Passeio no Tietê: o engenheiro e a capivara
2006-01-26
Visto de baixo, o Cebolão é um
dédalo ensurdecedor de viadutos. Todos os barulhos de todos os carros, de todos os ônibus, de todos os
trens, de todas as motos, de todos os tratores e de todos os caminhões de São Paulo convergem para o
entroncamento dos rios Tietê e Pinheiros. Pneus, amortecedores, molas, carrocerias e engrenagens se chocam
contra o asfalto remendado, os buracos, as crateras. Motores, sirenes, brecadas e buzinas incessantes
completam a algaravia sonora. A água do rio Tietê é preta. A água é mais preta que café. A água é imóvel.
A água é densa. É mais plástica que líquida. É piche. É magma. A água é coágulo. Ela suportará o
paralelepípedo que se lhe for colocado em cima: leve e livre, a pedra flutuará. Na "Meditação sobre o
Tietê", Mario de Andrade descreveu a água do rio como um pesadelo: "pesada e oleosa". Aqui e ali, jazem
garrafas de plástico, perfeitamente paradas, secas e cobertas de poeira cinza. As margens do rio estão
revestidas de concreto igualmente cinza. Para além das margens, o que se dá a ver é fumaça dos automóveis
e caminhões. Tudo é negro e cinza, exceto as nesgas de céu azul-pálido que se entrevê entre os viadutos.
O
que se ouve e o que se vê de dentro de uma lancha que navega no rio Tietê, bem embaixo do Cebolão, pode
ser descrito apenas em parte, em cacos. O que se cheira é indescritível. Não é esgoto. Não é petróleo. Não
é enxofre. Não é cloaca. Não é sulfa nem necrotério. É tudo isso misturado e piorado. É uma fedentina
acre, escaldante como a tarde estúpida de janeiro, um odor pestilento que impregna roupas, cabelo, pelos,
pele, entra pelos poros, circula pelo sangue e o apodrece, contamina a alma e a necrosa. A paisagem
auditiva, visual e olfativa lembra Mario de Andrade outra vez, na mesma "Meditação": "tristeza que timbra
um caminho de morte".
Dias antes, jantando com José Serra, o prefeito contou que às vezes é obrigado a
andar de helicóptero (coisa que ele detesta), para escapar dos engarrafamentos e chegar a tempo a um
compromisso. Lembro do que ele disse: "vista de cima, São Paulo dá vontade de chorar, de chorar aos
gritos". Serra se referia à pobreza das periferias, ao emaranhado de ruelas sem calçamento, à ausência de
parques e praças, ao produto histórico de décadas de destruição da natureza. Vista de baixo, de dentro do
Tietê, São Paulo não é nem natureza nem obra humana. É outra coisa. É o érebo, o orco, o averno. É o
Flegetonte, que Dante descreve no Canto XII do "Inferno": o rio de sangue onde ficam os pecadores que
atentaram contra os bens e as vidas de seus contemporâneos. Os assaltantes ficam com sangue até a cintura.
Os assassinos ficam só com a cabeça de fora. E os tiranos, por terem roubado e matado, ficam imersos até
as sobrancelhas. Com a diferença que no petrificado sangue pútrido do Tietê não há nem ladrões nem
assassinos nem nenhum dos governantes que em apenas meio século o transformaram em paisagem estéril.
E, no entanto, o engenheiro Ricardo Borsari, aponta para a margem do rio e exclama, entusiasmado: "Veja
que beleza!" Em vez de chorar aos gritos, concordo com ele: apesar de horrenda, a margem revestida de
cimento é realmente uma beleza. Borsari, um cinquentão de bigodes grisalhos aparados fio a fio, me
aguardava de terno e gravata impecáveis à beira do Tietê, na altura da fronteira de São Paulo com Osasco.
Parecia que tinha saído do banho. Eu estava em petição de miséria: o táxi em que cheguei não tinha
ar-condicionado, o motorista se perdeu duas vezes, fomos parar para lá da casa do chapéu, e cheguei só com
dez minutos de atraso porque saí de casa uma hora antes. Borsari se referia à beleza utilitária da obra
que ele coordenou durante quase quatro anos, a da ampliação da calha do Tietê, na condição de
superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo. "Antes, a cada chuva mais forte,
havia 50% de possibilidade do Tietê transbordar e invadir a marginal, e, agora, o índice cai para 1%". Com
a objetividade dos engenheiros, Borsari conta que foram retirados, de pouco mais de 24 quilômetros do rio,
nove milhões de metros cúbicos de rocha, areia e terra, além de 120 mil pneus. Isso mesmo, 120 mil pneus.
Dois mil homens trabalharam cotidianamente na obra, mas houve dias em que chegaram a mais de três mil.
"Como toda vida humana é preciosa, lamento que dois operários tenham morrido", diz Borsari, "mas, em
qualquer lugar do mundo, é um índice baixo de acidentes fatais para um trabalho dessa envergadura".
Foram
usados cem mil metros cúbicos de concreto. O leito do rio foi alargado para um mínimo de 46 metros, e foi
cavado para ter ao menos quatro metros de profundidade - o que é pouco: em Paris, o Sena tem trinta metros
de profundidade. Plantaram-se quase dez mil árvores nas margens. Tudo saiu por um bilhão de reais Pergunto
se as árvores foram plantadas para esconder o rio. "Não, é justamente o contrário, elas servem para chamar
a atenção para o rio", responde Borsari. O superintendente diz que houve também o cuidado de colocar os
nomes dos 59 córregos que desaguam no Tietê. "A população vai lentamente aprender a conhecer o rio, a
reconhecer o seu traçado e afluentes", espera o engenheiro que tem orgulho de ter nascido no Estado, na
cidade e na maternidade de São Paulo.
A obra colossal não resolverá o problema da poluição do Tietê.
Quase 40% do esgoto da Grande São Paulo continuarão a ser despejados no rio sem tratamento. É o esgoto de
mais de sete milhões de pessoas que vai diretamente das privadas para a artéria central da cidade. Ou
seja, o Tietê não é um rio. É um canal de esgoto a céu aberto. As enchentes continuarão, ainda que
diminuídas. Para que elas se mantenham na propoção imaginada por Borsari, o rio terá de ser escavado
diuturnamente. Só de lixo, são doze toneladas que chegam ao seu leito todos os dias. A cada ano, cerca de
800 mil metros cúbicos de terra e areia dos córregos e alfuentes são levadas para o Tietê. E há o problema
de quatro pontes, as mais antigas, que são baixas. Para que caminhões cada vez mais altos pudessem passar,
as marginais tiveram de ser escavadas, ficando quase abaixo do leito do rio. Nelas, só com bombas de
sucção é possível evitar as enchentes. Na penúltima cheia, duas bombas pifaram e as marginais inundaram.
Há, ainda, um problema estrutural. Os 45 quilômetros das marginais foram construídos bem ao lado das
margens, em várzeas que inundavam fatalmente no verão. As avenidas aprisionaram o rio no seu leito mais
estreito, e não no mais largo. Para completar, há a questão que leva Serra a ter o impulso de chorar aos
gritos quando contempla a cidade de cima: a ausência de terra, grama, vegetação. O nome técnico disso é
impermeabilização do solo. A água da chuva não tem para onde escoar. Em dia de chuva forte, ela permanece
na superfície, empoçada. Ou seja, ainda que canal de esgoto, o Tietê segue sendo um rio, com seus fluxos e
ciclos. As marginais e a impermeabilização do solo são produto, em boa medida, das ações de Faria Lima
que, apesar disso, é ainda considerado um dos grandes prefeitos paulistanos. Sua prioridade (como também a
de Olavo Setúbal, Jânio Quadros e Paulo Maluf) foram as obras viárias, a livre circulação de automóveis,
em detrimento da preservação do solo e do incentivo ao transporte coletivo. "A gente faz o que é possível,
a gente se adapta à feição que a cidade tomou, é impossível voltar atrás", resigna-se Borsari.
Na
altura da Ponte dos Remédios, vejo algo se mexendo na margem. É um animal. Uma capivara de bom porte. Mais
adiante, aparece uma garça. Elas destoam da paisagem. São tão irreais quanto unicórnios ou centauros. Como
a flor que rompeu o asfalto no poema de Drummond, elas significam a irrupção do natural na obra humana.
Tento contagiar Borsari com meu entusiasmo. Ele conta que foram capturados dezenas de animais silvestres,
prontamente encaminhados a criadouros. "De agora em diante, haverá cada vez menos capivaras e garças no
rio: como as margens foram cimentadas, elas não terão o que comer", lamenta o engenheiro, afogando meu
entusiasmo no Tietê.
(No Mínimo, 22/01)