Mudanças climáticas colocam dúvidas sobre transposição do Rio São Francisco
2006-01-27
No dia 11 de janeiro, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar à União suspendendo a penúltima ação contra o Projeto de Integração da Bacia do São Francisco. Apenas uma ação – movida pelo estado da Bahia - impede o início das obras do projeto de transposição, defendido com unhas e dentes pelo Governo Federal, na contramão dos movimentos populares e de pareceres de membros da comunidade científica. É inegável a necessidade de projetos que levem o desenvolvimento para a região. Nisso, governo, movimentos populares e comunidade científica não divergem. A questão é como e para quem.
Agora, mais um dado vem somar-se aos questionamentos dos que pedem mais tempo e mais ponderação ao governo antes de investir num projeto tão grandioso. Ao contrário da tendência mundial, os estudos para implantação da transposição deram pouca ou nenhuma importância, até agora, para como vai ser o clima na região nas próximas décadas. Estudo divulgado há poucas semanas pelo renomado Hadley Centre, da Grã-Bretanha, uma das mais conceituadas instituições de pesquisas do clima no mundo, informa que, ao longo do século 21, a descarga fluvial vai intensificar-se em várias regiões, entre elas no Nordeste brasileiro, onde crescerá entre 25% e 150%. A vazão vai diminuir em muitas outras; entre elas, na Amazônia e no Pantanal mato-grossense, onde a redução poderá ser de 25% a 50%.
Uma equipe do CPTEC (Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos) do Ministério da Ciência e Tecnologia, coordenada pelo meteorologista José Marengo, está finalizando um estudo, com base não só nas informações das projeções climáticas do Hadley Centre de UK, mas também das projeções climáticas de outras instituições internacionais de EUA, Japão, Canadá, Austrália e Alemanha, que fazem parte do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Segundo Marengo, sabe-se que existe um grau de incerteza do futuro cenário climático do planeta e, em particular, no Brasil. O estudo visa reduzir essas incertezas na situação brasileira considerando as diferentes previsões de clima futuro no Brasil, “pois considerar só uma pode gerar uma grande incerteza”. Por exemplo, explica o meteorologista, “o modelo do Hadley Centre apresenta redução sistemática de chuva no Nordeste aá 2100, porém o modelo o Laboratório de Dinâmica dos Fluidos dos Estados Unidos apresenta chuvas mais abundantes na mesma região para o mesmo período de 2100”. “Em quem acreditar?”, pergunta o cientista.
Os cenários levam em consideração emissões de gases de efeito estufa e aerossóis, taxas demográficas, desenvolvimento sócio-econômico e avanços tecnológicos. Nas primeiras avaliações, conforme Marengo, o que se visualiza, em qualquer cenário, é um aumento na temperatura global, conseqüentemente também na região do semi-árido. A partir desse aumento de temperatura, pode também ocorrer um aumento na evaporação da água. "O que pode nos garantir, argumenta Marengo, que a construção de canais a céu aberto é a melhor opção para a transposição das águas do São Francisco num cenário de maior evaporação?". Porém, observa, um dos problemas mais importantes na previsão climática atual e o que chamamos de “previsibilidade”. Segundo Marengo, a previsão sazonal de clima é mais difícil (menor previsibilidade) na bacia média e alta do São Francisco. “Se consideramos que isso não muda, as previsões de chuva no alto e meio São Francisco para o futuro também teriam uma previsibilidade menor e, juntamente com o fato de ter cenários futuros de chuva com sinais opostos entre os vários modelos, o grau de incerteza é anda maior”.
O professor reconhece a necessidade de levar água para o semi-árido, mas opta pelo principio da precaução, ou seja, por que investir tanto nesse projeto agora, sem que todas as possibilidades e conseqüências sejam examinadas à exaustão? Marengo reivindica uma maior consulta técnica em termos de clima. "Para fazer um empreendimento da envergadura da transposição é preciso que seja feito um estudo sistemático para saber qual será o cenário da região no futuro. Ninguém perguntou como será o clima no futuro nessa região", observa. Outra consideração importante é a o da vulnerabilidade da região para as mudanças climáticas que ocorrerão no próximo século, "principalmente levando em consideração que o projeto pretende estar funcionando a pleno daqui a 20 anos". A região Nordeste, explica o meteorologista, “é talvez a mais vulnerável a mudanças de clima no futuro, e isso deve ser tomado em conta para implementar medidas de adaptação da população ao novo clima futuro, especialmente no sertão”.
Estudo publicado recentemente pelos cientistas do Serviço Geológico dos Estados Unidos analisa os cenários futuros de clima de vários modelos globais do IPCC (entre eles o de Hadley) para vazões no período 2041-2060 relativo ao clima em 1961-90. No cenário que considera uma média-alta liberação de gases de efeito estufa, a avaliação dos modelos mostra que a vazão pode aumentar até 40% na bacia do Prata, com tendência de redução de até 20% para Amazônia e São Francisco. Todos esses dados técnicos e a quantidade de dúvidas que eles apontam só reforçam, na opinião de Marengo, a urgente necessidade de que sejam realizados mais estudos antes de investir no projeto de transposição. “Quanto mais dúvidas e incertezas, só mais estudos para evitar problemas futuros”, garante.
A opinião de Marengo é compartilhada pelo seu colega o biólogo, mestre em sensoriamento remoto, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) Ivan Bergier Tavares de Lima, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Bergier também prega o critério da precaução. "Não existem antecedentes na região. Então, observa, antes de iniciar qualquer empreendimento são necessários mais estudos para identificar como as mudanças climáticas e os rumos das chuvas vão interferir no volume dos rios como um todo". E a recomendação não é de considerar só um dos modelos globais, mas vários modelos globais que são disponibilizados ao publico pelo IPCC.
Resta saber se o Governo Federal vai ser sensível às reivindicações da comunidade cientifica e dos movimentos populares. Não faltam exemplos de empreendimentos que para resolver problemas imediatos acabaram gerando grandes problemas futuros. O próprio Rio São Francisco é a prova viva disso. A barragem de Sobradinho construída na década de 70 – em pleno regime militar – sem nenhum relatório de impacto ambiental é a maior responsável pelos problemas que ocorrem hoje na foz do rio, entre outros. Aprofundar os estudos, levando em consideração todas as variáveis, antes de iniciar a transposição pode evitar que essa história repita-se.
(Agência Carta Maior, 24/01)