E se sobrar água no semi-árido?
2006-01-10
Já há algum tempo se pensava que nada mais faltava para completar a confusão em torno do desassisado projeto de transposição de águas do Rio São Francisco. Pura precipitação. A confusão vai crescer muito.
Quem levanta essa possibilidade é o biólogo, mestre em sensoriamento remoto, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) Ivan Bergier Tavares de Lima, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Chama ele a atenção para estudo divulgado há poucas semanas pelo renomado Hadley Centre, da Grã-Bretanha, uma das mais conceituadas instituições de pesquisas do clima no mundo.
Está dito ali que ao longo do século 21 a descarga fluvial vai intensificar-se em várias regiões, entre elas o Norte da Rússia, a Groenlândia, o Canadá. E no Nordeste brasileiro, onde crescerá entre 25% e 150%. A vazão vai diminuir em muitas outras, como a Europa Ocidental, o Norte da África, o Oriente Médio, os Estados
Não se está indo na contramão das tendências climáticas globais?
Unidos, a América Central. E também na Amazônia e no Pantanal mato-grossense, onde a redução poderá ser de 25% a 50%.
Se é assim, comenta Tavares de Lima, por que pensar em transpor água de uma região onde o fluxo vai diminuir (podendo afetar até a geração de energia) para outra onde o fluxo poderá aumentar? E como pensar - da forma que se está pensando - em aumentar o potencial hidrelétrico brasileiro com base principalmente na Amazônia, onde a água disponível pode reduzir-se? Não se está assim promovendo uma política de crescimento e desenvolvimento sustentável “na contramão das prováveis tendências climáticas globais”? Que se fará para proteger a biodiversidade brasileira, ameaçada por essa tendência? E uma área úmida protegida pela Convenção de Ramsar? E a Região Sul, que deverá sofrer inundações mais intensas? É muito grave tudo. Mesmo sem mudanças climáticas, entretanto, a confusão na área do São Francisco continua imensa. No dia 16 de dezembro, depois de entregar ao presidente da República documento apoiado por várias instituições - com sugestões para reforma hídrica, reforma agrária e acesso à terra, necessidade de participação da sociedade no projeto, políticas de segurança energética, recuperação de áreas em processo de desertificação, todas muito sensatas -, o bispo dom Luís Flávio Cappio, que chegou a começar uma greve de fome contra a transposição como está planejada , saiu do Palácio do Planalto dizendo que o presidente lhe prometera só iniciar a obra “depois de concluído o diálogo” com ele e outros adversários do projeto.
Mas o ministro Jaques Wagner logo acrescentou estar o governo “convicto da justeza do projeto”. E o ministro Ciro Gomes considerou encerrado o diálogo e superadas as divergências.
As obras só não começaram, de fato, porque o presidente do Tribunal Regional da 1ª Região concedeu liminar mantendo a suspensão do licenciamento ambiental, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não se manifestar sobre uma decisão de primeira instância. Ainda assim, no dia 24 de dezembro o presidente da República insistia em que, juntamente com outros projetos, a transposição “vai mudar a cara do Nordeste”. E uma edição extraordinária do Diário Oficial da União liberava R$ 21,8 milhões para reassentar famílias residentes em áreas da transposição.
De fato, na área governamental as críticas e objeções ao projeto têm sido, com arrogância, consideradas “desinformadas”, quando não fruto de causas menos confessáveis. Ainda que se escorem em estudos e pareceres técnicos de cientistas respeitáveis ou de outras pessoas que estudam a questão há décadas.
Mas quem estiver interessado em acompanhar o processo pode ler o alentado parecer da jurista Helita Barreira Custódio, doutora em Direito pela USP, ex-assessora jurídica do STF, que aponta as “incompatibilidades socioeconômicas, ambientais e jurídico-constitucionais do projeto” (barreiracustodio@ibest.com.br).
Da mesma forma, o livro mais recente do jornalista Marco Antônio T. Coelho - Os Descaminhos do São Francisco (Editora Paz e Terra) -, que, além de traçar o caminho civilizatório do rio e identificar as causas de sua degradação, mostra que ele foi “reduzido a um canal a serviço da produção de energia elétrica”.
O livro traz também depoimentos importantes e esclarecedores, como o que prestou à Comissão Especial da Câmara dos Deputados o ex-ministro e hoje secretário do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, José Carlos Carvalho - para quem se trata de “um projeto nocivo ao Brasil”. Ele demole os argumentos a favor da transposição, assim como o mito político de que os opositores do projeto negam “uma caneca de água” aos nordestinos sedentos, e aponta as verdadeiras causas dos dramas do semi-árido. Elas não estão na disponibilidade de recursos hídricos, e sim no processo de ocupação do território, nos desníveis de educação e de renda, na inexistência de projetos de desenvolvimento a longo prazo e nos desequilíbrios regionais, “que sempre trabalharam na região para perpetuar a pobreza e a chamada indústria da seca”.
Também os depoimentos do governador da Bahia, Paulo Souto, e do governador de Sergipe, João Alves Filho, são muito contundentes. O primeiro demonstra, entre outras coisas, que a água transposta custaria cinco vezes mais cara que a água hoje fornecida a projetos de irrigação pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) - e a população urbana teria de pagar toda a diferença -, seria a “água mais cara do mundo”. O segundo assegura que jamais viu “tamanha insensatez e inabilidade”.
Com tantos argumentos, algum dia o governo federal abrirá os ouvidos??
Por Washington Novaes, jornalista (O Estado de S.Paulo, 06/01)