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2006-01-18
O Mercosul e a retórica de integração sul-americana estão à prova no enfrentamento entre Uruguai e Argentina por causa da construção de duas fábricas de celulose às margens do rio Uruguai, em território uruguaio, na divisa entre os dois países. As reclamações da sociedade e de ambientalistas que começaram há mais de três anos no Uruguai contra essas instalações se transformaram em um confronto entre os dois países, despertando todo tipo de pronunciamento nacionalista e um gradual endurecimento das posições a medida em que a tensão aumenta.

Alguns setores da esquerda que agora governa no Uruguai haviam apresentado frágeis objeções aos projetos até 2004 quando eram oposição. Mas hoje, todo o arco político se alinha por trás da defesa dessas indústrias, que têm na região graves antecedentes de contaminação. Com o calor de janeiro, intensificaram os bloqueios de uma das pontes que unem os dois países, realizados por vizinhos e ambientalistas da cidade de Gualeguaychú, na província argentina de Entre Rios e perto do rio Uruguai, em cuja margem oriental a Empresa Nacional de Celulose da Espanha (Ence) e companhia finlandesa Botnia constroem as fábricas.

Os protestos indicam que a autorização uruguaia para essas indústrias violou um tratado binacional de administração conjunta do rio fronteiriço, pois omitiu uma consulta prévia a Buenos Aires. Montevidéu responde dizendo que em 2004 a Argentina deu seu acordo aos projetos, e cita um parágrafo da Memória Anual do Estado da Nação Argentina que se refere especificamente ao assunto. Mas esse é um texto errôneo, segundo Buenos Aires. O binacional Grupo de Trabalho de Alto Nível, instalado em meados do ano passado pelos presidentes Nestor Kirchner, da Argentina, e Tabaré Vázquez, do Uruguai, para aliviar a tensão, terminará seus trabalhos no próximo dia 30/01 sem acordo entre as partes, reconhecem fontes dos dois países.

Para Buenos Aires, esse contexto (que considera de negociação) e as duas cartas enviadas a Montevidéu solicitando paralisação das obras, constituem antecedentes para esgrimir uma denúncia junto ao Tribunal Internacional de Justiça, com sede em Haia. As autoridades uruguaias, por sua vez, afirmam que essa comissão não é de negociação, mas de complemento de “estudos e análises, intercâmbio de informação e de acompanhamento das eventuais conseqüências sobre o ecossistema do rio Uruguai” da instalação das duas fábricas. A oposição argentina se expressa em dois planos: o ativismo civil de Gualeguaychú, incentivado pelo governador de Entre Rios, Jorge Busti, e as declarações e cartas de funcionários do governo Kirchner.

A medida de bloquear o ponto é muito prejudicial ao Uruguai na alta temporada turística de verão no hemisfério, pois afeta uma das vias de entrada de visitantes argentinos ao país. Mas além disso, essa medida abre outro plano de enfrentamento, pois traz a tona a questão da livre circulação consagrada na união aduaneira que é o Mercosul, do qual Brasil e Paraguai também fazem parte. Estes protestos, não impedidos e incentivados na Argentina, acendem ainda mais os sentimentos nacionalistas no Uruguai, onde todo debate interno sobre a conveniência de promover a indústria da celulose passou para segundo ou terceiro plano.

“O Mercosul está em sua pior conjuntura para assumir um papel na resolução destas diferenças”, diz o historiador e analista político Gerardo Caetano. Às debilidades e tensões que vive o bloco se soma a polêmica pelo renovado interesse uruguaio em negociar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. No último dia 5/01, o ministro da Economia do Uruguai, Danilo Astori, afirmou que seu país devia “começar a fazer esforços para chegar a ter um tratado de livre comércio com os Estados Unidos”.

“Seria impossível que um sócio do Mercosul negocie individualmente acordos comerciais, a menos que pretenda deixar o bloco, decisão sobre a qual não fomos informados”, respondeu na semana passada o chanceler brasileiro, Celso Amorim, embora admitindo que os sócios majoritários, Brasil e Argentina, “talvez não tenham feito o suficiente pelo desenvolvimento dos membros menores”. Em qualquer caso, dentro do Uruguai existe “uma campanha para deixar o Mercosul” através de alguns meios de comunicação, como o semanário Búsqueda, com verdadeiras “alegações” contra o bloco, que começam a encontrar algum eco no governo, disse Caetano.

Além disso, o Uruguai não conta com todos os instrumentos de uma diplomacia de alto nível para encontrar saídas para a crise. E o Poder Executivo está “determinado a não perder os investimentos” estimados em US$ 1,8 bilhão, acrescentou Caetano. Por outro lado, o governo argentino, talvez pelo estilo de Kirchner, “não entra em acordo, não negocia, está acostumado a ganhar todas”, ressaltou. O Uruguai está obrigado por um acordo de proteção de investimentos assinado com a Finlândia em 2002, quando o presidente era Jorge Batlle (2000-2005), e ratificado por este país em 2004, com uma vigência de 20 anos.

O artigo sexto prevê que as empresas cujos investimentos “sofrerem perdas por causa de guerra ou outros conflitos armados, estado de emergência nacional, revolta, insurreição ou manifestações” terão direito a “restituição, indenização, compensação ou outros acordos” nas condições mais favoráveis possíveis. Na opinião de Caetano, a discussão da comissão binacional terminará “em nada”. Mas um processo no tribunal de Haia não necessariamente seria adverso a este país, pelo “desprestígio internacional” que a Argentina ganhou nos últimos anos por causa de sua crise econômica e a suspensão do pagamento de sua dívida, entre outras razões. Por sua vez, o ex-chanceler uruguaio e atual embaixador na França, Héctor Gros Espiell, espera que “se evite esse caminho, porque é longo e custoso para as duas partes”.

No começo de janeiro, seu nome foi mencionado como o encarregado de preparar a defesa do Uruguai perante o tribunal de Haia. “Não recebi nenhuma instrução da chancelaria”, diz o embaixador. Em sua opinião, “continuam abertas todas as opções diplomáticas” para um acordo. “A mediação está dentro dessas opções. A negociação tem uma ampla variedade de instrumentos”, acrescentou Gros Espiell, catedrático em direito internacional e ex-subsecretário-geral da Organização das Nações Unidas.

A sociedade civil propõe outras saídas. A organização ambientalista Greenpeace disse que Buenos Aires faria melhor se adotasse o mesmo zelo manifestado diante das fábricas uruguaias para toda a produção de celulose instalada em seu território.

A organização propôs um novo mandato ao Grupo Técnico de Alto Nível: elaborar durante 2006 um Plano de Produção Limpa para o setor industrial da celulose e do papel das duas nações e, enquanto isso, suspender as obras das duas fábricas uruguaias. “Para nós, não é a saída”, analisa a ativista Ana Filippini, do grupo ambientalista uruguaio Guayubira. A entidade questiona o modelo florestal deste país e a implantação da indústria da celulose em grande escala. Em sua opinião, o governo uruguaio deveria “abrir a discussão” interna sobre estes temas e fazer cumprir normas relativas ao uso da água, instalação de zonas francas e outras, que não implicam em “violar o convênio” com a Finlândia. “A saída seria frear os monocultivos florestais, não aumentá-los, que é o que acontecerá com a instalação de três ou mais fábricas de celulose”, acrescentou Filippini, se referindo a um novo projeto do grupo sueco-finlandês Stora Enso para construir uma fábrica no centro do país.
(Por Diana Cariboni - IPS/Envolverde)

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