazemos aqui é um trabalho de sensibilização”, explica Alessandra, que também é professora do Pró-Lontrinha.
A sensibilização parece estar dando certo. Os alunos do projeto, revoltados com a presença dos pinus e eucaliptos na unidade de conservação, pediram para Alessandra encaminhar um ofício à Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram), solicitando mudas nativas. Eles mesmos vão plantar. “Eles ficam indignados de ver plantas exóticas sufocando o ecossistema local sem as autoridades tomarem uma providência”, explica Alessandra, “outro dia o pai de um aluno nosso foi multado por pescar na lagoa com um simples anzol, essas discrepâncias deixam os alunos muito revoltados”, diz.
O próximo passo do Projeto Lontra pretende envolver as mães dos alunos do Pró-Lontrinha, com a produção de artesanato como fuxico (trouxinhas de pano, feitas com sobras de tecidos) e almofadas, que serão vendidas para ampliar os recursos do Pró-Lontrinha.
Desde 2005, o Projeto Lontra é administrado pela ONG Ekko Brasil. Além do Projeto Lontra, a ONG mantém o Projeto Tucano, lançado no ano passado, na cidade de Alfredo Wagner (SC). Em março do próximo ano começará a funcionar o Projeto Veado Mateiro, em Urupema (SC).
Por Francis França
Links relacionados:
Ecovolunteer Program – br.ecovoluntarios.org
Projeto Lontra – www.projetolontra.com.br
Ekko Brasil: www.ekkobrasil.org.br
* Carvalho Faz questão de chamar a lagoa de Piri e não Peri, como é registrada. Segundo ele, “piri” vem do tupi-guarani e refere-se à espécie de junco aquático presente nas margens da lagoa. Carvalho diz que “não morre antes de ver o nome registrado certo”, fazendo justiça aos povos indígenas que habitaram a região.