Entrevista – Pedro Leite da Silva, coordenador da 2ª Conferência Regional sobre Mudanças Climáticas da América do Sul
2006-01-30
O Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) promoveu em outubro a 2ª Conferência Regional sobre Mudanças Climáticas da América do Sul. O evento internacional e multidisciplinar teve por objetivo debater os reais impactos das mudanças climáticas globais na América do Sul. Entre outros assuntos, um dos destaques foi a plenária sobre a modelagem do clima regional e da evolução dos ecossistemas e nesta como as mudanças climáticas vão afetar o funcionamento biológico, químico e físico da Amazônia. A BIO ouviu o professor Pedro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, que coordenou a Conferência, sobre como essas mudanças climáticas vão afetar o Brasil.
Revista BIO – Quais os resultados advindos da 1ª Conferência Regional sobre Mudanças Climáticas: América do Sul? Eles determinaram a realização dessa segunda?
Pedro Leite da Silva – A 1ª Conferência, em 1996, reuniu cerca de 250 pessoas. Agora tivemos mais de 700 participantes. No primeiro evento, também realizado em SP, ainda estávamos na esteira da Rio 92 e da 1ª Conferência das Partes, realizada em Berlim, onde foram iniciadas as discussões que levaram ao Protocolo de Kyoto, em dezembro de 1997. Em meados dos anos 90, estávamos com os primeiros resultados mais robustos sobre cenários futuros do clima terrestre, produzidos, por experimentos, e estes nos diziam que havia o dobro da concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera. Então, já havia alguns indícios de mudanças climáticas, e o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas publicara um texto no qual afirmava ser pouco provável que as mudanças climáticas observadas nas últimas décadas fossem associadas a causas naturais. Entretanto, a maior parte das publicações científicas reportava resultados obtidos no hemisfério norte e havia pouca informação sobre o que estava acontecendo na América do Sul. A 1ª Conferência deu origem a uma publicação especial da Academia Brasileira de Ciências que, durante muitos anos, serviu de referência, pois continha artigos sobre temas efetivamente regionais. Suscitou também algumas recomendações, que foram particularmente importantes para o que ocorreu no Brasil nessa última década. Além disso, reforçou a proposta de criação de um programa de estudos multidisciplinares sobre a dinâmica dos ecossistemas brasileiros, por parte da Academia Brasileira de Ciências;. Também foram reportados resultados preliminares sobre os efeitos das queimadas no clima: indícios dos efeitos das mudanças climáticas em ecossistemas costeiros e mudanças no nível do mar.
BIO – E hoje, quais são os impactos dessas mudanças climáticas globais no Brasil?
Silva – A Amazônia é uma das regiões do planeta onde, a curto prazo, talvez esses efeitos sejam mais evidentes. Os modelos mais recentes, além de uma melhor representação no ciclo hidrogeológico obtido por melhorias na representação do processo de formação de chuva, são hoje capazes de simular os “feedbacks” entre a vegetação e o clima. Alguns cenários, produzidos recentemente, apontam para um clima amazônico sem capacidade de sustentar a floresta tropical úmida. Haveria uma significativa redução da chuva e aumento da temperatura. O apodrecimento da vegetação e a emissão carbono estocado no solo levariam a uma intensificação do efeito estufa e, portanto, a um maior aquecimento. Nos cenários regionais de mudanças climáticas há, em geral, indícios de diminuição das chuvas na Amazônia e Nordeste e pequeno aumento no Sudeste e Sul. Os modelos apontam na direção de que estes efeitos já deveriam ser evidentes no decorrer do atual século. Entretanto, ainda existem incertezas quanto aos cenários regionais das mudanças climáticas na América do Sul. Nem todos os modelos apontam nesta direção. Talvez o grande passo nestes últimos anos tenha sido no sentido de aumentar o número de cenários e, portanto, temos uma idéia mais clara das probabilidades de ocorrência de determinados eventos, e o fato de os modelos serem capazes de reproduzir de forma mais realística o ciclo hidrológico e o acoplamento do clima com os processos de superfície, particularmente com a vegetação.
BIO – O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) afirma que, até agora, não foram sequer desenvolvidos programas de computador com capacidade para analisar as conseqüências das mudanças climáticas no Hemisfério Sul. Como a USP estuda a questão sem esses softwares?
Silva – O Inpe, através do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos – CPTEC – é a única instituição na América do Sul com poder computacional para elaborar cenários futuros com modelos globais semelhantes aos que hoje estão sendo usados nos centros mais avançados. Os modelos estão sendo testados no momento. Entretanto, o CPTEC e outras instituições de pesquisa no Brasil e em outros países da América do Sul, principalmente na Argentina (através do Cima), estão fazendo o que se chama tecnicamente de “downscaling” dos cenários climáticos. O “downscaling” tem como objetivo principal produzir cenários do clima futuro com resolução espacial mais alta (em geral da ordem de 40 por 40 Km) que a usada nos modelos globais (200 por 200 Km). Os modelos de resolução espacial mais alta permitem reproduzir os efeitos mais localizados associados às montanhas, por exemplo. A USP também participa desse esforço, mas as simulações ainda estão em andamento. Mas o Brasil tem dado uma significativa contribuição ao desenvolvimento dos modelos climáticos. Em particular, tanto no CPTEC como na USP, há um esforço concentrado para melhorar a representação dos processos de interação entre os ecossistemas típicos de nossa região, como o Cerrado e a Floresta Amazônica. Há também um significativo esforço no sentido de melhor reproduzir nos modelos os processos hidrológicos, particularmente no Pantana, e um projeto conjunto com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
BIO – Em sua opinião, a sociedade brasileira está dando a devida importância ao tema?
Silva – Há, seguramente, uma grande mudança com relação à percepção da sociedade sobre a quesão. Mas, talvez, o que mais tenha me impressionado, nos últimos anos, seja a demanda por essas informações por parte das escolas, principalmente, de segundo grau. Outro aspecto a destacar é a procura por informações por parte de cooperativas agrícolas, associações comerciais e industriais. A instalação do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas – FBMC –, em meados de 2000, representou outro grande passo para ouvir e articular os diversos segmentos da sociedade.
BIO – Como o senhor analisaria o Protocolo de Kyoto?
Silva – O Protocolo de Kyoto constitui uma notável estrutura jurídica e um primeiro exercício de integração internacional em torno desse importante tema. Talvez este seja o seu grande mérito. Mas, do ponto de vista prático, os resultados ainda são muito modestos e estão aquém das necessidades de controle de emissões de gases de efeito estufa. Para se ter uma idéia mais precisa do significado do Protocolo, se todos os países do Anexo I atingissem as metas, seriam evitadas emissões de cerca de 70 bilhões de toneladas de carbono. A Floresta Amazônica tem, aproximadamente, a mesma quantidade de carbono estocada na parte aérea e no solo. Portanto, o Protocolo de Kyoto é aproximadamente igual a uma Amazônia, do ponto de vista do estoque de carbono. Em 2012, serão renegociados os compromissos de redução de emissões. Nesta ocasião, o Brasil deverá assumir compromissos, assim como a China e a Índia, países que hoje contribuem significativamente para o aumento da concentração de gases de efeito estufa, mas que, historicamente, tem menor responsabilidade que os países desenvolvidos. Os extremos climáticos observados nos últimos anos certamente tiveram um importante impacto no sentido de mostrar a nossa vulnerabilidade. A opinião pública americana faz hoje enorme pressão sobre o governo. Acredito que deverá haver uma mudança na posição oficial americana em função dessa pressão.
BIO – Se coubesse ao senhor definir medidas globais mais energéticas para reduzir os impactos da atual crise ambiental, quais apontaria?
Silva – A redução de emissões de gases de efeito estufa precisa ser ampliada para os países em desenvolvimento. A mudança do uso da terra, principalmente o desmatamento, tem hoje um papel fundamental como fonte de gases de efeito estufa. Portanto, é preciso propor alternativas globais que tenham como resultado uma significativa redução na pressão pelo desmatamento. Este processo passa, principalmente, por crises alternativas economicamente viáveis para tornar a agricultura mais eficiente. De imediato, também é fundamental usar mais eficientemente os recursos energéticos atualmente disponíveis e economicamente viáveis, como o uso extensivo da biomassa como fonte de energia. O Brasil tem dado, nessa linha, uma enorme contribuição através do programa do álcool e, agora, com o biodiesel. Entretanto, do ponto de vista global, precisamos aprimorar nosso conhecimento sobre os “feedbacks” climáticos para diminuir as incertezas nos cenários climáticos futuros.
BIO – A Academia está cumprindo seu papel de alertar a sociedade sobre a questão da Amazônia?
Silva – A Academia tem se preocupado de várias formas e procurado influir no desenvolvimento de políticas públicas. Um exemplo dessa participação é a recente publicação de dois dossiês sobre a Amazônia Brasileira na Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP (http://www.usp.br/iea/). Outro exemplo importante é o livro “Águas Doces no Brasil” (2002), uma publicação da Academia Brasileira de Ciências e o IEA/USP. Além disso, a Academia tem organizado importantes eventos no país, visando a uma melhor articulação dos cientistas com os tomadores de decisões e formuladores das políticas públicas ambientais. Existe uma preocupação constante na busca da transferência do conhecimento científico para a sociedade em geral. A 2ª Conferência também teve esse papel.
BIO – Existem certezas científicas de desastres ambientais, previstos para o Brasil, em conseqüência dessas mudanças globais?
Silva – Ainda é prematuro atribuir a atual seca na Amazônia e a alta incidência de intensos furacões no Caribe e o caso do furacão que atingiu o litoral de Santa Catarina, em março de 2004, ao aquecimento global. Existem ciclos naturais do clima que levam à ocorrência de extremos climáticos de forma mais freqüente. Um exemplo interessante foi a grande seca na Amazônia em 1926, um período no qual a navegação no Rio Amazonas também foi bastante prejudicada. No mesmo período, ocorreram intensos furacões no sul dos EUA. O clima passa, naturalmente, por ciclos. O problema, no momento, é que do ponto de vista energético, o aumento do efeito estufa passa, a partir de agora, a ter uma magnitude comparável às flutuações naturais do clima. Portanto, a pergunta que se coloca é a seguinte: como se comportarão os ciclos naturais do clima com o aquecimento global, induzido pelo aumento da concentração dos gases estufa? Essa é uma pergunta que ainda não pode ser respondida pela ciência, mas que está no topo das lista das prioridades para os próximos anos.
BIO – Como a conferência analisou a importância das ciências humanas neste debate?
Silva – Há algumas décadas, o clima era visto como um fenômeno atmosférico. Nos anos 70/80, ficou claro o quanto a interação com os oceanos foi fundamental para explicar alguns eventos climáticos, como o El Niño. Então, os modelos climáticos passaram a simular o acoplamento entre a atmosfera e os oceanos no final dos anos 80. Neste período, a ciência do clima passou a dedicar considerável esforço no papel da biosfera e entendimento do ciclo do carbono. A modelagem da biosfera foi bastante avançada na década de 90. Mas, somente no início dos anos 2000, as simulações climáticas passaram a descrever os processos de realimentação entre o clima e a biosfera. Foi também nos anos 90 e início dos anos 2000 que a visão da modelagem climática se estendeu para a modelagem de gases como o metano, dióxido de enxofre, material particulado e efeitos na formação e estrutura de nuvens. Agora, neste início de século, entende-se que a questão do clima não apenas como um processo físico, mas que tem um forte componente humano, devido ao fato de que a humanidade tem hoje uma enorme capacidade de alterar a estrutura da Terra. A visão moderna inclui, portanto, a interação entre o homem e os processos físicos. O EIA tem se preocupado justamente com a aproximação das diferentes comunidades científicas. Um exemplo é a questão do papel dos economistas e cientistas sociais nos estudos sobre muidanças globais. Esta 2ª Conferência teve, como um dos objetivos, congregar essas diferentes comunidades em torno do tema das mudanças globais.
BIO – Grandes reservas de água estão secando no planeta. Este fenômeno está atrelado ao efeito estufa?
Silva – Não é possível descartar a hipótese de que flutuações naturais do clima possam ter alguma influência sobre essa questão. Um exemplo interessante que demonstra a complexidade do processo é o do Rio Paraná. Itaipu foi planejada com base na climatologia da precipitação e da vazão observada entre 1930 e 1960. Após a construção de Itaipu, observou-se que a vazão era maior que a média histórica em cerca de 25%. Este fato permitiu aumentar a potência instalada da usina. Parte do aumento da vazão ocorreu em função do aumento da precipitação (cerca de 10 a 15%, como parte dos ciclos naturais de período de várias décadas). Mas outra parte substancial do aumento da vazão ocorreu em função da mudança no uso do solo.
(Revista BIO, outubro a dezembro de 2005)