Duas espécies podem virar uma só no RS
2006-01-05
Quem fizer um passeio atento pelas dunas do litoral gaúcho, de preferência com os olhos voltados para o chão, pode ter a chance de dar uma espiada no drama da evolução em tempo real. Os atores não têm muita presença de palco, mas até que são carismáticos: três espécies de roedores, duas das quais aparentemente estão se fundindo bem nas barbas dos pesquisadores.
Os bichos, conhecidos popularmente como tuco-tucos, estão mais para versões tupiniquins das marmotas, vivendo em galerias subterrâneas que eles mesmos cavam e comendo raízes e folhas de gramíneas. O biólogo Thales Renato de Freitas, do Departamento de Genética da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), estuda as populações de tuco-tucos desde o começo dos anos 1990 e descobriu que essa estranha promiscuidade entre espécies pode, na verdade, levar a uma extinção no futuro. Aparentemente, por culpa do homem.
Segundo Freitas, foi a ação humana que derrubou as barreiras que existiam entre os roedores, permitindo que eles voltassem a procriar entre si depois de ficarem separados por muitas gerações. Acredita-se que esse tipo de isolamento seja um dos motores do surgimento de espécies.
A primeira indicação de que havia algo esquisito acontecendo entre as populações do gênero Ctenomys, ao qual pertencem os três tuco-tucos do litoral sulino (C. flamarioni, C. lami e C. minutus), veio quando o biólogo da UFRGS se pôs a contar o número de cromossomos dos bichos.
Mamíferos como tuco-tucos e seres humanos costumam ter um número definido de pares dessas estruturas enoveladas (são pares porque um vem do pai e o outro, da mãe), e os cromossomos encerram o DNA, com toda a informação genética da espécie. Mas, quando o pesquisador fez a conta para o C. minutus, topou com algo incomum: o número variava.
"Tínhamos tanto 48 quanto 46 cromossomos, e também o número intermediário, 47", conta ele. Aparentemente, o que acontece é que duas populações do bicho estavam começando o processo de isolamento que costuma gerar uma nova espécie, desenvolvendo números diferentes de cromossomos. "Mas elas estão em cima de uma região muito dinâmica, perto da lagoa dos Patos, onde havia várias barras em direção ao mar que não existem mais", diz Freitas.
Segundo ele, o processo de mudança geográfica que criou essa zona de hibridação, como é chamada, foi natural.
Arroz da discórdia
O mesmo não acontece, porém, com o outro caso estudado pelo biólogo da UFRGS e seus colegas. Em condições normais, os tuco-tucos do litoral Sul ocupam territórios bem-definidos. O C. flamarioni é literalmente um rato de praia, ocupando as dunas de frente para o mar; o C. minutus domina os campos arenosos logo atrás; e o C. lami também se estabelece nesses campos, só que mais para o interior. Tudo muito organizado, se não aparecessem vários arrozais no meio do caminho.
Explica-se: antes, a região era entremeada por rios e banhados que separavam as populações. "Você pega mapas do Exército dos anos 1950 e o banhado está lá. Nos anos 1970, ele já não existe mais", conta Freitas. Isso porque a água foi desviada para as plantações de arroz que surgiram nas redondezas, afirma o biólogo.
Na lama
Nessa brincadeira, quem se deu mal foi o C. lami, o tuco-tuco de distribuição mais restrita e, ironicamente, o que parece ser o "pai" da espécie C. minutus, segundo indica a diversidade genética do bicho. A falta de barreiras fez com que o C. minutus cruzasse com ele, produzindo híbridos que são férteis, pelo menos até a terceira geração. A espécie "pura" tem 56 cromossomos, enquanto os "mestiços" possuem 51. E há mais um motivo para preocupação: o C. minutus parece ter muita facilidade para ocupar os ambientes do outro tuco-tuco.
"Isso é ruim. O processo de especiação [formação de novas espécies], que pelo visto ainda estava ocorrendo, pode ser interrompido", avalia Freitas. Uma das maneiras de reverter o processo seria recriar barreiras entre os animais. Os pesquisadores pretendem continuar monitorando a diversidade genética dos roedores em detalhe para ver como a situação se desenrola. (Folha de S.Paulo, 04/01)