Artigo: Sobre furacões, terremotos, tsunamis e a nossa civilização
2006-01-05
Por Brian Fagan *
Em nossa mocidade, muitos de nós aprendemos sobre glaciações da Era do
Gelo, interglaciais e aquecimento global dramático 18 mil anos atrás. Mas
muitas pessoas nunca deram muita atenção ao impacto das mudanças climáticas
em sociedades antigas até 2005, quando o tsunami no sul da Ásia e o
terremoto no Paquistão mataram milhares e o furacão Katrina arrasou New
Orleans. Chegou a hora de pensar seriamente nisso. O grande historiador
francês Le Roy Ladurie, famoso por seus estudos sobre colheitas de uvas
européias e mudanças climáticas, observou certa vez que há dois tipos de
historiador: o pára-quedista e o caçador de trufas. O pára-quedista observa
o passado de longe, flutuando lentamente para a terra,
enquanto o caçador de
trufa, fascinado pelos tesouros do solo, conserva o nariz rente ao chão. Eu
aprendi desde cedo que se precisa das qualidades de um pára-quedista para
escrever sobre as mudanças climáticas antigas e seu impacto na humanidade,
pois é muito fácil se envolver no trivial das mudanças climáticas de curta
duração. Aprendi também que há basicamente três tipos de mudança climática
que afetam a humanidade de maneiras diferentes.
O mundo enfrentou pelo menos nove episódios glaciais desde 780 mil
anos atrás, quando apenas alguns milhares de humanos erravam pelo Velho
Mundo. Essas mudanças milenares estão fora do alcance da memória das
gerações. Assim, são meramente pano de fundo de longo prazo para a história
humana. Depois, há eventos que duram séculos - os dez séculos do episódio
de frio intenso conhecido como Younger Dryas, que mergulhou a Europa em
condições quase glaciais em cerca de 11 mil a.C.; os
grandes ciclos de seca
na Mesopotâmia, que duraram quatro séculos ou mais por volta de 2.800 a.C.;
os seis ou mais séculos da Pequena Era do Gelo, que começou em torno de
1.300 d.C. Finalmente, há os eventos de curta duração, como os principais
episódios do El Niño que provocaram falhas em monções no fim do século 19,
matando, só na Índia, milhões de pessoas; ou os ciclos de seca do século 12,
que levaram os índios Pueblos a abandonar as cidades no Chaco Canyon, no
Novo México, na América do Norte; ou ainda os que contribuíram para a
derrocada da antiga civilização maia em Petén, na Guatemala, no século 10.
Tais eventos fazem parte da memória humana e passaram de geração a geração
mesmo quando as expectativas de vida eram bem menores que hoje.
Até recentemente, a revolução na paleoclimatologia foi, em grande
medida, ignorada por arqueólogos e historiadores. Ambos têm uma
desconfiança profunda de um fenômeno dos anos 1920
conhecido como
determinismo ambiental, segundo o qual muitos eventos importantes da
história humana foram causados por secas e outros fenômenos climáticos.
Quando comecei a escrever um livro chamado The Little Ice Age (A Pequena Era
do Gelo) em 1999, fiquei pasmo ao ler a observação de um historiador
bastante conhecido de que a mudança climática era apenas "uma maldita coisa
depois de outra". Outro me assegurou que nada havia sido escrito sobre os
efeitos do clima na história européia desde 1980! Na verdade, muito me
surpreendeu o tanto de informações climáticas disponíveis, boa parte delas
de alguns poucos estudiosos. Le Roy Ladurie fundou todo um campo de
pesquisa histórica com as datas de queda de colheitas vinícolas e as
mudanças climáticas que as afetaram. Hubert H. Lamb usou uma gama espantosa
de fontes históricas e registros meteorológicos para reconstruir, por
exemplo, o clima encontrado pela Armada espanhola.
Tudo isso foi antes dos tempos dos estudos de camadas de gelo e de
anéis de troncos de árvores, registros proxy ("substitutos", quando não se
pode medir diretamente os eventos) que estão alterando nossa percepção de
como a mudança climática de curto prazo afetou sociedades humanas de todos
os tipos. Por exemplo, o evento Younger Dryas, que durou mil anos a partir
de 11 mil a.C., extinguiu a Corrente do Golfo, provocou condições glaciais
na Europa e uma seca intensa no sudoeste da Ásia. Na primitiva aldeia
agrícola de Abu Hureyra, no Vale do Eufrates, na Síria, o botânico Gordon
Hillman rastreou por amostras de sementes as mudanças de vegetação que
resultaram da seca. As florestas de carvalho e pistache, com suas safras de
nozes de outono, se afastaram da aldeia. As pessoas recorreram então a
gramíneas de cereais selvagens, depois a vegetais que só são consumidos em
épocas de grande fome e, por fim, ao próprio cultivo de cereais.
Quando a
seca terminou, elas e seus vizinhos eram agricultores em tempo integral - e
o mundo nunca mais foi o mesmo.
As civilizações primitivas do Egito e da Mesopotâmia oferecem exemplos
instrutivos de como secas e El Niños podem afetar o curso da história. As
primeiras cidades do mundo se formaram ao longo dos Rios Tigre e Eufrates em
parte por causa das mudanças no padrão das monções do Oceano Índico, que
fizeram com que os agricultores se congregassem ao lado de importantes
cursos de água, em povoações cada vez maiores. A cidade nasceu, para logo
decair quando as secas se intensificaram, depois de 2.800 a.C. Em 2.180
a.C., uma seca nos Altiplanos etíopes acarretou a ausência de cheias ao
longo do Nilo. O Antigo Reino do Egito se desmembrou numa série de
províncias belicosas porque os faraós não tinham grãos para alimentar seu
povo. Mais de um século transcorreu até que os ambiciosos senhores da
guerra da
região de Luxor reunificassem o Estado.
Os governantes egípcios posteriores jamais se esqueceram da lição,
nunca mais proclamaram sua infalibilidade e investiram pesadamente em
armazenamento e agricultura irrigada. O Estado egípcio sobreviveu por mais
2 mil anos.
Estamos aprendendo muito sobre mudanças climáticas e seus efeitos, mas
fomos muito além das explicações simples de causa e efeito do passado.
Hoje, acredito que podemos visualizar as mudanças climáticas no passado como
as ondulações causadas quando se joga uma pedrinha num lago. As ondulações
irradiam para fora enquanto a pedra afunda, causando perturbações perto e
longe. Tais foram os efeitos da seca ao longo do Eufrates ou nas planícies
maias. Não foi o clima que "fez" regredir ou prosperar civilizações. Agora
sabemos que os caprichos do El Niño e outros fenômenos climáticos de curta
duração foram fatores históricos mais poderosos do que se
imaginava.
Investigar o alcance pleno dessas mudanças, sejam elas as que afetaram a
agricultura primitiva na Europa, a agricultura romana ou as viagens dos
nórdicos para a Groenlândia, é um dos desafios fascinantes do futuro.
Desconfio que muitos de nossos estimados pontos de vista do passado mudarão
quando percebermos o alcance pleno das ondulações causadas por metafóricas
pedrinhas climáticas. O tsunami, o terremoto e o Katrina são lembretes
trágicos de que precisamos levar muito a sério as mudanças climáticas e o
aquecimento global.
* Brian Fagan é professor emérito de Antropologia na Universidade da
Califórnia. Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo, 01/01/2006.