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2006-01-04
O engenheiro agrônomo Adalberto Veríssimo é uma das principais referências sobre a Amazônia. Um dos fundadores do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), nos últimos 15 anos ajudou a produzir grande parte das estatísticas sobre a maior floresta tropical do planeta. Agora, é um dos principais articuladores do projeto de concessões florestais, que tramita no Congresso há mais de um ano e, se aprovado, promete dar novo ânimo à economia florestal, canalizando forças para interromper o trágico ciclo histórico do desmatamento.

Qual é o prognóstico para a Amazônia?

Adalberto Veríssimo - Há dois cenários possíveis. Se o alto índice de desmatamento se mantiver, é possível que em menos de dez anos a floresta esteja comprometida e seja impossível recuperá-la. Hoje são mais de 107 mil quilômetros de estradas ilegais, abertas com o objetivo de escoar a produção predatória de madeira. No cenário otimista, o governo terá de intensificar sua presença na região e estimular a criação de uma economia florestal saudável. Não dá para parar a agropecuária, nem o setor madeireiro, nem para descartar os ambientalistas. A Amazônia vai ter de conviver com essas três grandes forças.

Estamos mais para o cenário pessimista ou otimista?

Veríssimo - A dinâmica de ocupação da Amazônia já está intensa e fora de controle. Se as forças às quais me referi não tomarem as rédeas a tempo, o ciclo predatório deve prevalecer. No início eram 4 milhões de quilômetros quadrados de floresta. Perdemos 700 mil quilômetros quadrados apenas nos últimos 30 anos. Até 1975, o desmatamento na Amazônia era de menos de 0,5%. Significa que nas últimas três décadas perdemos uma área equivalente a três Estados de São Paulo. Os satélites comprovam que a floresta encolheu 17%.

Ainda restam 83% de floresta bem preservada. Não é bastante?

Veríssimo - É aí que as pessoas se enganam. A vista aérea diz que há cobertura vegetal de 83%, mas não revela a situação dessas matas. Um estudo do Imazon mostra que metade da Amazônia já sofreu com algum tipo de ação predatória do homem. O desmatamento é a última etapa de um processo de degradação que começa muito antes, com a abertura de estradas, com a retirada da madeira de valor comercial e com o roçado.

Até as áreas de proteção ambiental estão deterioradas?

Veríssimo - Sim, parte delas. Cerca de 34% da floresta encontra-se em áreas protegidas, definidas como unidades de conservação ou terras indígenas. Mas continuam sendo atacadas por madeireiros ilegais. É verdade que a degradação que acontece nessas áreas é mais branda que em regiões onde não há proteção. A perda média de floresta nas áreas protegidas é de 1,5%. A boa notícia é que de 2003 para cá aumentamos em 5% o tamanho dessas áreas. A má é que não basta criá-las no papel. As unidades de conservação de Rondônia, por exemplo, instituídas nos anos 80 pelo governo do Estado como parte de uma obrigação com o Banco Mundial para receber um empréstimo, estão abandonadas.

Qual é o sentido de criar mais áreas de conservação na região?

Veríssimo - Elas têm uma função de ordenar a posse da terra. Os últimos governos vinham criando áreas de conservação em regiões remotas e pouco ameaçadas. Por exemplo o Parque do Tumucumaque, no norte do Amapá, de extrema importância para a conservação da biodiversidade, mas localizado em uma região onde não havia disputa pela terra. Já o governo atual tomou a posição certeira de criar unidades de conservação em regiões de conflito, como a Terra do Meio, no Estado do Pará. Através do ato de criação, o governo assume o controle fundiário e decide o uso que ela pode ter, se conservação pura ou extrativismo. Isso é fundamental para conter o desmatamento, que avança cada vez mais rápido. A devastação é basicamente movida por grandes fazendeiros, que se apropriam de terras públicas devolutas, tanto pela força quanto forjando documentos. Hoje, toda a BR-163, que vai de Cuiabá a Santarém, está sujeita à grilagem e à derrubada de árvores. Esse avanço destrutivo sobre terras públicas também toma conta de todo o pedaço sudoeste do Estado do Amazonas, de Apuí a Lábrea, na BR-230.

Mas a unidade de conservação não resolve um segundo problema que é dar um sentido econômico à região. Como fazer isso?

Veríssimo - É verdade. Daí a importância do projeto de lei de concessão florestal que tramita há mais de um ano no Congresso. A idéia do PL é ampliar as unidades de conservação para 40%, hoje temos cerca de 34%. A área reservada à agropecuária será limitada a 20%, atualmente está em 17%. O destino dos outros 40% é o que pode mudar a vocação da indústria madeireira na região. A intenção é reservar essa imensa área para uma economia baseada em produtos da floresta. A lei prevê que uma empresa privada adquira o direito de explorar sustentavelmente uma área pública, retirando um pouco de madeira de cada vez e permitindo a regeneração natural da floresta. Como é uma concessão, não há interesse da madeireira em passar fogo em tudo e transferir a área para um pecuarista tomar posse, como geralmente acontece. É a única forma eficiente de manter a floresta de pé, gerando empregos em serrarias e outras indústrias de beneficiamento. As empresas não querem comprar áreas. Preferem que a terra seja do governo e que elas possam ter um contrato de concessão, o que é ótimo. O patrimônio continuaria público e as empresas pagariam pelo uso manejado. A Bolívia certificou florestas em larga escala porque tinha a situação fundiária resolvida. Se não houver uma opção econômica no Brasil, a floresta será derrubada, como aconteceu com a Mata Atlântica.

Por que a questão fundiária é tão crucial?

Veríssimo - Porque o grande desafio na Amazônia é que quase ninguém consegue provar que é dono legítimo da terra que explora. Isso gera a insegurança e os conflitos que marcam a região. Primeiro precisamos definir a posse da terra. Áreas não protegidas, em geral, são devolutas. São terras que nunca foram vendidas para ninguém e, em princípio, pertencem ao Estado ou à União. É ali que as madeireiras estão trabalhando. Mesmo que elas queiram agir na lei, extraindo sustentavelmente, não conseguem aprovar seus planos de manejo sem a titulação da terra definida. Esse plano é um projeto de engenharia florestal que mostra como tirar as árvores maiores, sem degradar a floresta. Sem sua aprovação, não é possível conseguir a papelada necessária para vender a madeira no mercado legal.

E qual é a conseqüência?

Veríssimo - Daí se segue um ciclo trágico: sem a propriedade da terra, a madeireira não tem como captar recursos ou aprovar o plano no órgão ambiental. Afinal, o Ibama tem receio de liberar a extração de madeira em área proibida. Sem o plano de manejo, também não há como certificar o produto e vendê-lo com selo verde. O mercado fica restrito. O setor que deveria ser aliado, pelas dificuldades, acaba se tornando inimigo da floresta. O madeireiro, marginalizado, parte para a ilegalidade e contribui ainda mais com o desmatamento. Não há como paralisar o setor madeireiro. ä Não há como parar esse setor, responsável por mais de 400 mil empregos na região. Ou eles são levados para a legalidade, como aliados da economia florestal sustentável, ou eles serão aliados do desmatamento.

Diante de tantas dificuldades, que vantagens leva o madeireiro certificado?

Veríssimo - Estar legal é absolutamente necessário no contexto das relações comerciais internacionais. Para penetrar nos mercados da Europa e dos Estados Unidos é imprescindível ter selo verde. Um ciclo promissor de economia florestal saudável na Amazônia terá início assim que a questão fundiária estiver resolvida. Antes disso, nada poderá ser feito. As empresas já usam e vão usar ainda mais a certificação como uma espécie de certidão negativa, prova de que são sérias e comprometidas com o meio ambiente.

Se é tão importante, por que o projeto de lei está há mais de um ano no Congresso sem ser aprovado?

Veríssimo - São vários os fatores. O Congresso entende pouco de Amazônia e o PL nunca foi prioridade por lá. Quando chegou ao Senado, em meio à instabilidade dos escândalos políticos, tornou-se vítima de barganhas políticas. O governo não deu a importância que ele merecia e não brigou para que fosse votado. A oposição, por sua vez, não teve sensibilidade para entender que ele está acima das divergências partidárias e que o interesse é nacional. Se o índice de desmatamento voltar a subir, é bom que se encaminhe a conta não só para o Executivo, mas também para o Legislativo federal, que tem muita responsabilidade sobre o que a Amazônia é e sobre seu futuro. Sinceramente acho que o Senado vai atuar de forma correta, ainda que tardia. Lamentável foi perder um ano com o trâmite. Não estamos mais em condições de perder um ano na Amazônia.

Dá para contabilizar as perdas com o PL estagnado?

Veríssimo - Os prejuízos são graves. As empresas certificadas tiveram suas terras invadidas pelos chamados "sem-tora" e seus planos paralisados. A campanha de invasão foi articulada pelos ilegais e aconteceu em quase todas as empresas manejadas. Como elas têm uma imagem a zelar, não recorreriam de meios ilícitos para expulsar seus invasores. Conclusão: ficaram paradas por muito tempo aguardando decisão judicial. A maior madeireira legal, a Gethal, está quase fechando suas portas. Os investidores internacionais perderam interesse e os líderes do setor foram colocados em xeque. Os cascas-grossas, como são chamados os madeireiros comprometidos com a questão ambiental, já não sabem se vale a pena tanto esforço para ter seus planos aprovados. O ano de 2005 foi, sem dúvida, o pior da história para o setor madeireiro bom da Amazônia. E mesmo com a aprovação do PL serão necessários alguns anos para recuperá-lo.

Por que chegamos a esta situação?

Veríssimo - Porque, a partir de 2002, o Ibama passou a ser mais rigoroso na aprovação dos planos de manejo. Antes disso, eles eram aprovados sem muito critério e ajudavam a esquentar a indústria de grilagem de terra. O Ibama agora só aprova plano de manejo em área titulada. Só que, sem a questão fundiária resolvida, não se aprova nada. O cerco se fechou, o que é bom. Mas precisamos sair do estado de inércia. Enquanto o PL não sai, o Ministério Público Federal encontrou uma forma interessante de criar uma transição. As madeireiras, para ter seu plano aprovado pelo Ibama, assinariam um termo renunciando qualquer direito de posse. Isso evitaria que elas repassassem a terra para o grileiro ou pecuarista. Mas não funcionou por conta do próprio Ibama. Parte do órgão se colocou contra o projeto de lei de concessões de florestas públicas porque o PL cria uma nova instituição para tocar a questão florestal, uma agência de fomento que receberá recursos do Ministério do Meio Ambiente. Ficará sob a responsabilidade do Ibama apenas fiscalizar e aprovar os planos. Acho que, por isso, houve certa má vontade do Ibama na renovação dos termos de ajuste de conduta. Aí, a medida, cujo objetivo era desafogar a pilha de projetos de manejo, não foi adiante.

O ano de 2006 tem eleições gerais. Já se anuncia a abertura de novas estradas na região. Isso pode agravar o índice de desmatamento?

Veríssimo - Sim. Quando se abre uma nova estrada, se cria um grande problema na região. Para ter uma idéia, o simples anúncio do possível asfaltamento da BR-163 criou uma corrida pela posse das terras ao longo da estrada, aumentou os conflitos sociais, a violência e o desmatamento. Além disso, levou o setor madeireiro predatório a construir a própria infra-estrutura, uma rede de vias de terra partindo da BR-163. Parte da riqueza da Amazônia que é explorada de forma predatória é usada para criar infra-estrutura e catalisar o desmatamento. É investimento para o desmatamento. A ocupação da Amazônia já não depende apenas da política de expansão do governo, ela já tem suas próprias forças e já cria a própria infra-estrutura. Em 2005, o governo segurou a derrubada de árvores com aumento da fiscalização. Mas não houve nenhuma medida de natureza econômica que tenha favorecido intencionalmente a economia da floresta. O desmatamento está represado e pode explodir a qualquer momento.
(Época, 02/01/2006)

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